“Deus nos disse que não são os deputados que vão mudar essa nação, não é o governo que vai mudar esta nação, não é a política que vai mudar esta nação (...) É a igreja evangélica, quando se levanta” (Damares Alves). Por mais estranhas tais frases, elas não constituem novidade no Brasil. Trata-se do arcaico programa religioso de impor um poder teológico – político – como enunciou Spinoza no seu tempo – para que os católicos e os protestantes pudessem controlar o Estado e a vida social. Tal poderio usou a guerra, massacres recíprocos, assassinatos, golpes de Estado e terror para definir hegemonias. Os crimes em nome de Jesus lavaram com sangue as ruas europeias. Missas eram interrompidas por cavaleiros protestantes e os presentes espezinhados até a morte. Cultos protestantes invadidos, resultado similar. Quem segue a história da Europa e das religiões encontra violências de todos os envolvidos, na missão supostamente divina de retomar o Evangelho, cujo núcleo é paz e fraternidade.
O final das guerras religiosas foi desfavorável às igrejas, a Católica e a Reformada. O Estado puniu os contendores (mais o protestante) estreitando a margem de manobra dos combatentes. G. Naudé (Considerações Políticas sobre o golpe de Estado) louva a Noite de São Bartolomeu e nela enxerga uma decisão importante para mostrar aos fanáticos que a vida social e política seria prerrogativa da autoridade civil, não da hierarquia sagrada. Pastores e bispos dizem possuir toda razão e o monopolizar a verdade. Chegamos à pergunta bíblica: “Quid est veritas?”. Vejamos o que dizem filósofos em meio às batalhas em prol da “verdade religiosa”.
Segundo Montaigne “a razão sempre vai, torta e manca, desancada e com a mentira e a verdade. Assim, é árduo descobrir seus erros e desregramento. Sempre chamo a razão como esta aparência de discurso que cada um de nós forja em si mesmo” (Essais, II, 12). Cada seita, avançam os Ensaios, gera seu modelo imaginário e ninguém entra em acordo sobre o que é e o que deve ser feito. A cada nova imaginação acrescentamos outras, o que prova que somos desiguais em relação aos outros e a nós mesmos. Outro pensador, Le Vayer, enuncia: cada um aprova “pela manhã o que condenará na tarde, e com frequência de maneira distinta se o seu temperamento o quer assim”. Piores são os remédios trazidos à inconstância da vida, sobretudo na religião. Para combater a mutabilidade do pensamento são produzidos mecanismos de opinião a que se nomeia “fé”. Monobloco de consciência a “opinião própria” é desejo reativo de constância. É o que ocorre com os protestantes e católicos apegados à crença mais por desejo do que por anseio de verdade, não querendo tombar como os outros na infinita variação opinativa. O endurecimento da consciência também se deve, dizem os filósofos, ao amor próprio que prefere o falso à confissão de ignorância. Segundo Le Vayer, o dogmatismo resulta de toda discórdia ou erística, erotismo de contradizer. A guerra santa vai da inconstância ao enrijecimento, das críticas sem freios ao dogma. Poucos se contentam com o provável mas todos afirmam sem dúvidas as suas teses. Se na Igreja Católica o papa não erra, na consciência protestante todos são infalíveis. Os infalíveis se matam e a guerra civil impede qualquer Estado seguro. Tal é a lição dos eventos na França nas guerras confessionais.
Com o belicismo dogmático, os populares desobedecem os príncipes. É conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária. Pouco se analisa seu outro escrito, Mémoires de nos troubles sur l´ Édit de janvier 1562. Com as lutas religiosas na Guiana a corte envia o doutor aos locais para recolher sugestões jurídicas. É clara a cautela de La Boétie frente ao povo. Guerras religiosas espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do rei”, e o povo “se acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntariamente deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade ou licença, o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o povo, tendo sabido que não é obrigado a obedecer ao príncipe natural na religião, faz péssimo uso dessa regra a qual, por si mesma não é má, dela tira a falsa consequência de que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas e se outorga o juízo sobre o bom e o ruim. Ele chega à ideia de que só existe a lei da sua consciência, ou seja, na maior parte, a persuasão de seu espirito e fantasias (…) nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”.
Logo, “o povo não tem meios de julgar porque desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, acredita por intermédio de outros (hoje diríamos, acredita nas redes sociais e nunca na pesquisa, no exame, na prudente ciência). A multidão crê mais nas pessoas do que nas coisas, é mais persuadida pela autoridade do orador do que pelas razões enunciadas”. Na crise política de legitimidade, afirma La Boétie, é preciso cautela contra o bicho de muitas cabeças “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”.
