Senhores magistrados brasileiros. Dirijo a presente mensagem ao seu coletivo sabendo que muitos togados não precisam ler ou ouvir o que segue abaixo. Mas noto, com indignação cada vez maior, um comportamento anômalo em alguns de seus pares. Tal prática tem as marcas da tirania, impossíveis de serena acolhida em regime democrático. Aprisionamentos e conduções coercitivas a presumir culpa e não inocência de pessoas mostram um vezo perigoso. Em semelhante matéria chegamos à banalidade dos faits divers que geram uma opinião pública colonizada pela propaganda, oficial ou particular. O uso da humilhação é técnica eficaz para aterrorizar a cidadania. O povo brasileiro já foi garroteado por duas ditaduras ferozes que usaram à exaustão o monopólio estatal da força física, pisoteando a dignidade das pessoas. Muitas famílias guardam memórias de membros seus presos, torturados, exilados, censurados, expulsos dos cargos ou empregos por agentes que aplicavam aquele monopólio.
Nos últimos dias um poderio bruto se volta contra os campi nacionais e, neles, ressurge o arbítrio arrogante de quem imagina tutelar a existência coletiva. Lembro fatos pretéritos, figuras que anteciparam o que hoje ocorre na esfera estatal. A ditadura instaurada em 1964, por intermédio de soldados, humilhou a veneranda figura do professor João Cruz Costa, na USP, dele exigindo entoar o hino nacional como “prova de brasilidade”. Na prática daquela selvageria, não tivemos nenhum traço novo, visto que o nacional-socialismo obrigava os contrários a Hitler a cantar estrofes nauseantes da Horst-Wessel Lied. Todos os que depreciam o Brasil e parolam sobre proezas educacionais na Coréia do Sul, sequer lembram: aquele país usou métodos e ideias de um grande professor brasileiro, Anísio Teixeira, perseguido e humilhado por beleguins. Ainda hoje sua morte está envolta em espessas sombras, tal o clima de segredo repressivo imperante na época. Com a ditadura brasileira a caçada à intelligenzia ergueu um pensador que apoiara o regime de 1964, mas se assustou com a truculência dos que diziam ter cometido o crime de lesa ordem constitucional para “combater a subversão e a corrupção”. Seu nome era Tristão de Athayde. Ele define a campanha contra universitários como “terrorismo cultural”. As suas denúncias narram as infâmias cometidas em nome de supostos valores morais, usados como desculpa para o assassinato da liberdade. O terrorismo cultural retorna no Brasil do século XXI, por mãos de quem deveria zelar pelos direitos, sobretudo o de pensar.
Ocorrem naquela mesma data as cassações de professores e cientistas, o estupro dos campi pela força policial armada. A resistência a tais procedimentos foi erguida por outra figura venerável, o reitor Pedro Calmon Muniz de Bittencourt, nome essencial para o exame da história pátria. Quando esbirros ameaçaram faculdades e institutos por ele dirigidos, com base no monopólio usurpado da força, o líder acadêmico pronunciou frases que ontem, hoje e sempre devem iluminar as decisões judiciais e as práticas de sua polícia. Disse o Magnífico Reitor: "aqui, esses beleguins de tropa militar não entram, porque entrar na Universidade só através de vestibular". Calmon não era apenas mestre do saber histórico. Ele dominou a língua de Camões. Com o termo “beleguins” para indicar policiais truculentos a serviço de juízes submissos ao poder ilegítimo, o Reitor sintetiza a história nada democrática da nossa instituição estatal, incluindo os tribunais, as algemas e os revolveres que os servem.
“Beleguim”, embora de origem incerta, tem forte nexo semântico com o espanhol “belleguín”, “agente de justicia” segundo a Real Academia Española em seu Dicionário. O termo de uso anticuado se refiere a un funcionario público o un ministro inferior que es el encargado de aprisionar y a su vez de ejecutar a los reos y los presos, que se dice corchete o alguacil de la misma acepción. Completa razão teve Calmon ao chamar os que invadiram os campi de beleguins. Eles agiam em nome de juízes, muitos deles comprometidos com a ditadura instaurada no país desde o primeiro Ato Institucional. E recordemos a pergunta de Pedro Aleixo: o presidente talvez não abuse do Ato número 5, “mas e o guarda da esquina?”. A culpa dos atentados aos direitos civis, hoje, não pertence sobretudo aos beleguins, mas aos que acima deles decidem nos tribunais.
Nem todos os magistrados brasileiros, na época, dobraram a cerviz. Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e outros resistiram e foram perseguidos, cassados, exilados. Quando ocorreu a proibição do habeas corpus, poucas togas se levantaram em defesa do direito e da justiça. Em se tratando de beleguins e juízes, sempre é bom lembrar, com o Padre Vieira, que mesmo eles podem ser resgatados para o bem comum. Escutemos o nosso oráculo ético: “Uma das profissões mais arriscadas a não ser justo é a dos ministros da justiça, ou sejam os que a sentenciam, ou os que a defendem, ou os que a escrevem, ou os que a executam; mas todos, se o fizerem com pureza de coração, podem ser santos. Santo Ereberto e Santo Tomás de Cantuária foram chanceleres; S. Hieroteu e S. Dionísio Areopagita, desembargadores; S. Pudente e Santo Apolônio, senadores; S. Fulgêncio, procurador da fazenda real; Santo Ambrósio, S. Crisóstomo e S. Cipriano, advogados; S. Marciano, S. Genési o e S. Cláudio, escrivães; Santo Anastásio e S. Ferréolo, juízes do crime; Santo Aproniano e S. Basilides, esbirros ou beleguins; e até no vilíssimo exercício de algozes foram santos S. Ciríaco, Santo Estratonico, e outros” (Sermão de Todos os Santos). Não desesperemos, pois. Mesmo juízes que marcham apenas atrás dos exércitos mais fortes podem seguir o caminho da atrição e da contrição. Quantos? Mistério.
