Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

A tecnologia dos americanos e seus fantasmas – aí vêm os alemães!

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Ilustra: Luppa SilvaEm 2013, sob a direção de Suzanne Berger, um estudo do MIT alertava para as virtudes da manufatura alemã, capaz de produzir e/ou difundir inovações, mais do que engendrar produtos e negócios radicalmente novos, algo em que os Estados Unidos pareciam melhores.  Virou livro – Making in America – from Innovation to Market, MIT Press, 2013. O tema – e a comparação com os alemães – era reincidente. De um modo ou de outro, outros relatórios de pesquisa haviam insistido nessa tecla – assinados por equipes do MIT e de Harvard, da National Sciences Foundation e da National Academy of Engineering.

Na comparação, destaca-se a apreciação do peso dos gastos norte-americanos com pesquisa comprometida com objetivos militares. Este segmento é avassalador no caso americano e praticamente negligenciável no caso alemão, nos orçamentos e na organização das instituições. Por exemplo, diz o estudo na NSF, nos EUA, há cerca de 700 laboratórios federais e apenas uma centena deles transfere tecnologia para a economia “civil”. Mais da metade do orçamento desses laboratórios é vinculado a projetos de defesa.

Outro traço distintivo do sistema alemão é a rede de transferência e suporte tecnológico para “indústrias tecnologicamente maduras”, inclusive e sobretudo as pequenas e médias, em forte contraste com o caso americano. Em suma, no caso alemão, toda uma “ecologia da inovação” garante absorção contínua e disseminada da inovação. Dentro dessa “infra-estrutura de conhecimento” tem enorme importância o sistema educativo.


Sistemas educativos: diferenças fundamentais e implicações

O sistema escolar alemão sempre foi reconhecido pela força de seu nível secundário e vocacional (o sistema de treinamento dual). O sistema americano parece mais piramidal, o esmero da qualidade concentra-se nos níveis superiores. Uma outra característica peculiar do sistema germânico – agora no nível superior – é a complexidade e o tempo ao longo das formações. Um estudo da NSF, em 1996, chega a afirmar que, para equiparar-se a uma graduação superior alemã, um estudante médio americano precisaria finalizar seu máster. O estudo está disponível em: https://www.nsf.gov/publications/pub_summ.jsp?ods_key=nsf96316

Quando observados pelo ângulo da grande mídia, as comparações são mais alarmistas e se alimentam, com frequência, do desempenho dos estudantes norte-americanos nos testes padronizados internacionais, desempenho frequentemente apresentado como decepcionante. Contudo, observando mais de perto, os especialistas alertam que existe algo mais preocupante por detrás dessas médias: a dispersão que em torno delas se observa. E, mais uma vez, essa percepção se forma através do viés comparativo:

“Os japoneses visam trazer todos os alunos para um elevado nível comum de competência, e eles são em grande parte bem sucedidos (....) Como resultado deste elevado nível comum de competência, os ingressantes na força de trabalho japonesa geralmente são alfabetizados, com conhecimentos matemáticos e preparados para aprender. Na força de trabalho dos EUA, em contraste, os empregadores descobriram altos índices de dificuldade com matemática básica e leitura em trabalhadores com diploma de ensino médio.” [Michael Dertouzos ett all  - Made in America - Regaining the Productive Edge, Harper Perennial, 1989].

Mas não se trata de problema que atinja apenas o ensino de conhecimentos básicos, no sistema escolar universalizado (escola elementar e média). Os especialistas americanos mostram preocupação com a fragilidade da educação dita vocacional. O estudo do MIT coordenado por Dertouzos chama atenção para essa fragilidade da educação profissional nos Estados Unidos, além do estigma que a acompanha. Talvez por isso se multipliquem, nas últimas décadas, apelos de empresários e estudiosos para que sejam adotadas nos Estados Unidos as práticas de aprendizagem germânicas.

É sintomático que os dois grandes estudos de MIT, o de 1989 e o de 2013, tenham títulos que destaquem o make in America. O foco da preocupação parece ser a reconquista da “fronteira produtiva” por parte das empresas americanas. E, ainda assim, dois de seus 11 capítulos temáticos versam sobre a organização do sistema educativo. As passagens acima reproduzidas indicam a relevância da chamada educação pré-terciária para criar certas capacidades nacionais estratégicas: a capacidade de selecionar, de absorver e usar inovações, mas, também, a capacidade para gerar as adaptações, as inovações incrementais, decisivas, em ultima instância, para o sucesso das ‘invenções’ de cientistas e engenheiros. É importante, aqui, tomarmos algum tempo para discutir duas questões embutidas nessa observação.

A primeira questão refere-se às deficiências de longo prazo enfrentadas por sistemas educativos excessivamente polarizados. Por um lado, pelos seus resultados “técnicos”, como a dificuldade de formar competências inovadoras “para baixo”, na direção, por exemplo, do chamado “chão da fábrica”. Por outro lado, há seus danosos resultados sociais – a distribuição muito polarizada de rendas e remunerações, assim como de prestigio social, a concentração de poder nas formas de organização do trabalho e controle dos empreendimentos, isto é, sobre um conjunto enorme de aspectos do que se pode chamar de tecido social. Um traço fundamental, nesse aspecto, é a diferença da representação e participação laboral, nos Estados Unidos e na Alemanha, tema que valeria a pena explorar em outra ocasião.

