Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Sobre o sincericídio

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Foto: ReproduçãoEm frase célebre sobre a semiótica, campo de estudo muito forte no século 20, Umberto Eco mostra que o maniqueísmo, tendência recente da história (se a pensarmos em milênios) não tem lugar legítimo na técnica ou ética. Ele é um desvio da cultura. Recordo o enunciado.  "A semiótica é em princípio a disciplina que estuda tudo o que pode ser usado para mentir. Se algo não pode ser usado para contar mentira, não pode ser movido para contar a verdade: de fato, não pode ser usado para 'contar’ coisa alguma. Penso que a definição  de uma 'teoria da mentira' deve ser tomada como excelente programa compreensivo para uma semiótica geral" (1). Verdades e mentiras são aprendidas, ampliam-se após habitar a língua de cada indivíduo, grupo, cidade, país. Wittgenstein considera a mentira "um jogo de linguagem que precisa ser aprendido como qualquer outro" . Como filósofo ele adianta que "a linguagem disfarça o pensamento" (2).

Nos debates recentes sobre as fake news, os aspectos definidos por Eco ou Wittgenstein têm sido negligenciados. Muita escrita retoma, nolente volente, o comportamento maniqueu segundo o qual a veracidade encontra-se totalmente numa seita – ideológica, religiosa, política – e a prática mendaz teria seu habitáculo no campo alheio. Semelhante fanatismo gerou  intolerâncias que massacraram milhões na idade moderna. A "boa ética" só residiria nos que partilham as mesmas crenças, os mesmos gestos, as mesmas palavras. Quem não segue os mesmos códigos simbólicos, linguísticos ou  estéticos, é inimigo. Tal fonte nutriu um oceano de doutrinas, entre elas a de Carl Schmitt: o outro é inimigo, lição básica do fascismo (3).

Vale recordar um hermeneuta que observou, no papel de vítima, a propaganda nazista e nela percebeu traços de um movimento oposto, o Iluminismo. No mesmo impulso de Theodor Adorno e seus pares, ele identificou na escrita das Luzes elementos que exigem precaução máxima. Trata-se de Erich Auerbach. Ao discutir o estilo de Voltaire, ele fala de um truque comum da propaganda. O golpe consiste "em iluminar excessivamente uma pequena parte de um grande e complexo contexto, deixando no escuro todo o restante que puder explicar ou ordenar aquela parte, e que talvez serviria como contrapeso do que é salientado; de tal forma diz-se aparentemente a verdade, pois que o dito é indiscutível, mas tudo não deixa de ser falsificado, pois que, da verdade faz parte toda a verdade, assim como a correta ligação das suas partes" (4).

Talvez a noção empregada por Auerbach tenha origem em Hegel. É costumeiro lembrar o dito hegeliano, na Fenomenologia do Espírito,  sobre as partes e o todo, na  captura da verdade. Poucos recordam que no filósofo a verdade é descrita como o delírio das bacantes, roda louca na qual as partes embriagadas se dissolvem quando extraídas do todo, temos aí a  origem do trecho marxista sobre "o que é sólido se dissolve". Tudo se resolve em novas totalidades mais amplas e complexas.  O verdadeiro é movimento de vida e morte, nunca experiência de um só lado. Outro locus hegeliano  explicita a diferença entre o concreto e o abstrato. Concreto é o todo orgânico. Como no caso de uma árvore: a sua verdade é constituída pelo solo, ar, água, calor – importa a releitura de Empédocles para seguir os primeiros passos de Hegel e companheiros, como Hölderlin – raízes, tronco, galhos, folhas, flores, frutos. Separar alguns momentos ou parcelas é tarefa da abstração. Hegel mostra que o Todo é passageiro, nunca um dado final no processo da busca pela verdade. Nos embates entre pessoas, abstrata é a fala que ataca subjetividades, as retirando do todo em que elas se movem. É próprio da má fé (tema fascinante, trabalhado em outro sentido por Jean Paul Sartre) separar o subjetivo, colocando-o como alvo único, sem passar pelo que o envolve. Um hilariante texto hegeliano mostra até onde vai a hipocrisia que opera com tais abstrações (Cf. Quem pensa abstrato?, 1807).

Voltemos ao crítico Auerbach. O truque da propaganda é fácil de ser descoberto "mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo; quando uma forma de vida ou um grupo humano cumpriram seu tempo ou perderam prestígio e tolerância, toda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se ter uma semiconsciência do seu caráter de injustiça, com alegria sádica". O estilo rápido de Voltaire, propaganda do sistema capitalista e das instituições afins, contra o Antigo Regime, serve como plataforma do pensamento burguês a partir do século 18. Para arrasar o inimigo, sobretudo com o ridículo, é indispensável o domínio do tempo na escrita. O tempo rápido serve a Voltaire para caçoar de "quem merece" com inclemência. O manejo temporal, diz Auerbach, em dias recentes trouxe "as mais atrozes florações". A propaganda do século 20 acelera o ritmo das mensagens dirigidas às multidões e também encolhe a extensão da análise. O uso intenso dos slogans e ditos fulminantes a serviço da venda e compra de mercadorias, e de seres humanos, adquiriu ares de vitória decisiva a partir da Guerra Fria. É a era do "I like Ike" e dos nomes presidenciais em abreviacão, JFK nos EUA, JK no Brasil.  A brevidade vocabular impõe nomes e mensagens. No mesmo passo, na imprensa o número de palavras por artigos e matérias diminuiu drasticamente. Após a operação Liliput, na imprensa escrita, veio o encolhimento temporal no rádio e na TV. Vivemos em tempo voltaireano e nele quanto mais rapidamente o ridículo é aplicado aos inimigos, maior coesão nas seitas, mais eficácia nos slogans e palavras de ordem.

