Um erro teórico e político grave reside no fato de o adepto de certas doutrinas só examinar artigos e livros dos favoráveis à sua grei. Tal falha em tempos antigos era intitulada fanatismo. Os católicos não liam textos protestantes, o apoiador de Stalin não lia Trotsky e assim por diante. O aficionado de uma linha ideológica não consulta os livros de outra. E assim o fenômeno se espraia por toda a cultura. “O filme que você assistiu é bom?”. A resposta, positiva ou negativa, leva sempre em conta: a película expõe uma tese favorável à “nossa” causa? Caso contrário o trabalho é péssimo. Não vale pagar o bilhete para assisti-la. E no teatro, nas artes plásticas, mesmo na música, o roteiro é sempre o mesmo: “bom ou ruim?”. Como critério estético tal vezo é de baixa qualidade. Mas cumpre com eficácia a tarefa de organizar fileiras fortalecidas na “luta”. O leitor preso à sua doutrina sofre de estrabismo cognitivo: só enxerga a narrativa de sua horda, pois cego para a mantida pelos inimigos.
Exemplo de leitor lúcido e ao mesmo tempo comprometido com batalhas sociais e políticas o temos num pensador hoje em dia pouco citado, mesmo em setores imaginariamente progressistas. Karl Marx testemunha uma quantidade ímpar de leituras na história científica. Sua obra, dos textos juvenis aos da maturidade, citam as mais diversas escolas doutrinárias. Do seu doutorado, sobre Epicuro e Demócrito, à Crítica da Economia, os pés de páginas estão plenos de autores os mais contraditórios entre si. Aliás, não por acaso os textos de Marx trazem quase sempre no subtítulo a palavra “crítica”. Nascido para o mundo intelectual após a filosofia kantiana, ele não apenas vai além dela, como a emprega com exatidão em sentido materialista. Marx não apreciava Ricardo, Smith, Hegel, Fichte, Rousseau, Feuerbach e uma plêiade de autores que defendiam ideias contrárias às suas. Mas a todos deu a atenção devida, lendo e refletindo sobre cada frase, cada fórmula matemática, cada sofisma. Antes de jogar livros de lado, ou de ignorá-los porque não coincidiam com as suas premissas, Marx os lia, anotava, pensava. O seu exemplo basta para indicar a relevância de abandonar leituras partidárias. Marx não se pergunta se um livro é bom ou ruim, mas ao mesmo tempo sabe pelo coração autores nada revolucionários como Shakespeare.
O introito acima é necessário porque procuro discutir um livro de circunstância, de autor nada apreciado pelos democratas e progressistas. Falo das confissões e ataques trazidos pelo volume de Luiz Henrique Mandetta, Um paciente chamado Brasil, os bastidores da luta contra o coronavírus (RJ, Editora Schwarcz S/A, 2020). Como é de se esperar, o livro inteiro reúne uma apologia pro vita sua. Como em muitas escritas similares, o autor se apresenta sob uma haura imaculada e seus adversários recebem cores sombrias. Mandetta seria um Quixote atacando moinhos enganadores e enganados: jornalistas, militares, médicos bolsonaristas, políticos de direita ou esquerda, etc. Terminada a leitura, resta suspirar murmurando: “um herói, um santo”. Poliana para sua própria atividade e Maquiavel para a dos outros, o ex-ministro de Bolsonaro passa como gato por brasas sobre os motivos que o levaram a votar, apoiar e depois servir um presidente jejuno e adversário das ciências e da ética governamental. É como se estivéssemos diante de um acidente inesperado. De um momento para outro ocorre um equívoco fatal e Mandetta se une a um ente humano primário, negacionista, sem erudição alguma em qualquer campo do saber. Um elogiador da tortura que defende a eugenia de modo tosco. “Um negro de 15 arrobas no mínimo, que nem serve para procriar”. E Mandetta aceita o convite para ser ministro da Saúde de uma pessoa assim, por ele conhecida desde longa data, porque foi dela colega no Congresso Nacional. A batina do coroinha Mandetta foi suja pelo sangue expelido nas falas e gestos (o da arminha é dos mais inocentes, lembremos a promessa de matar todos os petistas quando chegasse ao poder) do seu lamentável patrão.
É difícil acreditar nos bons propósitos do ex-ministro, as suas abençoadas intenções para salvar o adoecido Brasil. É possível imaginar um médico embebido na mais pura ética e que deseja salvar um paciente com ajuda de um elogiador da tortura? As mortes pela Covid já estavam anunciadas nos gestos de arminhas e outros, aliás partilhados por evangélicos de fancaria, pois os há e muitos, no Brasil.
Não seguirei página por página o livro do ex-ministro. Ele está aí para ser lido por fascistas, democratas, socialistas. Seus capítulos ajudam a entender a lógica genocida que impera hoje no governo e no Estado nacional. O autor completa o retrato de Dorian Gray de militares, diplomatas, médicos, burocratas e políticos que hoje desgraçam a nossa vida pública. Assim, a sua inspeção permite entender os alvos e premissas dos que, no Palácio do Planalto, conspiram dia e noite para retomar a violência ditatorial de 1964.