A segunda questão acentuada pelos pesquisadores é esta: a necessidade de superar as concepções restritivas sobre o que é inovação e, daí, sobre o locus e agentes de sua geração. Cada vez mais se incorpora, nesse campo, o conjunto de inovações incrementais que transformam a inovação original até chegar ao uso e à disseminação. E, assim, se é também levado a considerar algo mais do que o ambiente fechado dos engenheiros e cientistas, incluindo no processo criativo os ambientes (e agentes) do uso, do reparo e da manutenção.

As concepções populares – ou, mais exatamente, popularizadas – de desenvolvimento tecnológico operam com a ideia de uma relação linear entre o conhecimento científico de ponta, ou “recentemente adquirido”, e suas “aplicações”. Dentro desse arrazoado ou imagética de senso-comum, as inovações relevantes para o desenvolvimento de um país são produzidas em “momentos eureca”, em lugares especiais, os laboratórios, por seres também especiais, cientistas e engenheiros. Contudo, lembram dois especialistas americanos,

“muitas das principais fontes de inovação estão localizadas "a jusante", sem qualquer dependência inicial ou sem o estímulo da investigação científica de fronteira. Estas fontes envolvem a percepção de novas possibilidades ou opções para melhorar a eficiência, percepção que se origina com a participação de diferentes tipos de trabalhadores no chão da fábrica ou próximo dele.” (David Mowery e Nathan Rosemberg, Technology and the Pursuit of Economic Growth, Cambridge University Press, 1989].


Políticas de conhecimento – diferentes, mas articuladas

Essas duas questões estão evidentemente ligadas, através de três políticas de conhecimento dos estados modernos – a política de geração de conhecimento “de fronteira”, a política de formação de competências tecno-científicas em diferentes níveis e a política de disseminação e popularização do conhecimento já estabelecido como verdadeiro.

Em outras palavras, uma “cultura da inovação” precisa se expandir para fora ou para além dos núcleos mais sofisticados, de fronteira. E os sistemas nacionais de educação são pressionados a prover essa infraestrutura de competências e capacitações diversificadas. Ciclicamente, os educadores norte-americanos mencionam o contraste entre o grau de excelência atingido pelas suas universidades de pesquisa e as mazelas e desigualdades de seu sistema educativo de nível elementar e médio. O tema reaparece no já mencionado estudo da NSF de 1996:

“Os Estados Unidos estão passando por uma reforma sistêmica visando melhorar todos os níveis da educação, particularmente para reforçar a matemática e a educação científica nas escolas secundárias. Parte desta reforma sistêmica volta-se para a baixa qualificação dos professores de matemática e de Ciências. A grande maioria dos professores de Ciências e matemática do ensino médio dos Estados Unidos não têm um curso de graduação na ciência que estão ensinando. Uma grande porcentagem dos estudantes formados em universidades europeias, em ciências naturais e engenharia, vão para o ensino secundário. Isto leva a perguntar como as novas reformas no sistema dos EUA podem aprender com a experiência europeia. [NSF-96-316].”

As tentativas de reformar o sistema educativo – em qualquer de seus níveis – esbarra em um traço marcante da sociedade americana, de sua “variedade de capitalismo”. A desigualdade e “ineficiência seletiva” do ensino médio têm inevitáveis reflexos mais acima, na composição do ensino superior.

Que lições pode tirar um país em desenvolvimento de tais contrastes? Se fazem sentido as comparações acima, uma política de desenvolvimento deveria visar uma learning society, mais do que uma inventing society. Deveria contemplar significativamente a criação de práticas que estimulassem a "reinvenção" diária, pontual e incremental, naquilo que se usa chamar de “chão de fábrica”. E seus agentes não são apenas cientistas e engenheiros, são também os operadores, fabricantes, usuários informados. A política de formação de capacidades disseminadas deveria ser associada a políticas de difusão que tornassem mais fácil a aceitação de inovações. Se tudo isso faz sentido, como parece que faz, então a dimensão da “formação de capacidades” tem tanta ou mais relevância estratégica quanto aquela centrada na geração de invenções, patentes, etc. Assim, desdobrando essa ideia, poderíamos listar os diferentes níveis ou modos de aplicação das políticas de conhecimento: 1. Uma política que estimule a geração de conhecimento novo, de fronteira; 2. Uma política de disseminação e popularização do conhecimento estabelecido; 3. Uma política de produção de capacidades, de treinamento na pesquisa e no uso dos métodos dedutivo-experimentais, em sentido amplo.

À luz das experiências nacionais que examinamos, todas essas dimensões parecem igualmente relevantes, interdependentes e... nada simples.


Leitura adicional para quem quer aprofundar os temas deste artigo:
 

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