Um livro merece leitura atenta em toda a universidade brasileira. Penso sobretudo nos setores das humanidades. O volume foi traduzido pela Editora Perspectiva. O mais aparente nele surge como dupla biografia amorosa de intelectuais às voltas com o mundo político, ideológico e religioso alemão durante as duas grandes guerras europeias. A trama foi ideada por Antonia Grunenberg, acadêmica que esteve no Brasil em data recente. Seguir a sua exposição é entrar num túnel do tempo que amplia paisagens ameaçadoras no mesmo passo em que os anos escoam rumo ao desastre. Em suas páginas vamos dos elos entre amantes aos massacres do século 20. Procissão apavorante de indivíduos transformados em fantasmas da liberdade ou bonecos do antissemitismo assassino. Sigamos as linhas diretoras de Hanna Arendt & Martin Heidegger, História de um Amor.
Grunenberg não assume atitude empenhada, sua escrita afasta os vezos militantes. O exame biográfico segue sem cortes abruptos. Pouco a pouco surgem os personagens Arendt e Heidegger antecedidos pelos membros mais relevantes das suas famílias. Depois entram em cena nomes ilustres da ciência e filosofia que marcam debates até os nossos dias. Heinrich John Rickert da chamada Escola de Baden, kantiano ao seu modo e o iniciador da fenomenologia Edmund Husserl estão entre os primeiros. Vários autores aparecem ao lado de personagens estratégicos como Max Weber e outros pináculos da universidade europeia. Alguns entes caricatos ganham em ridículo ao serem aproximados de personalidades trágicas como Walter Benjamim que se matou devido à repressão nazista. Ao contrário de muitas análises sobre indivíduos importantes Grunenberg jamais cita alguém deixando de apresentar o quadro histórico, social, científico em que as suas teses surgiram, se desenvolveram e foram questionadas.
No painel erguido ao redor do casal amoroso sobressaem as figuras de Ernst Cassirer e Karl Jaspers. Num tempo em que as mentes se dobraram diante das mais virulentas ideologias, aqueles mestres mantiveram a postura reta dos filósofos que merecem o nome. Impulsionado pelo pensamento simbólico Cassirer produziu trabalhos essenciais sobretudo para os nossos tempos, quando o autoritarismo mostra as garras em multidões fanatizadas. Seu livro O Mito do Estado alimenta a reflexão, instrui política e teoricamente. Trata-se de um guia liberal para quem foge dos radicalismos. Jaspers médico e filósofo foi amigo de Heidegger até o momento em que o autor de Ser e Tempo abraçou o nazismo em troca de certa reitoria universitária. Uma conversa entre os dois colegas mostra até onde pode descer a dignidade acadêmica. Jaspers pergunta a Heidegger: “como pode um homem tão sem cultura como Hitler governar a Alemanha?”. ("Wie soll ein so ungebildeter Mensch wie Hitler Deutschland regieren?"). Réplica de Heidegger: “Olhai apenas as suas mãos maravilhosas!” (“Sehen Sie nur seine wunderbaren Hände an!”). O culto votado a Heidegger é implacável para com Jaspers. Na França foi censurado o capítulo onde ele narra sua percepção do colega. Quem duvida, coteje o volume da Autobiografia Filosófica de Jaspers com a edição francesa (Ed. Aubier, 1963). Todo o capítulo décimo do livro foi cortado. E ali Jaspers narra o encanto heideggeriano pelas maravilhosas mãos de Hitler. O episódio é recolhido por muitos comentadores e também por Antonia Grunenberg que expõe os conflitos entre os próximos de Heidegger incluindo as mais torpes situações protagonizadas pelo filósofo ainda hoje seguido por múltiplas ideologias.
A ruptura de Jaspers com Heidegger não tratou apenas de um ponto estético, a beleza manual do ditador. Quando o então amigo foi guindado ao reitorado universitário a liberdade dos mestres de ensinar sem repressão ou delações era comprometida. Diz Jaspers sobre a “política acadêmica” de Heidegger: “No primeiro instante ficou claro para mim que estava em jogo a liberdade de ensino. Ela também é destruída em suas raízes quando se permite que os docentes sejam auditados devido a suas opiniões”. O trecho está na mesma Autobiografia Filosófica. Outros pontos interessantes podem ser percebidos no trato entre os dois colegas. Após assumir o reitorado da Universidade de Friburgo (21/04/1933) Heidegger se filia ao partido nazista (membro de número 3.125.894). No pouco tempo em que ficou na reitoria ele seguiu a receita hitleriana para os campi. Depois da guerra, escreve para Jaspers: “Fui parar na máquina do cargo, das influências e lutas pelo poder e partidarismos, de modo que, mesmo se apenas por poucos meses (...) me perdi e me vi intoxicado pelo poder” (Carta a Jaspers, 8/04/1950). O grupo de investigação sobre o caso, instituído pela universidade após a derrota alemã conclui de modo similar: “O Senhor Heidegger ficou fascinado pelo poder (...) o que o atraiu foi a perspectiva de exercer uma forte influência”.