Teço considerações sobretudo sobre os parágrafos que se dirigem ao partido político denominado, com expertise de marketing, Lava Jato. Mandetta joga uma luz inédita sobre o episódio execrável das chamadas Dez Medidas contra a Corrupção, decálogo inidôneo e imoral elaborado por Dallagnol e comparsas. Cito o próprio Mandetta: o projeto “nasceu de uma campanha da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba e trazia itens muito polêmicos como restrições ao habeas corpus, premiação monetária para delatores, e que transformava caixa dois em crime com efeito retroativo, ou seja, seria crime mesmo para quem tinha praticado o delito antes de a lei entrar em vigor, um absurdo em termos legais”. A partir daí Mandetta expõe seu colega de partido e amigo (até então...) Onyx Lorenzoni. Este último, no conhecido esquema do ut des imperante no Congresso, recebeu de Rodrigo Maia, recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados, o presente da relatoria sobre os Dez Mandamentos, digo as Dez Medidas proferidas pelo pastor Dallagnol e seus acólitos.
Onyx, sabemos e Mandetta repete, começou a negociar as dez medidas com os partidos políticos. Os parlamentares esperavam que o relator atenuasse as propostas dos Torquemada curitibanos. Mas os deputados perceberam que ele “não tinha aliviado em nada os artigos mais controversos”. Dentre as medidas apresentadas estava a previsão de um prêmio em dinheiro para delatores, o que desagradava os parlamentares, diz Mandetta. Em conversas escondidas, os mesmos deputados criticam pesadamente todo o projeto e o seu relator. Mas a imprensa apoia tudo aquilo e o Ministério Público pressiona intensamente os atores políticos para a aprovação. E segue Mandetta: “Onyx ouvia, mas não arredava o pé de fazer exatamente o que os procuradores da Lava Jato do Paraná queriam. Muitos deputados haviam sido alvos de operações e reclamavam das arbitrariedades cometidas pelo grupo paranaense, que agora era o fiador das propostas dez medidas”.
Mandetta não diz palavra alguma sobre as demais arbitrariedades cometidas cum icto pelos comparsas de Sergio Moro. Nenhuma sílaba sobre as violências sofridas por Luiz Inácio da Silva e outros militantes da esquerda. É previsível o silêncio no assunto. Mas a passagem deixa clara a opção preferencial de Mandetta pela justiça caolha. Agora chega o ponto cômico e dramático do enredo: ao ser criticado asperamente pelos deputados, e sofrer as mesmas críticas de Mandetta, Onyx exibe uma gravação do encontro no qual foi cobrado com dureza. “Quero ver eles aguentarem a mídia em cima deles”, disse o relator/delator. O conteúdo da gravação trazia “impropérios contra os membros do Ministério Público”. E aduz nosso heroico ex-ministro: “O Poder Judiciário e o Ministério Público tinham muita força naquele momento, e o Legislativo estava sob pressão”. O procedimento de Onyx, embora não ilegal, é pessimamente encarado por todos os políticos, por motivos óbvios. “No meio político é pecado mortal. Quem faz isso nunca mais é chamado para nenhum tipo de conversa em lugar nenhum”. “Em 2016 Delcídio do Amaral foi cassado do mandato de senador porque na delação que fez para sair da prisão na Lava Jato se comprometeu com o Judiciário a secretamente gravar as conversas que tivesse com os senadores. Foi cassado por unanimidade por causa disso”.
Como fruto do comportamento mantido por Onyx e com a repulsa contra as Dez Medidas, elas foram derrotadas. “Foi um massacre”. Não só isso, mas o projeto recebeu acréscimos que puniam o abuso de autoridade pelos juízes e procuradores. Onyx estava no inferno astral em pleno Parlamento. Aí surgiu a via salvadora para ele, que se uniu à campanha Bolsonaro para a Presidência da República. Teve um papel destacado naquela guerra infame de mentiras, calúnias, ameaças de morte contra o “inimigo”. Dançou no ritmo dos gestos que imitavam armas, colaborou para a escolha do atual mandatário. E, como o colega Mandetta, apesar de tê-lo denunciado aos companheiros do Congresso (pois foi ele, Mandetta, a pessoa que contou aos colegas sobre o material gravado) o ajudara a escapar da raiva, então sentida universalmente contra ele, o sugeriu para o capitão vencedor. Ele seria o ministro da Saúde.
Mandetta cumpriu o papel de delator do colega junto aos seus pares. Onyx por sua vez preparava um “vazamento” para a imprensa (com a evidente colaboração dela), a serviço da Lava Jato (cuja conivência era desejada por Onyx). Edificante comédia/tragédia de sicofantas, embora indigna de um Aristófanes porque as comédias gregas eram de elevada estirpe perto da chanchada cotidiana do Estado brasileiro.