As batalhas entre reformados e católicos, pensam os juristas, ameaçam o Estado. É preciso dar um fim às rebeliões. Em janeiro de 1562, l’Hospital fala em nome do rei à Assembleia de Presidentes e Conselheiros dos Parlamentos da França reunidos em Saint-Germain-en-Laye. A tentativa é atenuar as lutas físicas entre o partido católico e huguenote. Carlos IX abre os Estados Gerais (13/12/1560) e participa do Colóquio de Poissy organizado por Catarina de Médicis e Michel de L’Hospital, tendo por alvo aproximar os inimigos. Único resultado: a lista dos desacordos. Em 31/01/1561 um Ordenamento é assinado pelo rei proibindo perseguições contra os protestantes. As querelas aumentam. O católico duque de Guise tudo faz para gerar a guerra civil no “Massacre de Wassy”. Ele quer assistir a missa, se irrita com os cantos dos protestantes e os massacra. Os huguenotes comandados por Louis de Condé e pelo Marechal Coligny perdem batalha em Dreux (19/12/1562). Guise cerca Orléans mas é assassinado por um protestante. Antoine de Bourbon, chefe reformado, é morto em Rouen. Catarina de Médicis aproveita o sumiço de ambos os líderes e oferece liberdade (apenas privada) de culto aos huguenotes.
Condé cai na batalha de Jarnac, logo é executado. O marechal Coligny refugia-se em La Rochelle. Catarina de Médicis assina a paz em 1570. O rei tenta a união dos inimigos. Em 1570 são dadas garantias aos huguenotes e La Rochelle, Cognac, Montauban , com liberdade de culto, menos em Paris. Tal política se inspira em Michel de L’Hospital. Catarina arrisca nova guerra civil. A família Guise quer vingar o seu chefe e tenta matar Coligny, contrata assassinos de aluguel. Em 22/08/1572 Coligny sofre um atentado, recebe a visita do rei mas o soberano assume a ideia de Catarina de aniquilar os protestantes acusados de subverter o mando civil. O Marechal é executado, depois de sua morte ocorre “A noite de São Bartolomeu” (na verdade, as noites…) e também em Paris, Lyon, Dijon, Blois, Tours, com cerca de 15 mil mortos. O rei perde a confiança dos súditos e os protestantes enfraquecidos não se rendem e se rebelam em 1573.
Carlos IX não une os súditos sob a sua autoridade. É esse o desejo de l´Hospital na mencionada reunião em Saint-Germain-en-Laye de 1562 : “O rei não quer que entreis em disputa sobre qual opinião (religiosa, RR) é a melhor. Porque não se trata aqui de constituenda Religione (….) sed de constituenda Republica. E muitos podem ser Cives, que non erunt Christiani, e pode-se viver em repouso com os de opinião diversa, como vemos numa família, onde os católicos não deixam de viver em paz e amar os da nova religião”. Temos a forma laica imposta pelo Estado. A unidade do mando se dissolvia a olhos vistos nos territórios nacionais. Oposta ao ceticismo que impulsiona a secularização social e política, a imaginação religiosa engendra o amor próprio como se fosse amor divino, acompanhado do apego a uma ideia, o que enfraquece o juízo crítico e exige adesão à “verdade”.
A sequência de horrores continua nos séculos seguintes. Católicos perseguem protestantes, religião minoritária mas que reunia nobres e burgueses ricos. No século 18 ainda a intolerância semeia ódios e desunião na Europa. O ápice de tal processo podemos indicar no caso Calas. Protestante, ele tinha um filho que ouvia música em igrejas católicas. O rapaz é morto, o rumor toma conta da cidade e, claro, a fake news do momento é ter Calas assassinado o filho com receio de sua conversão ao catolicismo. Calas foi desmembrado publicamente com óleo quente posto nas juntas. Sua família perdeu os bens e foi ameaçada de exílio. Voltaire retomou o processo e mostrou a inconsistência jurídica dos tribunais. Finalmente, conseguiu a inocência do réu. Não cabe aqui descrever o Inferno promovido pelos “piedosos” protestantes e católicos. Naquele momento a secularização e a laicidade da esfera terrestre afastam os que se julgam donos do céu.
