Em outubro deste ano visitei um community college no Bronx, para entrevistar os responsáveis pelo seu setor de educação contínua – ou de workforce development, mais precisamente. Depois eu conto algo sobre este college e sobre esta divisão, voltada para a oferta de cursos “non-credit”, de preparação para o trabalho
Antes, porém, resolvi consolidar algumas informações sobre a região em que se insere o college, uma área muito especial de New York. Os comentários que seguem são, basicamente, informações colhidas em um livro e alguns artigos de grande imprensa. Foram acrescidas de observações pessoais, anotadas quando visitava a região. O livro é: The Bronx - de Evelyn Gonzalez, editado em 2004 pela Columbia University Press. Por vários motivos, acho que a estória interessa ao leitor brasileiro.
A linha traçada por Evelyn Gonzalez é muito clara. Nos anos 1940, o South Bronx já não correspondia às expectativas da classe média que ali se instalara desde o final do século XIX. Os males do tempo eram muitos: declínio nos investimentos imobiliários, crescente incidência de crimes, envelhecimento do estoque de residenciais. No final dos 1970s, um novo South Bronx tinha se tornado o “a área mais completamente abandonada da geografia urbana dos Estados Unidos”. A região observara a chegada de milhares de negros do sul e de porto-riquenhos. Nos anos 1980, o burgo era majoritariamente negro e hispânico (2/3 dos residentes – 745 mil num total de 1,1 milhões). A tabela de Gonzalez dá uma ideia da evolução:
No seu conjunto, a transformação de New York foi muito marcada pelo “boom” de casas do pós-guerra – a política de hipotecas subsidiadas por programas como o GI Bill, a desncentralização estimulada pelo Departamento de Defesa, a construção dos sistemas de transporte metropolitanos e das rodovias federais. Assim, em NY, por exemplo, dezenas de milhares de famílias se mudaram para os condados de Westchester e Nassau (New York) assim como Bergen e Essex (na vizinha New Jersey). Os apartamentos vagos no Bronx eram rapidamente ocupados por imigrantes negros e hispânicos.
A presença dos hispâicos e negros na grande metrópole foi crescendo. Em 1940, os afro-americanos e os porto-riquenhos representavam perro de 7% dos residentes – 50 mil negros e 61 mil porto-riquenhos. Uma década mais tarde, a proporção tinha quase dobrado – 13%. E em 1960 chegava aos 22% – mais de um milhão de negros e 600 mil porto-riquenhos.
A integração não era inteiramente doce, para dizer o mínimo. Os “brancos-brancos” de N Y estavam dispostos a compartilhar a ideia do “sonho americano”, mas não seus empregos e suas casas.
As inovações urbanísticas chegaram àquele pedaço da cidade – novas leis de incentivo para construção, a via expressa Cross-Bronx. Mas não foram exatamente benéficas para a região e para seus novos habitantes. Uma série de remoções e deslocamentos foram empilhando pessoas em cortiços e favelas, enquanto as políticas de construção subsidiada faziam surgir enclaves segregados de residências e apartamentos.
Isso ocorria em um momento em que a cidade mudava seu perfil econômico e laboral, em uma direção que deslocava seriamente os migrantes (negros ou hispânicos) em geral pouco qualificados. Entre 1947 e 1976, a cidade perdeu perto de 500 mil empregos fabris, já que as empresas (grandes ou pequenas) se mudaram.
O Bronx em especial sofreu com isso – entre 1970 e 1977, 300 companhias (empregando 10 mil trabalhadores) fecharam ou se mudaram para fora do Bronx. Em 1974, a revista New York Affairs fazia uma previsão dura: o Bronx estava desinado a ser o hospedeiro dos pobres da cidade no ano 2000.
E assim foi acontecendo. Em 1960, cerca de ¼ das familais do South Bronx recebiam algum tipo de ajuda pública para sobreviver. Nos estudos de políticas públicas, era uma espécie de “modelo” para descrever áreas necessitando intervenções de combate à pobreza. Era e seguiu sendo. Em 1984, 55% das famílias na área estavam abaixo do chamado nível de pobreza e 39% sobrevivam graças a ajudas de welfare.
Como era de se esperar, a pobreza coincidia com crime e “desordem social”. É certo que o crime estava em toda parte, mas parecia mais concentrado no Bronx. O registro de assaltos cresceu ali de 998 em 11.960 para 4256 em 1969. Os roubos e furtos passaram de 1.765 para 29.276. A maioria no South Bronx.
As condições eram tão desesperadoras que em 1969 um grupo de donas de casa, negras e porto-riquenhas, fizeram uma marcha para o quarteirão da delegacia central pedindo o direito de ter armas, para se protegerem dos usuários de drogas.
Bom, aí, como se podia esperar, também, chegam os grupos organizados, as gangues. Nos anos 1970 elas tinham nomes como Savage Skulls, Cypress Bachelors, Black Spades, Spanish Mafia, and the Reapers. Esses eram grupos estranhos, que atacavam os drogados e traficantes, afirmando que estavam “limpando a vizinhança”, ou “um grupo de caras trabalhando para ajudar o povo”. Os grupos tinham muitos ex-presidiários e veteranos do Vietnã. Amedrontavam os moradores, extorquiam comerciantes locais, pelejavam contra as gangues rivais, vandalizavam edifícios e… com o tempo trabalhavam também para traficantes locais e mesmo proprietários de imóveis.
As políticas de socorro à pobreza geravam efeitos colaterais indesejados. Por exemplo, o ressentimento dos brancos contra as famílias pobres que recebiam auxílio. Quase tudo virava um confronto racial.
Um dos pontos altos da conjunção “desordem-crime-pobreza” foi julho 1977, no dia do blackout que apagou NY. Uma “noite de terror”, de saques, depredações e incêndios provocados. No Bronx, alguns bairros viravam quase um estado de anarquia estabelecida. Sem lei alguma.
O colapso social do South Bronx vivia mais um de seus momentos críticos. É o que veremos no próximo artigo.