Sicofantas. É com tal palavra que se iniciou minha fala à Comissão da Câmara dos Deputados encarregada de analisar as Dez Medidas. Convocado pela mesa (na qual tinha assento estratégico.... Onyx Lorenzoni), iniciei minhas considerações lembrando o dito de Lorde Acton: “O poder corrompe. O absoluto corrompe absolutamente”. E logo a seguir discuti o artigo 38 do projeto, sobre o delator pago. É incrível que um texto, cometido pelas vestais de araque comandadas por Dallagnol, contenha um parágrafo tão corruptor! O sicofanta que delatar algo “fará jus à retribuição de até 5% do produto obtido com a liquidação desses bens”. Perguntei aos deputados presentes: “Foi refletido, na redação do artigo, o passivo moral que a prática instaura ou reitera?”. Silêncio no plenário da Comissão. Passei aos nefastos “testes de integridade”, propostos justamente pelos que recomendavam premiar a corrupção maior da justiça, o pagamento pela delação secreta. E conclui o trecho: “No teste de integridade o indivíduo está solitário, sem apoio de seus representantes como sindicatos e associações, etc., diante de um poder invisível que só responde a posteriori, mas que deve silenciar o nome e as condições do interrogado”. E passei às provas ilegais (!) que deveriam ser legitimadas segundo os pretensos Catões de Curitiba, por terem sido obtidos “de boa fé”. Mostrei a covardia mental e de ânimo que reside na proposta indecente. Terminei indicando no projeto “pelo menos três pontos que mereceriam ser refletidos com muita prudência: primeiro, esse problema do teste de integridade; segundo a questão da boa-fé, que é tão importante quanto; e terceiro, essa questão inicial (...), a falta de critérios para se encaminhar uma acusação”.
Minha fala foi silenciada pela mídia. Em jornais como O Globo, o que eu disse foi cortado, ficando apenas duas linhas anódinas sobre o que tinha sido dito por mim. Nenhuma surpresa, visto que o partido político clandestino chamado Lava Jato tem ainda hoje o apoio pleno do sistema Globo. Temos aí um elemento para recordar a pergunta de um teórico da comunicação: “se as notícias são quase infinitas, porque os jornais têm sempre o mesmo número de páginas?”. Alguém escolhe, alguém afasta, alguém silencia, alguém censura. O pior escândalo da imprensa “livre” é que seus profissionais, não raro, exercem a função de armar a perene coleta de um sujo Index Librorum Prohibito rum.
Mas peço a atenção para o encadeamento dos fatos, não noticiados pela imprensa e hoje “revelados” por Mandetta: Onyx, relator do projeto sobre as Dez Medidas estava de conluio com os integrantes da Lava Jato. Onyx foi o quase delator dos seus pares congressistas junto à imprensa, em favor da Lava Jato. Onyx, como pagamento a um favor de Mandetta, o indicou para o Ministério da Saúde. Não é preciso nenhum curso elementar de lógica para aduzir que o mesmo intermediário entre a Lava Jato e o Congresso, entre a Lava Jato e a imprensa, serviu como intermediário entre Mandetta e Bolsonaro. Fica meridiana como o Sol a constelação nefasta que passou a nortear os destinos brasileiros desde 2016. Todos os que a integram são cúmplices do modo perverso pelo qual foram conduzidas as propagandas em prol da Morte, liderada por sicofantas e corruptos de todos os calados.
Nem Mandetta, nem os militares colocados nos postos chaves do Executivo Federal, nem os integrantes da Lava Jato têm o direito de lavar as mãos pelo verdadeiro genocídio que o Brasil enfrenta. A ignorância de quem se tornou presidente prometendo a morte e a repressão selvagem, a tortura e a matança de negros, indígenas e dos que não aceitavam suas teses letíferas, era evidente, brilhava como o astro rei. Aceita pactuar com ele quem é seu igual. É o caso de Mandetta, generais, Sergio Moro e outros. Não existe em política nenhum Lobo Mau, nenhum Chapeuzinho Vermelho. Quem partilha a toca do lobo não tem o direito de invocar os sofrimentos da Vovó quando ela é devorada. Se existir algum Nuremberg no futuro, todos ficarão no banco dos réus. Para nos dar a certeza de semelhante política selvagem, serve a hagiografia de si mesmo publicada por Mandetta. O paciente Brasil, cedo ou tarde, saberá que médicos se aboletaram nos consultórios infectos do poder. Se dele foram expelidos ou saíram por receio do Horror, é indiferente. Cidadãos aos milhares serão exterminados numa prática que desmente todas as sílabas e consoantes do Juramento de Hipócrates.
***
PS: Minha fala à Comissão da Câmara que estudava as Dez Medidas redigidas pelos sucessores de Moisés em Curitiba pode ser lida quase integralmente no Site da Câmara dos Deputados, com a data de 22/08/2016.
Observação: Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.