No século 18 o ridículo mata. O mercado soberano de nossos dias engorda a tolice e dela tira partido. Por exemplo, os acentos freudianos e infantis de alguém que hoje ocupa a Casa Branca. Em guerra contra a democracia e os inimigos (árabes e latinos sobretudo) dos EUA, aquele indivíduo não teve dúvidas ao replicar ao governante da Coreia do Norte que afirmara ter um botão para impor mortes ao país dominante: "o meu é maior". Conversa de garoto aos 11 anos. Mas existiria ridículo maior do que o enunciado "Trump presidente?". Só conheço outro non sense: "Temer presidente". Como disse uma política brasileira outro dia: “não temos presidente, mas um refém”.  O patrocinador americano de reality show piora a receita. Ao conversar com parlamentares sobre a imigração, disparou que os candidatos a entrar nos EUA vêm de países que seriam shithole countries (5). Ridículo e mentira unem-se desde a primavera humana. Mas o resultado daquele conúbio é trágico. Rimos com Rabelais, Erasmo e Voltaire, lamentamos com Hitler e a propaganda ao estilo do tempo rápido,  da Blitzkrieg ideológica.

De Platão com a "nobre mentira" a Goebbels (leitor da filosofia grega, em especial da República) e Oliver North, o general do caso Irã Contras que mentiu ao governo e ao povo norte-americano, defendendo para si tal "direito" (6), caminhando para o inefável Trump, a mentira e verdade são, em política e assembleias religiosas, armas de destruição individual e também em massa. Na ordem internacional, mentira e ridículo integram a panóplia bélica e diplomática (7). Nos casos bélicos intersubjetivos (estado que nunca abandonamos, pedida a devida venia a Hobbes) a verdade assumiu um novo apelido, após Rousseau. Quem usa o verdadeiro unilateral para destruir os demais é "sincero". As "redes sociais" habitadas por "sinceros". Quase todos ali dizem "a verdade" sobre seus inimigos, e recebem o troco equivalente.

A sinceridade é modo traiçoeiro e dissimulado de ataque mortal.  Ela nem  é de fato verdadeira, nem falsa. Nas dobras do efetivo e do delírio, ela encontra seu conforto. Como você está gorda e feia! Desculpe, estou sendo sincera.... Como sua universidade é ruim... como seu país é lastimável, como seu povo é corrompido.... desculpe, estou sendo sincero! Sob a máscara da sinceridade, movem-se o caluniador, o invejoso, o fascista em estado puro. Ah, esqueci de dizer, a sinceridade quer honras de patriotismo, moralidade, ética. Trump é sincero e seus eleitores partilham tal atitude. Todo fascista é sincero, até a hora em que, para sua infelicidade, chega o Tribunal de Nuremberg.  O sincero é o hipócrita que seguiu os exércitos mais fortes. Tal é  a sua desculpa, cujo odor é de morte.

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(1) Eco, Humberto: A theory of semiotics, Indiana University Press, 1976.

(2) Na tradução inglesa (Philosophical Investigations I, Basil Blackwell, 1958):  Are we perhaps over-hasty in our assumption that the smile of an unweaned infant is not a pretence? —And on what experience is our assumption based? (Lying is a language-game that needs to be learned like any other one). Victoria Camps, La mentira como presupuesto in El discurso de la mentira, C.C. Del Pino (Ed/), Madrid, Alianza, 1988.Schmitt, C. La notion de politique, théorie du partisan (Paris, Flammarion, 1992

(3) Temos muito a meditar acerca da noção de inimigo,  com a onda de ódio  contrária à imigração árabe no mundo e na Europa. Em As raizes do Brasil encontramos um elo estranho entre o historiador pátrio e o jurista. Cf. Márcio Seligman Silva: “Sobre a passagem do registro da cordialidade para o da hostilidade: o caso Paul Celan –Claire Goll ” na Revista Letras número 32, volume sobre Ética e Cordialidade, 13/05/ 2007

(4) Mimesis, The representation of Reality in Western Literature, Doubleday, 1957.

(5) The Washington Post, 12/01/2018.

(6) Jon Hesk, Deception and Democracy in Classical Athens, Cambridge, 2000.

(7) John J. Mearsheimer: Why leadres Lie (Oxford, 2011). O nariz de Bush e aliados aumentou com as lorotas (acreditadas pela imprensa norte-americana e internacional) sobre as “armas de destruição em massa” de Sadam Hussein.

 

 

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