Em 2011, quando surgia o movimento Occupy Wall Street, o website de esquerda Mother Jones publicou alguns gráficos interessantes para responder a esta pergunta: quem é essa casta? Reparem na Figura 1, abaixo. A primeira observação é uma ressalva, um toque de precaução: a escala foi construída com base nas declarações de renda, por isso se fala em taxpayers. Ora, uma certa parte da riqueza dos muito ricos, proporção difícil de avaliar, é cuidadosamente invisível à taxação, como indicamos na série dedicada aos paraísos fiscais, aqui mesmo no JU. Feita a ressalva, reparemos que essa nata da nata inclui algumas profissões talvez surpreendentes – até alguns professores figuram na lista dos ricaços. Andrew Hacker certa vez lembrou que dezenas de reitores (e treinadores de rúgbi e basquete das escolas) estavam entre as altas rodas – não apenas pelo salário que recebem da instituição, mas, também, porque com alguma frequência participam de conselhos de gestão de corporações, recebem jetons [Higher Education? How Colleges Are Wasting Our Money and Failing Our Kids---and What We Can Do About It, Time Books, N.York, 2010]. O Chronicle of Higher Education acompanha regularmente esse ranking de pagamentos milionários.
Figura 1
A Figura 2 revela um outro detalhe: os membros do 1% do topo possuem a maioria da riqueza financeira do país (ações, participação em fundos mútuos, títulos, CDBs, etc). Vale notar que a diferença das barras não é tão grande na propriedade de imóveis (não residenciais). Aparentemente, o pessoal do 1% aposta na riqueza bem móvel, bem líquida, aquela que voa fácil. Talvez seja possível dizer, em contrapartida, que a classe média alta (os outros 19%) concentra sua riqueza em imóveis. No que diz respeito à riqueza móvel, ela a coloca em trusts. Busca proteção e... um modo mais liso de transferir para os herdeiros. Quanto aos pobres e classe média baixa, sua principal “riqueza” é o débito.
Figura 2
Essa diferença de estratos ou camadas da sociedade é a cristalização de um movimento das rendas, muito visível, pós-1980 (Figura 3). Pode-se dizer que é uma tendência que se formou a partir das reformas macroeconômicas de Reagan e das reformas microeconômicas como a reengenharia das empresas, o downsizing, a terciarização, financeirização e deslocalização das plantas. Assim, a partir desse momento, a linha do andar de cima foi cada vez mais para cima, acelerada. A linha média alta (os mordomos da oligarquia) subiu razoavelmente, têm razão para serem agradecidos aos patrões. E a renda dos 80% de baixo estagnou ou desabou. Cristalizou-se na sociedade americana uma estrutura de desigualdades que é a matriz do Riquistão, que comentamos em artigo anterior [https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/reginaldo-correa-de-moraes/e-deus-criou-o-riquistao-terra-dos-super-ricos-quem-sao-de].
Figura 3
Mas... por que esse movimento tão assimétrico? Por que avançou tanto a desigualdade? Muito se escreveu sobre isso e a resposta está longe de ser clara e unívoca. Em todo o caso, é possível dizer que há fatores que estão no que se pode chamar de “mundo do mercado”, isto é, das reformas microeconômicas que consistem, por exemplo, na reengenharia das empresas, nas suas decisões de deslocar plantas para o exterior, de “enxugar” segmentos intermediários da força de trabalho, reduzindo os cargos de gerência e supervisão e assim por diante. Um outro conjunto de fatores costuma ser endereçado às reformas macroeconômicas, aquelas patrocinadas pelo governo federal, sobretudo: a privatização e desregulamentação de diversas atividades, os cortes de impostos para grandes rendas e ganhos de capital, os estímulos para a deslocalização industrial e para a financeirização das empresas. Como se vê, é apenas um recurso mental separar esses dois campos – os fatores- mercado e os fatores-estado. Não vamos evidentemente resolver nenhum desses enigmas. Apenas acrescentamos alguns outros insights empíricos para ilustrar alguns deles.
Um desses elementos é a queda das taxas de sindicalização e o provável impacto nas rendas – a julgar pelo paralelo das curvas, indicado no gráfico abaixo, Figura 4. [https://www.pbs.org/wgbh/frontline/article/the-state-of-americas-middle-class-in-eight-charts/]. A queda na sindicalização está longe de ser algo “natural” como a lei da queda dos corpos. Uma boa parte dessa queda se deve a iniciativas bem sucedidas das empresas. Deslocando-se para estados do sul e oeste que têm legislação limitadora para a ação dos sindicatos, as fábricas transplantadas se colocam fora do alcance das regulações impostas por contratos coletivos. Além disso, nos últimos vinte anos cresceu bastante uma espécie de indústria da “persuasão anti-sindical”, a contratação de “empresas” especializadas em dissuadir trabalhadores de filiar-se a sindicatos, utilizando todos os instrumentos possíveis.
Figura 4
E um elemento adicional é que a deslocalização não se deteve em território americano, nessa viagem para o sul e para o oeste. Desceu mais um pouco para o México (com ajuda, claro, dos acordos de livre comércio (NAFTA). E foi mais para o oeste. Como a terra é redonda, os novos navegantes chegaram ao leste do mundo – a migração de plantas produtivas americanas para a Ásia.
O resultado dessa evolução é exposto abaixo, Figura 5:
Figura 5
Com isso, muitos empregos “blue collar” mais estáveis e mais bem pagos foram destruídos. Esses empregos também eram, em geral, associados a benefícios indiretos que desapareceram: como o plano de saúde para o trabalhador e a família e os planos de aposentadoria complementar.
A oferta de empregos mudou radicalmente, o que resultou nas curvas do gráfico a seguir, Figura 6:
Figura 6
Isso não apenas achatou as rendas dos mais pobres. Os gerentes e executivos recebiam bônus pelos rendimentos acrescidos das empresas – e esse duplo movimento contribuiu para distanciar ainda mais os estratos. No começo dos anos 1980, o executivo de corporações americanas recebia cerca de 50 vezes o salário do operário médio. Essa proporção se moveu para mais de 200 em 2009, o ano da quebradeira. E a quebradeira não diminuiu isso, pelo contrário. Em 1968, o maior empregador dos Estados Unidos era a General Motors – e o seu presidente recebia 66 vezes o salário do operário médio. Em 2007, o maior empregador era o Walmart – e seu presidente recebia 900 vezes o salário do trabalhador médio da rede.
Como os trabalhadores e a chamada “classe média” resolveram esse problema? Bom, o apelo ao food stamp (programa de ajuda alimentar federal) atingiu 50 milhões de americanos (mais de 15% da população). Mais membros da família se puseram a trabalhar e a fazer bicos. Muitos deles em dois empregos ou bicos, com jornadas de 12 horas diárias, 7 dias por semana. É o retrato estressante exibido por Juliet Schor [The Overworked American: The Unexpected Decline Of Leisure, Basic Books, 1993]. Além disso, por suposto, sobra o recurso ao endividamento em cascata. Hoje, não apenas o governo americano é o mais endividado do mundo. O povo americano é, também, o mais enforcado por hipotecas, penhoras e cartões de crédito. Estimativas do débito da classe média desenham uma curva reveladora (Figura 7). No título do gráfico, a expressão “classe média” tem essas aspas porque tem um sentido bem americano – abrange trabalhadores (inclusive blue collar) de renda média:
Figura 7
Esse conjunto de dados faz pensar alguma coisa sobre as incertezas e instabilidades do cenário político norte-americano? Certamente. O que eles não fornecem é uma bola de cristal para imaginar o que resultará desse quadro.