Antonia Grunenberg segue o trato romântico e teórico de H. Arendt e Heidegger. Traição é o termo constante nos textos da filósofa. Não tanto traição amorosa. Heidegger era conhecido, sobretudo por sua esposa, como contumaz namorador, o que os franceses chamam saborosamente como coureur de femmes ou de jupons. Um de seus filhos chegou mesmo a negar o evidente antissemitismo do genitor, alegando ter ele namorado várias mulheres de origem judaica. Não. O desencanto de Arendt é de ordem ética, política, moral. O foco de sua indignação vem da prática heideggeriana à frente da Universidade. Seus atos recebem aval do famoso “Discurso de posse” na reitoria. Ali ele assume o princípio da liderança intelectual (Führung) similar aos demais campos totalitários. Semelhante técnica de controle inaugurou a prática de seguir a ideologia, plasticamente exibida nas maravilhosas mãos hitleristas. E logo veio “a proibição das associações de estudantes judaicos, a inclusão corporativa das organizações na autoadministração da universidade, a introdução do comprovante de ancestralidade ariana e do trabalho comunitário, a suspensão do veto aos duelos entre estudantes, queima de livros segundo o exemplo de Berlim, aulas obrigatórias de esportes militares e instrução ideológica para estudantes e docentes, um setor estudantil encarregado de questões raciais, fechamento de uma república para estudantes judaicos, a saudação hitlerista (...) a concepção segundo a qual a universidade devia seguir as orientações de um Führer, faxina para remover das instituições de ensino superior os ‘elementos hostis ao Estado’, demissão de professores por motivo racial, a cassação da licença de ensino de docentes judaicos, a saudação alemã nas atividades letivas e manifestações de lealdade ao Führer”.
Na última conversa com Jaspers Heidegger confessa que seu cargo lhe permitiu “renovar” os campi nos moldes do nacional-socialismo. No mesmo diálogo ele esbravejou contra a universidade, sobretudo contra seus “altos salários”. E terminou proclamando ao colega: “Existe uma perigosa associação internacional de judeus”. A frase assim vazada no pior estilo de Goebbels veio como réplica à estranheza e repúdio de Jaspers às mentiras contidas nos Protocolos dos Sábios de Sião.
Mas as desconfianças diante de Heidegger não vêm apenas de colegas liberais. Eric Voegelin, conservador lúcido e arguto diz o seguinte sobre o autor de Ser e Tempo: “ele é muito clássico e conservador (platônico) do que eu tinha me dado conta; e, ao mesmo tempo, é singularmente alemão e esquisito. Tendo agora a crer que o nacional-socialismo dele repousa sobre os motivos semelhantes aos de Carl Schmitt, ou do racismo de Laski: uma antecipação inteligente dos elementos políticos no nível dos elementos intramundanos e históricos – mais inteligente do que a ‘decência’ de muitos outros cuja obstinação os protege de aventuras perigosas – mas de estatura intelectual pequena demais para se livrar da asneira da sedução mundana – isso nunca é totalmente suficiente para uma ‘periagogia’(virada, mudança) nos moldes platônicos”. (Carta de Voegelin, 20/05/1950).
A aproximação feita por Voegelin entre Heidegger e Schmitt tem bons motivos biográficos e acadêmicos, além de políticos. Marco apenas uma forte coincidência. Schmitt se embrenhou na via polêmica em prol de uma ditadura do Presidente do Reich e foi contestado por muitos juristas, por exemplo Hans Kelsen. O Chefe de Estado seria o único encarregado de guardar a Constituição porque sua forma de agir não sofreria a lenta maneira de agir dos parlamentos e cortes judiciais. Ele teria condições plenas de, ao decidir questões vitais do Estado, manter a vigência do texto constitucional. Trata-se de uma outra forma de expor a doutrina do Líder que detém a soberania e decide sobre a exceção, sem nada dever à norma jurídica. Ainda hoje o seu livro Der Hüter der Verfassung inspira os golpes de Estado em nome da salus populi. Não foi diferente no Brasil a partir de 1964 com seus Atos Institucionais redigidos por outro cultor do autoritarismo político, Francisco Campos.
Como Schmitt e seu protetor da Constituição, Heidegger via os universitários empenhados no campo nazista como “os guardiões do pensamento”. (Carta a Jaspers 22/06/1949). Também não por acaso Schmitt e Heidegger tiveram que se haver com a questão da culpa durante o regime nazista. O primeiro apontou (num weberianismo perverso) para o espírito burocrático alemão e o segundo tentou esconder sua opção política sob a camada de certa metafísica e da crítica à tecnologia. Como diz nossa autora Heidegger, como Schmitt, “não se via como responsável, e sim como vítima. Imaginando um futuro em que os russos tomariam conta da Europa, o que na época preocupava muita gente, ele também temia represálias por parte do bloco socialista”. Tal desculpa hoje integra o arsenal do revisionismo europeu e alemão, basta abrir livros como o consagrado a Ernst Nolte (Fascisme & Totalitarisme na edição francesa). Jaspers novamente enxerga na saída hedeiggeriana uma evasiva, nada mais.
