Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Um alerta sobre os supostos inimigos, internos ou externos

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Foto: ReproduçãoO caráter heteróclito do governo eleito em 2018 salta à vista dos observadores atentos. Uma só ideia é partilhada: a transformação de atores sociais e políticos no Grande Satã a ser vencido a ferro e fogo. Os filhos do Inferno seriam a imprensa escrita, as universidades públicas, a esquerda ideológica e os intelectuais, além é claro dos movimentos que reúnem grupos minoritários. Quanto ao restante, interesses múltiplos se digladiam na pressa de nomear ministros e secretários, cada um deles representando um lobby poderoso: indústria (armas tem status privilegiado), escolas privadas (cuja fome de recursos ameaça os campi e instituições como o sistema S) [1], seitas lideradas por pastores/políticos, alas conservadoras da Igreja Católica (dirigidas pelo cardeal Tempesta), ruralistas refratários à preservação do meio ambiente, aos direitos indígenas e de quilombolas sobre nacos de terra.

A lista poderia ser grande, mas o núcleo duro encontra-se nos acima nomeados. “Os príncipes comandam os povos e o interesse comanda os príncipes (...) o príncipe pode se enganar, seu Conselho pode ser corrompido, mas apenas o interesse nunca falha. Se for bem ou mal entendido, ele faz viver ou morrer os Estados”. [2] O duque de Rohan, militar, diplomata, estadista (na era de Richelieu o título é relevante) diagnostica de modo certeiro a doença maior do Estado, mazela que o acomete ainda hoje: se o dirigente político não entende o verdadeiro interesse do país, perde-se toda esperança de salus populi, o mando se enfraquece em prazo médio e longo, outras nações tomam a dianteira. Não por acaso mais tarde, já no século 19, Fichte disse, ao comentar a política de Maquiavel, que se um Estado não cresce, inimigos se reforçam em seu detrimento. [3]

No mundo de hoje, o grande tabuleiro da força internacional traz o jogo da tecnologia.  Se é verdade que desde os primeiros passos da humanidade vivemos em tecnosfera (para usar o termo de Leroi-Gourhan, que citarei adiante), o povo que não possui meios para gerar saberes técnicos sobre a natureza e a sociedade está fadado a servir os interesses de outras gentes. É por semelhante motivo que universidades, laboratórios, bibliotecas devem se constituir como o primeiro interesse dos governos. No Brasil, para nosso desconforto, o investimento no setor tem sido negligenciado. Tempos atrás a Fapesp publicou uma pesquisa mostrando que se fossem consideradas as instituições de pesquisa, de Recife a Porto Alegre, teríamos condições de ombrear com países importantes da Europa. Nos faltava uma política de investimentos que permitisse a passagem dos saberes para a indústria, em programas de inovação. A Fapesp é a única fonte fiável no processo, com um programa bem-sucedido naquele plano.

Pouco antes do impeachment de Rousseff, a Finep (na época dirigida por Glauco Arbix e outros) anunciou o investimento de muitos recursos financeiros em inovação. Mas no próprio governo Rousseff, dada a crise que abalou a Federação, os Estados e municípios, somas imensas foram extraídas da pesquisa e da inovação. O desastre se acentuou no período dominado por Temer, quando cortes foram aplicados em número inédito na Capes, no CNPq, na Finep, em toda a rede de financiamento da pesquisa. As universidades públicas (as únicas onde se pratica pesquisa avançada) foram postas em apuros financeiros, quando não submetidas a atos repressivos sem base, como ocorreu na Universidade Federal de Santa Catarina com o suicídio provocado do reitor.