Ocorreu com os jesuítas, defendidos pelo Padre Vieira, o que hoje acontece com os reitores ameaçados e postos à beira do suicídio. “Quem havia de crer que houvessem de arrancar violentamente de seus claustros os religiosos e levá-los presos entre beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas, e tê-los aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem?”. (Sermão da Epifania). Quem haveria de crer que magistrados e seus auxiliares entrariam nos campi à caça de reitores levando-os presos sob ferrolhos, e com guardas, até os desterrarem? Os juízes que não enxergam limites ao seu poder e dele abusam profanam o habitáculo onde se faz ciência e se busca o verdadeiro, o bom, o belo. Pelo que fazem hoje no campus, é possível visualizar sua prática estudantil. Brilhante não era, com certeza, dado o desprezo que exibem diante do saber e dos que o cultivam.
Os espetáculos por eles gerados, de caráter sádico e sem peias, testemunha a inutilidade do chamado sistema de ensino e justiça no país. E novamente recorro, senhores magistrados, ao bom Padre Vieira. Os homens imprudentes “inventaram e formaram Leis, levantaram tribunais, constituíram magistrados, deram varas às chamadas Justiças, com tanta multidão de ministros maiores, e menores, e foi com efeito tão contrário que em vez de desterrarem os ladrões, os meteram das portas adentro, e em vez de os extinguirem, os multiplicaram e os que furtavam com medo, e com rebuço, furtavam debaixo de provisões, e com imunidade. O Solicitador com a diligência, o Escrivão com a pena, a Testemunha com o juramento, o Advogado com a alegação, o Julgador com a sentença, e até o Beleguim com a chuça, todos foram ordenados para conservarem a cada um no seu, e todos por diferentes modos vivem do vosso”. (Sermão da Segunda Dominga da Quaresma). Perseguições cruéis de cientistas e professores não abolem o fato corrupto mas o pioram, pois distraem o público das façanhas conduzidas pelos verdadeiros larápios dos cofres nacionais.
Senhores juízes: beleguins e suas chuças, prisões e conduções sob vara, não dobram o intelecto que nos campi busca a verdade. Conforme ensina Spinoza na monumental Ética demonstrada geometricamente, “um pensamento é limitado por outro pensamento. Mas um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo”. É tarefa inútil e ignara usar corpos de repressores para impedir o pensamento. A massa de soldados pode prender, suicidar, exilar, censurar. Mas sua ação só ocorre no plano dos corpos. O pensamento, essência da busca universitária livre, não é por eles impedida. Nem pelos senhores.
Os magistrados que movem a força em vez da razão, muito provavelmente passaram rápido pelas aulas de filosofia ética e doutrina. Talvez as consideravam meras “perfumarias” acadêmicas. Não meditaram com Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino e outros luminares do pensamento. Se tivessem compulsado devagar e atentamente os escritos que edificaram a justiça e o direito, teriam lido a seguinte advertência nas Leis, escritas por Platão:
“Se um magistrado pronuncia uma sentença injusta ao avaliar certo dano sofrido, sua responsabilidade para com a vítima do prejuízo deve ser o dobro do valor em causa. Quem assim o quiser pode processar nas cortes comuns os juízes que decidiram injustamente nos casos a eles trazidos”. (*)
(Leis, 846b).
Em nosso Brasil, quanto devem pagar os juízes que autorizam humilhações e abuso da força? Que falem os familiares do Reitor Cancellier, de outros reitores e docentes tratados como se criminosos fossem, antes mesmo de um julgamento e, menos ainda, de um veredicto. Muitos juízes brasileiros não leram as Leis platônicas e não foram advertidos sobre os danos que podem sofrer, caso só operem de acordo com a vontade de potência, sem passar pela epikéia, a justiça em sentido próprio. Cabe ao povo pressionar os legisladores para que abusos de muitas togas sejam punidos. E também sejam sancionados negativamente os truculentos beleguins. Até lá, a cidadania, que paga impostos para obter sentenças prudentes, diz em uníssimo: basta! Magistrados surdos à voz da justiça podem integrar, cedo ou tarde, a lista biográfica dos Atrocious Judges: Lives of Judges Infamous as Tools of Tyrants and Instruments of Oppression (Richard Hildreth, 1856) Quem viver, verá.
(*) Comentário lúcido feito por um intérprete das leis gregas: “One can hardly imagine a more dramatic remedy against judicial injustice than a suit for damages against the judge”(Glenn R. Morrow, “Plato and the rule of Law”in Vlastos, G. (ed.) Plato 2, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosophy of art and religion).