Arendt partilhou com Jaspers a sensação de ambivalência nas escusas ofertadas por Heidegger. Antes de com ele se encontrar após a Guerra “ela o caracterizava com palavras como falta de caráter, falsidade, palavrório, desonestidade, mendacidade” (Carta de Arendt a Jaspers, 29/09/1949). Mesmo assim ela administrou as traduções dos textos de Heidegger nos Estados Unidos. Mas a teórica manteve o espírito critico. “Ontem eu estava lendo justamente o último texto de Heidegger sobre identidade e diferença, que é altamente interessante, mas ele cita a si mesmo e interpreta a si mesmo como se fosse um texto da Bíblia. Eu simplesmente não consigo mais suportar isso. E ele é realmente genial e não apenas altamente talentoso. Então, por que ele precisa disso? Desses modos extremamente ruins?” (Carta a Blumenfeld, 16/12/1957). Apesar de criticar os maus modos do filósofo e sua narcísica prática escritural, H. Arendt com ele concorda em um ponto estratégico, aliás também assumido por vários escritores da esquerda.
Comecemos com o juízo de Arendt sobre o nazismo. Este último diz ela, “é o produto daquele inferno que se chama liberalismo e em cujo abismo tanto o cristianismo quanto o iluminismo se perderam” (Carta a Gurian, 4/3/1942). Tal análise, diz Grunenberg, “coincide com grande parte do que Heidegger pensa bem como com os juízos de Georg Lukács, Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e muitos outros. Também Heidegger pensava que a democracia moderna de massas (como fundamento do liberalismo moderno) teria impedido o acesso de seres humanos ao que seria essencial para eles. Ambos concordavam que a Modernidade produzira essa ruptura a partir de si mesma”.
Apesar de todos os senões diante do pensamento heideggeriano, o grupo acima mencionado (a suposta Escola de Frankfurt) assumia atitude próxima à dele no trato com a modernidade. Mas a invectiva mais fulminante lançada contra o filósofo veio de Hans Jonas, um discípulo inconformado com as atitudes do mestre. “Um filósofo não deveria ser enganado pelo nazismo. Ele não deveria sê-lo. E o fato de que isso falhou no caso do maior filósofo da época, de que uma vida a serviço da verdade não tivera como efeito a elevação das pessoas, de que dessa proximidade à verdade ou dessa busca da verdade não resultou uma humanidade compassiva – senti isso para além de toda decepção pessoal, como debacle da própria filosofia”. (Jonas, Ernkentnis und Verantwortung, 1991).
A questão da responsabilidade a ser cumprida pelos pensadores e políticos segue todo o caminho teórico de Arendt, como também o de Jonas. A sua grande pergunta é resumida por Grunenberg: “como se lida com o desaparecimento da responsabilidade sob o domínio total? Como se pode reconstruir a responsabilidade quando seus portadores se transformaram em destinatários de ordens desprovidos de vontade? Qual a diferença entre responsabilidade pessoal e política?”. Finalmente: “as pessoas abrem mão da responsabilidade quando não são capazes ou não estão dispostas a avaliar as situações em que se encontram ou as ações com que se deparam ou que elas próprias realizam”. O tema atravessa os escritos de Arendt e se mostra candente e incompreendido nas análises sobre o julgamento de Eichmann. Ali ela mantém os resultados terríveis de Ser e Tempo sobre o Dasein imerso no anonimato covarde do “se”, no “faz-se, fala-se, julga-se” como “todo mundo”. De tamanho pântano moderno brotam as plantas venenosas do totalitarismo cujas flores se apresentam na “banalidade do mal”. No entanto, para prejuízo da filosofia, “o maior filósofo alemão” do período tombou de quatro em semelhante terreno viscoso, o que não o diferencia de um burocrata assassino que matou milhares de seres humanos.
Como diz Luciano Canfora, a filosofia é uma profissão de risco. Ela pode cair na bajulação do poder ou fugir dos poderosos que ameaçam seus cultivadores. Hoje, mais do que nunca, no mundo e no Brasil, a periculosidade filosófica deve ser observada. É grande a tentação entre muitos intelectuais de assumir cargos para, aproveitando o mando sem limites, impor rumos catastróficos ao pensamento e ação. A prudência, velha amiga da filosofia, aconselha cautela. Hoje Hitler manda nos palácios e, com suas belas mãos, assina a pena de morte para milhões. Amanhã suas cinzas jazem diante do Bunker em que se escondeu com sua corte trágica e caricata. Hoje o Palácio do Planalto abriga defensores da ditadura, da tortura, dos exílios, do genocídio negro e indígena. O nosso presidente não tem belos dotes manuais. No entanto, em comum com os ditadores do século 20 ele ostenta com orgulho a incultura e o pleno ódio aos saberes. Estamos dispostos a assumir nossa responsabilidade e recusar tais formas de agir? Só o tempo dirá, nos previsíveis julgamentos que, à semelhança de Nuremberg, ouvirão as desculpas mais inverossímeis à guisa de direito, filosofia, moral. Esperemos.