É assim que as falas dos futuros ministros de Estado trazem incertezas e temores para a comunidade científica e humanística brasileira. Tomo o exemplo do possível responsável pelas universidades e pela Ciência e Tecnologia no país. Em sua primeira fala, Marcos Pontes diz que na administração combaterá “inimigos internos e externos com o mesmo sacrifício de vida”. [4] No mesmo discurso ele falou em recuperar o orçamento de C&T, elevando-o acima do irrisório 1% ou pouco mais do PIB. O fato é, que desde muito tempo, mesmo antes do período Dilma/Temer, presidentes e ministros propõem elevar a fatia do PIB dedicada ao setor. Luiz Inácio Lula da Silva prometeu, antes de seu primeiro mandato, algo em torno de 4% do PIB para a área. Uma bravata a mais no curriculum daquele dirigente. Mas fiquemos na figura dos inimigos, interno ou externo.

É no mínimo imprudente num país onde medrou a Doutrina de Segurança Nacional, repetir uma palavra de ordem que serviu ao governo de exceção para invadir laboratórios, bibliotecas, salas de aula. Basta ler a bibliografia histórica. E não se diga, como afirmou um general também ministeriável, que se trata de pura invenção para deslustrar o regime. [5] Na Doutrina mencionada, definida na Guerra Fria, o mundo é visto como embate entre comunismo e democracia, mundo ocidental e oriental. Para além dos fantasmas etnocêntricos trazidos por semelhante clivagem, tivemos nacionalismos que separavam as ideias legítimas, as do “mundo cristão, livre e democrático”, das ideias “exóticas’ cujo efeito era arrancar a fibra patriótica de nossa gente. O que viesse do Oeste era correto e devia ser assumido. O que vinha do Oriente precisava ser exorcizado. É assim que um escritor proeminente, Gustavo Corção, colocou em dúvida o envio do Sputnik ao cosmos... Só poderia ser propaganda contra a nossa cultura.  É em tal contexto que prosperou a tese do “inimigo interno”, o subversivo que arruinaria os valores pátrios.

Em atitudes mentais que dividem e separam o “nosso” e o “deles”, o amigo e o inimigo, não existe lugar para a ciência e as técnicas. Tais formas de agir, por definição, entram num circuito universal, o da humanidade. Uma técnica engendrada em país inimigo – em termos ideológicos, religiosos, bélicos – pode ser útil para o nosso coletivo. As crenças e ideais conflitantes não impedem, mas estimulam trocas de instrumentos e conceitos científicos. Apenas quando elementos alheios ao processo inventivo na ciência são determinantes, em Estados cuja tentação é totalitária ou autoritária, as doutrinas políticas, ideológicas, religiosas servem como obstáculo contra as descobertas da ciência e da técnica. É preciso convir: na investigação não existem amigos ou inimigos, mas concorrentes. Uma descoberta não recebe sua importância da amizade ou inimizade de coletivos alheios, ou setores dentro de um coletivo determinado. Senão vejamos.

Estamos em plena crise civilizacional. Nela, as ordens tecnológica e científica são relevantes. Em crises assim surgem sinais de crescente desequilíbrio entre os modos de usar instrumentos antigos e a apropriação dos novos. André Leroi-Gourhan, importante etnólogo do século 20, indica uma dialética essencial na transferência do antigo ao recente, processo que define uma situação que desafia o homo sapiens desde as suas origens. Trata-se do empréstimo e da invenção. Não existe, diz o pesquisador, invento sem empréstimo e vice-versa: só pode inventar quem consegue emprestar meios de manipulação da natureza gerados por outros. Quando uma sociedade busca apenas inventar, sem trazer técnicas alheias, ela tomba na busca estéril da originalidade absoluta. Se apenas empresta formas vindas do exterior, seca a sua veia criativa.

