Durante o século XX, a Espanha foi um laboratório de experiências políticas. A guerra civil antecipou muito do que ocorreria anos depois, em escala mundial. Guernica fora uma prévia do que se poderia ver em Auschwitz, Dresden ou Hiroshima. Depois, houve a reconstrução de uma resistência notável – sobretudo no campo operário e popular, somando católicos e comunistas. Essa epopeia lançou luz sobre uma enorme gama de movimentos sociais análogos, sob outras ditaduras. Passados os anos de chumbo, também na “transição” a Espanha figurou como algo a sinalizar “futuríveis” de outras transições.
[Ver materiais sobre a transição espanhola em https://reginaldomoraes.files.wordpress.com/2011/06/escritos_espanha.pdf]
Na última semana de 2017, o jornal Publico, de Madrid, traz uma pesquisa que deve ser lida, me parece, sob essa perspectiva – um laboratório do que se passa não apenas lá, como em outras partes do mundo.
A pesquisa tenta prever o que seria a distribuição dos votos e cadeiras no parlamento, caso fossem realizadas eleições gerais em 2018 (o que pode acontecer). A Espanha é uma monarquia parlamentarista e, assim, a composição do parlamento determina a constituição da equipe de governo.
O cenário é curioso e revelador, quando comparado com a composição atual, ditada pelos resultados de 2016. Naquela ocasião, ocorreu algo novo na mesmice ibérica. Vale a pena lembrar e contextualizar.
Quando ruiu o franquismo, no meio dos anos 1970, a transição-transada levou a um quadro partidário de várias forças – 2 ou três agremiações à direita e duas à esquerda (socialistas e comunistas). A extrema esquerda, evidentemente, contava muito pouco, quase nada. Passados uns 5 ou 6 anos, afunilavam-se os alinhamentos e se constituía uma espécie de bipartidarismo de fato. Do lado direito, o Partido Popular (PP), agrupando as viúvas do franquismo. Do lado esquerdo, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), profundamente modificado pela liderança moderadíssima e “realista” de Felipe Gonzalez. O Partido Comunista, que alíás se tornara também muito moderado, desmanchava-se a cada turno de urnas.
O bipartidarismo de fato criou raízes e parecia estável. Gonzalez vencia sucessivas eleições, mas cada vez com mais dificuldade. Não porque a direita crescesse – o PP seguia com o mesmo número de votantes. O que acontecia era um crescente abandono da cena política – ou, mais propriamente, eleitoral – pela esquerda. No final dos anos 70, o titulo de um livro provocante dava, por assim dizer, o rótulo desse movimento: Triênio do Desencanto referia-se à “redemocratização” dos três anos posteriores à morte de Franco.
Assim foi, com Gonzalez navegando, até que... o PP ganhou, mais pelo desgaste do PSOE do que por qualquer querer de seu. E assim, ainda que com mudança de comandante, seguiu avante o bipartidarismo, agora com maioria conservadora. O pêndulo oscilou para a esquerda uma outra vez, por um breve período, quando a abstenção caiu, movida por um evento emotivo – o pavoroso atentado do metrô de Madrid, que a direita tentou desastradamente manipular em seu favor, mentindo sobre seus autores. Em 2004, Jose Luiz Zapatero ganhou com um “já chega de PP”.
Este breve episódio, um surto de participação eleitoral fora da curva, teve o mérito de evidenciar a importância da abstenção, do “alheamento”, para a estabilização da hegemonia conservadora: mais do que conquistar adeptos para sua causa, a direita precisa (e aparentemente consegue) conquistar massas para o “qualquer coisa”, isto é, para a soma de abstenção, nulos e brancos. A negação da política.
Esse quadro parece confirmado pela pesquisa que mencionamos no início deste artigo. Em 2016, o bipartidarismo fora seriamente abalado, um outro clarão. Dois partidos novos surgiram como competidores reais, não apenas como agrupamentos secundários e regionais (como os nacionalistas bascos ou os separatistas da esquerda republicana da Catalunha). De um lado, o Ciudadanos, uma direita “moderninha”, que busca se diferenciar do PP – uma espécie de PP mais perfumado. De outro lado, Podemos, um grupo à esquerda do PSOE, uma espécie de social-democracia radical e com enorme apelo junto ao eleitorado mais jovem e mobilizado. Podemos chegou a se constituir como a terceira força do país, quase superando o PSOE. Ciudadanos progrediu mais lentamente, mas foi crescendo às custas do encolhimento do PP e de seu caricato líder, Mariano Rajoy.
Veja os dados do gráfico e da tabela, mais abaixo. Eu simplifico aquela que Publico postou. Os números revelam essa tendência. Em 2016, PP e Ciudadanos conseguiram uns 10.900.000 votos. E isso representava 46% dos votos válidos (e das cadeiras no Congressso). Na pesquisa de hoje, eles teriam 11 milhões, abocanhando quase 49% do total. Qual a explicação, se praticamente congelaram o número de seus votantes? O refluxo da participação e a recidiva do “alheamento”. Eles não cresceram, mas a esquerda caiu o suficiente para render à direita um crescimento de 12 cadeiras no Congresso, vantagem suficiente para governar em maioria.
É claro que se trata de uma pesquisa, em um cenário desprovido de campanha, apelo, movimento dos personagens. Isso pode ser afetado por uma eleição “real”, não apenas a que se mede, a frio, na prancheta do pesquisador. Sim, pesquisa é pesquisa, eleição é eleição. Mas a sondagem pode indicar o que se tem pela frente e o que se deve enfrentar – se se quer mudar algo.
Como disse no início deste artigo, Espanha segue tendo muito de laboratório, antecipando em maior ou menor escala, fenômenos que se repetem em outros cantos do planeta. Inclusive, claro, na América do Sul. Faz algum tempo tenho chamado atenção para um fenômeno que me parece relevante, na contramão do que diz certa mídia: na França de Le Pen ou na Inglaterra do Brexit, na Espanha de Podemos ou nos Estados Unidos de Trump, o grande partido das classes populares não é a nova direita, mas a indiferença, o alheamento, a apatia. O abandono do espaço político e o mergulho nos negócios privados, aquele pântano em que reinam a compra e venda da força de trabalho. O primado do contratado sobre o legislado... É aí que mora o perigo.