Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Meditação sobre os juízes (1)

Autoria
Fotos
Edição de imagem
A Volksgerichtshof (Corte do Povo) foi oficializada em 1934 para processar “traidores”
A Volksgerichtshof (Corte do Povo) foi oficializada em 1934 para processar “traidores”

“Eu não julgo a vítima, mas apenas os juízes”. A frase tremenda foi enunciada por alguém que não era socialista nem de esquerda. Falo do Padre Laberthonière, que recusa a pretensa soberania da lei e denuncia os tribunais de exceção. Atrás da lei, disse o sacerdote, surgem pessoas que a usam como instrumento de domínio. No recurso de Luiz Inácio da Silva, discutido em Porto Alegre, juízes exibiram seu poder. Jornalistas e universitários discutiram o fato. A maioria deles estranhou a tese segundo a qual a sentença aumentaria o fascínio do político junto aos pobres e setores da classe média. “Mas e a unanimidade assumida pelos juízes?” A pergunta tem réplica: unanimidade não significa posse do verdadeiro. A gente pobre sabe o desprezo que muito magistrado nutre por suas causas e pessoas. A elite jurídica imagina a si mesma acima do povo, do Estado, das leis.

Quando a Constituição completou vinte anos,  fui convidado pela Unafisco – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal,  Ajufe – Associação dos Juízes Federais do Brasil, Sinal –Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central e ANPR – Associação Nacional dos Procuradores da República, para um seminário em Porto Alegre. A Lava Jato inexistia, mas seus vagidos já eram ouvidos em ações vetadas pelo STF.

Não levei boas notícias às togas e não fui por elas festejado. Aqueles numes tiveram razões ponderáveis de irritação após minha análise. Passados dez anos sintetizo aqui o que lhes disse face a face: sua ingerência política prejudica a  sociedade e o Estado. Em São Paulo, pouco antes, certo Desembargador falou sobre três jovens presos por crime não  cometido por eles. Ao defender o arbítrio, foi aplaudido pelo promotor:  “todo preso diz ser torturado”. Os meninos deixaram a Detenção após sevícias e  dois anos em cela superlotada, suspeitos de estupro e assasinato. Foram soltos porque o “maníaco de Guarulhos” confessou. A ONU alerta contra a persistência no Brasil “de tortura para obter confissões, execução extrajudiciária de suspeitos". Rara lucidez social surge no Judiciário, como a do juiz Nivaldo Mulatinho Filho. Ele puniu algozes de uma criança de Recife, jogada em tina de ácido a ponto de sua pele, na fala dos próprios policiais, parecer “papel amassado”. Ela roubou goiabas na vizinhança de uma oficina que pintava automóveis. O vigia chamou a patrulha. A defesa dos agressores alegou que a vítima “não tinha credibilidade”. Como se a película corporal destruída não fosse crível o bastante.   Na toga brasileira poucos ostentam o senso de justiça do juiz recifense. [1]

Juízes surdos (bom padre Laberthonière!) não existem apenas no Brasil. O velho Israel e a antiga vida grega tiveram magistrados parciais. "Havia numa cidade certo juiz que nem a Deus temia, nem respeitava o homem. Havia também na mesma cidade uma viúva, que ia ter com ele, dizendo: ‘Faze-me justiça contra o meu adversário’. Ele por algum tempo não quis atendê-la; mas depois disse consigo: ‘Ainda que não tema a Deus, nem respeite os homens, todavia, como esta viúva me molesta, hei de fazer-lhe justiça, para que enfim não volte e me importune muito’". (Lucas, 18, 4- 8). No Brasil, grande parte dos tribunais pouco escuta e nada responde. Notícia de última hora: “Laurita Vaz, primeira mulher a presidir o STJ, negou – durante o recesso do Judiciário – pedido para que uma lactante respondesse a processo em casa. A mulher, cujo filho mais novo tem um mês de idade, é ré primária e foi presa por portar 8,5 gramas de maconha. Na decisão, Vaz disse que a mãe não conseguiu comprovar ser imprescindível para seus… cinco filhos. A decisão judicial causou indignação entre defensores visto que Vaz concedeu prisão domiciliar a Roger Abdelmassih em julho” (O Estado de São Paulo, 02/02/2018). Talvez a magistrada precise consultar um otorrino, já que a consciência está amortecida.