O século 19 herda as lutas entre o poder laico e o eclesiástico. A Igreja, a cada instante mais enfraquecida, adianta fórmulas absolutistas em favor de seu mando. Com a Reforma ocorrera o mais forte abalo ao poder absoluto do Sumo Pontífice. Na França, o galicanismo prova uma crise profunda entre os alvos da Santa Sé e os poderes nacionais, apoiados por significativo número de fiéis e clero. Desde o Concílio de Trento a Igreja buscou novas maneiras de exercer o mando exposto por Roberto Bellarmino. Trata-se da “soberania indireta” do Papa, que desafia as pretensões do Estado de controlar corpos e mentes.
A separação entre Igreja e Estado, nuclear na Revolução Francesa e norte-americana, nunca foi aceito pela Santa Sé. No Tratado de Latrão com Mussolini, escreveu Pio XI ao cardeal Gasparri, negociador entre os poderes: “Na Concordata estão um diante do outro, senão dois Estados, certissimamente duas soberanias plenas, isto é, perfeitas cada uma na sua ordem, ordem necessariamente determinada pelos respectivos fins onde quase não é preciso que a dignidade objetiva dos fins determina não menos objetivamente e necessariamente a absoluta superioridade da Igreja”. A mesma lógica segue a Concordata do Vaticano e Hitler. Com ela foi desarmada a resistência católica ao nazismo. Em troca veio a proteção do Estado à Igreja. Artigo 5 da Concordata: “No exercício de sua atividade sacerdotal, os eclesiásticos gozam da proteção do Estado do mesmo modo que os empregados do Estado”. As saudações nazistas de bispos pagaram tal proteção. Os católicos que não assumiram tais compromissos foram desarticulados pelo Vaticano. Eles foram remetidos ao “silêncio obsequioso” na matança assumida pelo poder totalitário. Ainda nos recentes debates sobre a Constituição europeia a Igreja pressionou para que fosse proclamado o seu papel de fundamento histórico, social, cultural e político da Europa.
Com a revolução industrial surgem novas formas de pensar a vida econômica e jurídica, o que afeta as teses católicas sobre a vida coletiva. O modelo da Cristandade medieval se atenua. Max Weber mostra, em Economia e Sociedade que, após a revolução industrial, setores medianos e operários da população deixam o manto protetor da Igreja e assumem formas secularizadas de pensar, rumo ao liberalismo ou socialismo.
O Brasil do século 19 recebe o peso da centralização eclesiástica no Vaticano. A Questão Religiosa foi causada no ímpeto de controlar a Igreja nacional pelos defensores da laicidade estatal e pelos ultramontanos. Os choques levaram à prisão de bispos, isolamento dos mesmos, etc. No imaginário católico, a Igreja seria o sustentáculo das instituições, da família à sociedade e ao Estado. O catolicismo estaria na raiz dos povos ocidentais, como o Brasil. Todo pensamento (liberal, socialista, protestante) deveria ser combatido pela força policial. O Padre Soares d’Azevedo identifica em 1922 setores evangélicos como espiões do... “imperialismo norte americano”. Patriota, só o católico obediente à Santa Sé. (Brado de Alarme, Rio, Typographia Des. Lima Drummond, página XV e seguintes).
Embora feliz com o fim do Padroado (“a gaiola de ouro” segundo os bispos), a Igreja exige ser tida como a base de toda a Nação. Em tal programa consta um movimento para subjugar instituições aos planos eclesiásticos. Surge a Cruzada da Boa Imprensa, do Cinema correto, a Liga Eleitoral Católica e outros. O ensino vinha da Cátedra de Pedro: “A Igreja e o Estado devem ser unidos um ao outro como alma e corpo, que constituem no homem um todo natural” (Immortale Dei). Na mesma Encíclica é afirmada a indiferença da Igreja frente às formas de governo, desde que a supremacia espiritual do catolicismo seja mantida.
Após o refluxo do positivismo que marca a primeira república, o Brasil conhece um fortalecimento do ideário liberal. Contra a Igreja, a Constituição de 1891 afirma a laicidade da esfera pública. Mas a partir de 1930 o Estado Novo fornece poderes para o campo eclesiástico. Uma reação ao modernismo e ao liberalismo (ao comunismo, socialismo, maçonaria, espiritismo, etc) se afirma. A liderança era da equipe de intelectuais reunidos na revista A Ordem (a biblioteca do IFCH tem parte da coleção). A Igreja colabora na formulação e prática do Estado Novo. Choques ocorrem quando ela envereda no corporativismo católico, diverso ao imposto pelo Estado. Como nos acordos com Mussolini e Hitler, o trato entre Igreja e Vargas ajuda a ambos ao afastar da cena política o liberalismo e o socialismo. Já nos trabalhos para a Constituição de 1934 a bancada religiosa, parte em guerra contra o liberalismo que, segundo os bispos e leigos, responderia pelos “males de que padece a civilização, desde que foi implantado em 1789, com a Revolução Francesa”. E segue Luís Sicupera, citado por L.W. Vianna: a Igreja é “o pensamento moderno a dirigir e a inspirar como sempre os Estados Novos, que sem ela nada realizam”. Os liberais denunciam o “imperialismo” católico, conduzido por um Estado estrangeiro com agências no país, o que traz obstáculos à soberania nacional. A Igreja traria o princípio da desigualdade no seu bojo. “Medida indispensável de progresso e até de segurança pública a decretação do divórcio perpétuo da Roma eclesiástica do Brasil político” (Saldanha Marinho, citado por M.S. Bresciani Martins).
