Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Vertigem da mudança e salvacionismo. O convite para as ilusões fatais

Edição de imagem

Reprodução

Lamentar a vertigem da mudança não é coisa nova. Muito antes de Camões já se dizia coisa parecida. Conta um antigo pregador que Adão, quando expulso do paraíso, disse a Eva: “Minha querida, vivemos tempos de rápida transição”. Pois.

Uma vez, preparando uma exposição sobre a globalização dos negócios, achei um diagrama que modifiquei e traduzi. Era este:

Reprodução

Ilustra: Luppa SilvaO mundo ficou menor, o tempo comprimiu-se. Foram necessários mais de trezentos anos para passar dos 15 km/hora para 30. Mas apenas vinte anos para saltar de 30 para 300. O livro portátil levou uns dois ou três séculos para se massificar – na Europa Ocidental, bem entendido. E revolucionou a organização dos sistemas de educação. O rádio levou uns 50 anos para atingir 50 milhões de usuários. Mundo afora. A TV precisou da metade desse tempo. A internet civil apareceu no meio dos anos 1990 – e uns cinco ou seis anos depois era consumo de massa e se transformava na internet 2.0, a supervia da informação. As chamadas novas mídias – Youtube, Twitter, Facebook – massificaram-se em dois anos.

Se chamamos isso de vertigem, talvez não seja apenas uma imagem projetada na parece da caverna de Platão. Pode ser a coisa mesmo. Vertigem é algo que desequilibra e desestrutura a percepção, a própria identidade do indivíduo.

Pense na seguinte situação. Começo do século XX, expectativa de vida nos chamados países centrais: 50 anos. Na mesma época, pode-se estimar que os modelos de interpretação do mundo e os instrumentos de trabalho e uso diário duravam uns 30 ou 40 anos. Isto é, duravam esse tempo para ficarem obsoletos e serem substituídos. Agora imagine um indivíduo médio das camadas médias nas cidades – suponha que frequente escola por uns 8 anos e nelas aprenda tais modelos, a física, a química, a biologia do mundo, em sua forma rudimentar, suficiente para enquadrar a ordem desse mundo. Suponha também que aprenda a utilizar os instrumentos do trabalho e da vida cotidiana. Ele os terá diante de si – e serão suficientes – até o final da vida. O transtorno resultante da “viragem do mundo” ocorreria, então, na passagem de uma geração a outra. Daí talvez faça sentido a expressão “conflito de gerações” – a percepção do filho colide com a do pai.

Salte ao começo do século XXI e a expectativa de vida, nesses países, passou dos 80 anos. E segue aumentando. Ao mesmo tempo, aquele ciclo da obsolescência encurtou tremendamente. O mundo aprendido perde sentido a cada dez anos, talvez menos, em alguns aspectos, até os mais elementares. O disco de vinil, fantástica inovação diante dos antigos “bolachões” de goma-laca, deu lugar ao milagre da modernidade representada pela fita cassete, mas o CD não passou de um verão, nessa trajetória – já é “coisa de velho” faz tempo.

Essa mudança da mudança – a aceleração dos ciclos – tem enormes impactos. Na forma pela qual organizamos a educação e a colocamos nas fases da vida, por exemplo. Por que razão ainda pensamos a “fase de formação” como uma espécie de ensaio para uma realidade? Um sequestro do indivíduo, extraído da vida para “preparar-se” para ela? Se é verdadeiro aquele contraste de ciclos – aumento da expectativa de vida e ciclos de obsolescência mais curtos – é provável que o indivíduo destes novos tempos se prepare melhor encurtando e “generalizando” a formação inicial e, depois, voltando periodicamente à aprendizagem.

Mas a nova aceleração dos tempos parece ter também um grande impacto na percepção que temos do mundo e nos desequilíbrios mentais decorrentes. Por isso, é de se esperar que recoloque em novos termos a estabilidade dos grupos humanos.

Essa viragem pode sacudir empresas, ramos econômicos, comunidades – mais rapidamente do que os indivíduos e as famílias conseguem incorporar.  Pode provocar deslocamentos enormes e súbitos na geografia dos empregos. Ou nos seus requisitos de conhecimento e habilidade. Ora, o mundo do trabalho, apesar de alguns exageros “pós-materialistas”, ainda é o núcleo básico da sobrevivência física e mental de homens e mulheres. E o emprego, hoje, pode ser deslocado de um ramo de atividade para outro. Ou, de outro lado, um mesmo tipo de emprego pode ser transladado para outro lugar do mundo, em qualquer momento. Basta um toque no computador da corporação.

A velocidade faz diferença.  Uma coisa é o filho do metalúrgico virar professor, programador ou algo assim. Outra, bem diferente, é o choque que ocorre no antigo operário que precisa, ele mesmo, do dia para a noite, virar qualquer dessas novas “personas” por conta da migração dos empregos ou da automação. Não vai rolar. E o fracasso, a perda do sentido são quase que uma fatalidade.

“E afora este mudar-se cada dia, 
Outra mudança faz de mor espanto, 
Que não se muda já como soía.”

Para onde vão essas pessoas, suas esperanças e desesperos? Quando situações outrora marginais, restritas a grupos pequenos de indivíduos, se tornam o destino de grandes massas, o caminho está aberto para aventuras e saltos-mortais. Vocês entendem.

 

twitter_icofacebook_ico