“Se um magistrado decide algo injusto e causa danos ao litigante, sua pena face à vítima deverá ser o dobro do valor reclamado. E todo aquele que desejar poderá ir às cortes comuns contra os magistrados, por causa de decisões injustas”. (Platão, Leis, 846 b) E mais: “Nenhum juiz ou governante deve ser isento de responsabilidade pelo que faz como juiz ou governante”. [2] É platônica a noção de checks and balances. O filósofo, diz G. Morrow, quer evitar práticas como as da Star Chamber, usadas pelos soberanos para governar contra as práticas judiciais comuns. [3]

Cautela deve ser assumida diante do juiz. Ele vincula a lei e os cidadãos. M. Stolleis tece considerações relevantes sobre os magistrados. Depois da Grécia, em vez do povo soberano, o juiz "julga em nome de um outro e maior poder. (...) Desde que Bodin apresentou a soberania como o poder do seu possuidor de dar ordens a cada indivíduo e a todos, legislando, o Estado moderno tornou-se um Estado de legislação".

Dos Levellers aos democratas franceses temos a Nação uniforme, não três corpos sociais como a nobreza, o clero e o terceiro estado. A graça divina é afastada pela soberania do povo, as leges fundamentales dão passo à Constituição. A mudança exigiu sangue dos que fugiam da Justiça  absolutista. [4] E o juiz? Ele, adianta Stolleis, é unido à lei que “não mais é ordem de um soberano onipotente, mas compromisso entre o parlamento e o governo”. Os jurados indicam que a justiça foi transferida do monarca  para o povo.

O Estado constitucional usa o juiz para domesticação, uma tragédia política. A globalização mina os Estados fracos e, diz Stolleis, um brinquedo chinês, importado e revendido, pode conter integrantes perigosos. Qual a situação, em termos legais, se o dano ainda não foi detectado? Ou a manteiga dinamarquesa subsidiada pela Bélgica e trazida para a Argélia via Bavária e Itália para ser reimportada na Europa como óleo? Trata-se de fraude, mas sob qual lei? O juiz deve ser ao mesmo tempo especializado e generalista, o que traz incertezas. [5] O togado que alega neutralidade e proclama nunca "fazer juízo de valor" só triunfaria em países que negam a publicidade e a prestação de contas ao povo. Mas nos tribunais norte-americanos, quantos juízes recusaram a Lei Patriótica? Os processos contra torturadores brasileiros mostram o peso do tema. A lei de Anistia deu salvo conduto aos que usaram torpemente a força do Estado.

Nas formas judiciais burocráticas existe a perpetuidade do cargo. O que não significa a posse do mesmo cargo. “Quando garantias são dadas aos juízes contra destituições ou remoção arbitrárias, tais medidas procuram oferecer ´segurança´ no cumprimento objetivo e isento de consideração pessoal, o dever específico imposto pelo cargo correspondente. (…) O funcionário administrativo, em todos os casos, pode ser despedido com mais facilidade do que o juiz ‘independente’” (Max Weber).

A burocracia afasta a subjetividade, das partes à defesa, desta à promotoria e ao juiz. “O juiz moderno”, diz Weber, não mais depende de um soberano (rei, papa, aristocracia ou povo), mas a sua independência diante de pessoas é paga pela inserção na máquina que o controla.  Alguém que deve decidir com raciocínio se reduz a um "autômato de parágrafos” legais (Ein Paragraphen-Automat) cujo funcionamento é calculável. [6] Não há juízo, só mecanização, pesadelo dos gregos ao romantismo. [7] Nele, Joseph K. se move sem saber os motivos do processo. E nem o julgador conhece o que o leva a condenar indivíduos. Ele é prisioneiro da máquina.  Vale retomar as reflexões de Jan kott em Shakespeare nosso contemporâneo, sobre as engrenagens do poder. [8]

Pensadores do século 17, quando se firma a razão de Estado, notaram o advento da armadilha mecânica que devora quem se julga superior aos humanos, do rei aos juízes. Trata-se da sociedade automática descrita na Lógica de Port Royal. O poderoso almeja ser obedecido como se as pessoas fossem ferramentas, “entièrement privées de raison et de pensée”. Ao mesmo tempo ele deseja “mandar em homens, não em autômatos pois seu prazer consiste na visão dos movimentos gerados pelo medo, estima, admiração que eles geram nos outros”.  O paradoxo é vivido no governo, quartéis e tribunais. É delírio e sonho impossível. Mas nele se define o poder moderno. [9]