Temos literatura sobre o período no qual Estado e Igreja se uniram no Brasil do século 20. Jessie Jane Vieira ao analisar o corporativismo católico (Círculos Operários), Romualdo Dias que examina os elos entre Igreja e Vargas, em grandes manifestações de massa, integram o rol dos que apresentam dados sobre o conúbio entre catolicismo e poder.
Passemos ao protestantismo. Acusadas de, como vimos no caso do Padre Soares d’Azevedo, invadir o sacro território católico a serviço do imperialismo norte-americano, as igrejas protestantes são perseguidas. Basta abrir a Revista Eclesiástica Brasileira (REB) ou a Revista Vozes, para constatar a campanha acirrada contra o protestantismo. Os reformados, em especial os presbiterianos e metodistas, preparam elites intelectuais para as lutas contra o catolicismo hegemônico. Pastores e fiéis adquirem conceitos teológicos e uma ética rigorosa, modesta nos sentimentos e na sua expressão. Tudo o que descreve Max Weber em seu conhecido ensaio.
Com o tempo chegam os cultos emocionais e fundamentalistas, especialmente os de origem norte-americana. Neles se atenua o papel da filosofia e teologia na formação dos pastores e praticantes. Entra em cena uma economia da salvação que rompe com o ideário transcendente. Agora são prometidos milagres em tempo imediato, o fervor substitui a fé unida à racionalidade. Num país onde a prática teológico-politica foi semeada desde o século XVI, mas que recrudesceu no século XX, as certezas liberais e outras vertentes laicas se enfraqueceram. Política e religião se unem na consciência das massas, como siameses. Basta recordar o culto do Padre Cícero Romão perceber a intimidade entre os dois fatores. O fervor religioso segue para o culto dos grandes homens a eles emprestando uma aura salvacionista próxima das esperanças apocalípticas.
Quando igrejas de origem protestante com peso maior nos elementos emotivos surgem no país, elas preenchem um déficit de paixão negligenciado na Igreja Católica e Igrejas Protestantes. À racionalidade burocrática e política da primeira, o peso da razão nas segundas, os novos cultos opõem emoções e milagres. Gradativamente tal imaginário miraculoso se dirige para a vantagem econômica e social. Além da salvação no paraíso, as novas agremiações prometem mudança de status social para melhoria dos indivíduos e famílias. Quando o número dos seguidores atinge um patamar elevado, começa a formação de pastores e leigos para exercer a vida política na defesa dos interesses religiosos. Está armado o novo cenário teológico político com a Bancada da Bíblia, a qual, por sua pujança, atraiu o apoio de setores da direita e da esquerda política.
Com a eleição de Bolsonaro, os evangélicos desejam impor sua pauta ao país, como a Igreja Católica ao longo de 500 anos. A guerra dos católicos contra o Estado laico, liberal ou socialista é retomada por denominações protestantes que passam a ser maiorias. O ânimo de uma Cruzada contra a secularização estatal, a busca de reformar leis que defendem minorias, um patriarcalismo retrógrado, tudo surge nas lutas ideológicas atuais. Ah! No seu entender os evangélicos não têm ideologia, mas fé. Ideólogos são os outros. As minorias que se acautelem. Adubado por séculos de mando religioso contra a democracia laica, temos um terreno cheio de dogmas e anátemas. Agora ele não é mais definido pelo Index Librorum Prohibitorum mas pelos ditames da Escola Sem Partido (só vale o partido evangélico ou de direita), pelo Syllabus (mas a elite evangélica tem sua tábua de proibições dogmáticas e morais), ou pela cátedra de Pedro. O púlpito de Damares Primeira servirá como norte político do Brasil. A salvação social e política está posta na sua Igreja. Glória, Aleluia.