Cito Eric Voegelin e o julgamento de Hans Hefelman. O réu afirma que "os procuradores de justiça chefes e presidentes das Cortes de Apelação tinham declarado apoio à eutanásia. O acusado de cumplicidade na morte de 73 mil supostos doentes mentais, disse que o secretário de Estado do Ministério da Justiça, doutor Franz Schlegelberger (....) fez uma preleção na conferência em que declarou que a ação ´T 4´ era legal. Nenhum dos cem membros antigos, entre os quais estava o presidente da Suprema Corte, Erwin Bumke, objetou". O fundamento "legal" era um decreto sigiloso de Hitler. Brasileiros sabem o que significa decreto secreto. Na época, quantos juízes aqui se levantaram? Voegelin: "Temos documentos do encontro. Esses advogados, entre eles o presidente da Suprema Corte, Bumke, sabiam que a campanha fora planejada, de fato, sem base legal, com fundamento no decreto secreto do Füher (...) Testemunhas da cena descrevem como os presidentes da Corte de Apelação olharam para Bumke – o que dirá Bumke? – e Bumke nada disse!”. [10]. A máquina de moer consciências estava em plena opetração, no judiciário.

As cortes especiais de justiça, instaladas em Vichy, marcaram presença na Alemanha. Entre elas, a Volksgerichtshof (Corte do Povo) oficializada em 1934 para processar “traidores”.  Naqueles tribunais tudo foi rápido e seguiu para a humilhação do acusado, exibido com algemas. A defesa era simbólica, o juiz e o promotor se uniam nas invectivas contra o preso. Apelos proibidos, o réu eliminado em poucas horas. [11]

Notas

[1] R. Romano, “Como papel amassado” in  Lima JCF, Neves LMW, (org): Ed. Fiocruz; 2006 : Fundamentos da Educação Escolar no Brasil Contemporâneo, www.epsjv.fiocruz.br/upload/d/CAPITULO_4.pdf

[2] Platão.  Comentários de G. R. Morrow, que cito sem modificações notáveis.

[3] G. R. Morrow “Plato and the Rule of Law” in G. Vlastos (ed.) : Plato, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosophy of art and religion, T. II (University of Notre Dame Press, 1978), pp. 144 e ss. O ensaio de Morrow é de 1946.  “I confess to a secret fondness for Plato´s proposal, because it strikes at a defect in the administration of justice to which our Anglo-Saxon lawyers seem to be congenitaly blind, viz. the abuse of judicial power. For the rule of law, as it worked out in our legal institutions, means the rule of judges, and this kind of rule, like any other, can become tyranny unless properly safeguarded.” Op. cit. p. 157.

[4] J. Campbell: Atrocious Judges: Lives of Judges Infamous as Tools of Tyrants and Instruments of Oppression (London, John Murray, 1849). Urge consultar os clássicos da resistência, como O Direito dos Magistrados e Vindiciae contra Tyrannos. Este último foi traduzido em nosso idioma por F. V.  Carvalho (Ed. Discurso).

[5] Cf. Stolleis, M/: A History of Public Law in Germany, 1914-1945 (Oxford, University Press, 2004).

[6] M. Weber, “Parlament und Regierung im neugeordneten Deutschland”. Gesammelte Politische Schriften, J.C. Mohr, 1971, p. 523.

[7] A., Droz: Les automates, figures artificielles d’hommes et d’animaux, Histoire et Technique, Ed. Du Griffon, 1949.

[8] Logique de Port- Royal, introdução e notas de Ch. Jourdan, Hachette, 1854,  p. 65

[9] J. kott, Shakespeare nosso contemporâneo, SP, Cosac Naif para a edição brasileira.

[10] E. Voegelin, Hitler e os Alemães (São Paulo, É Realizações, 2008), pp. 92-93, Por volta de mil juristas alemães colaboraram com o nazismo. Cf. H. Camarade: “Le passé national-socialiste dans la société ouest-allemande entre 1958 et 1968. Modalités d’un changement de paradigme mémoriel” in Vingtième Siècle. Revue d'histoire, 2011/2 (n° 110), pp. 83-95.

[11] J. Snowden, “The Nazi Judiciary”  in http://www.spiegel.de/international/germany/from-dictatorship-to-democracy-the-role-ex-nazis-played-in-early-west-germany-a-810207-4.html

twitter_icofacebook_ico