O campo tecnológico determina a vida social. A técnica é um todo: dado um traço, todos os demais se definem, com maior ou menor densidade e coerência. [6] “O processo humano, surgido dos constrangimentos biológicos, desenvolvendo-se na ordem dos signos, apressado pela indústria e figurado pelas técnicas da comunicação, é cumulativo. O passado da espécie condiciona o futuro da etnia”. [7] Trata-se de uma lenta construção da humanidade que produziu a nossa postura ereta, a linguagem, a imaginação, a memória. [8] Todos esses passos dão-se por adaptação, algo constante no movimento evolutivo. Só há produção nas sociedades por constrangimento. A evolução transforma as tendências adquiridas pela espécie. As faculdades mobilizadas em milênios pelo cérebro e pelas mãos, tornam-se inconscientes mas ativas nas sociedades humanas.

A mão está situada entre a matéria e o humano [9]: gestos, palavra, vida  comum. Tal cadeia assume um ritmo cada vez mais célere. “Uma das características mais espantosas da evolução humana é a liberação do utensílio, a substituição dos utensílios naturais por utensílios mais eficazes”. Para que exista sociedade, o trabalho produz instrumentos, linguagem, trocas matrimoniais. “O homem é (...) seu produto, um ser que soube e pode acomodar sua contingência, aproveitar a si mesmo e ao meio”. A vida social é “uma opção biológica” produzida pela técnica humana. A humanidade vive, desde época remota num “meio técnico”, cuja tendência é substituir o natural.

Se a sociedade é induzida pelos procedimentos tecnológicos, ela, por sua vez, é “força atrativa que precipita o progresso técnico”. Os instrumentos prolongam as condições biológicas, mesmo as desnaturando. Inexistem instrumentos e saberes isolados, como inexistem indivíduos abstraídos uns dos outros. O primeiro caráter “social do grupo, é o de ser tecnicamente polivalente”. Sem a solidariedade funcional é impossível a “passagem da espécie zoológica à espécie étnica”. O instrumento está na base da vida social: “a tecnologia se mantém na zona mediana entre a biologia e a sociologia, exatamente na linha instável onde, imperceptivelmente, a espécie se faz etnia”.

O homem “é o único animal que constitui um meio técnico. Semelhante evolução, a ‘humanização’ do instrumento depende da linguagem e se apresenta como fábrica de instrumentos dotados de linguagem ou memória, de capacidades simbólicas (programação). “O fato material mais espantoso, certamente, é a ‘liberação’ do instrumento, mas na realidade, o fato fundamental é a liberação da palavra, propriedade única que possui o homem de colocar sua memória fora de si mesmo, no organismo social”. Sem memória coletiva inexiste futuro para o homem enquanto espécie ou indivíduo. “Cada grupo humano é animado por duas forças contrárias mas conjugadas: uma o integra sempre mais nele mesmo, intensifica e conforta as tendências internas, força de fechamento e índice de suficiência; outra, o torna permeável ao exterior, abre-o para o empréstimo, força de descompactação”. As duas forças definem o crescimento técnico coletivo. Elas orientam o processo de face dupla chamado “empréstimo”, de um lado, e “invenção”, de outro. Ambos contribuem para um todo social autônomo no meio global, com seus matizes e diferenças, devidos às várias tendências historicamente adquiridas.

Emprestar instrumentos e sistemas de instrumentos, saberes e sistemas de saberes de uma outra coletividade e ao mesmo tempo inventar novos instrumentos e saberes não é contraditório. Ilusão é imaginar que um grupo humano possa viver apenas de empréstimo ou de pura invenção original. Nem todos os grupos possuem todos os instrumentos e saberes iguais, ao mesmo tempo. Uns desenvolvem certos recursos, outros, aumentam sua habilidade através de outros. Dentro do mesmo coletivo, alguns setores possuem formas diversas de produzir e utilizar mecanismos, com grandes ou pequenas desigualdades na forma e nos alvos. A técnica “ou é politécnica, ou não existe”.

Todos os grupos emprestam e são dotados de força inventiva. “Privilegiar a invenção em detrimento do empréstimo seria suprimir a História e a contingência”. Por outro lado, ficar apenas no empréstimo significaria “afetar o grupo com uma passividade total” tornando o meio inane, por “uma permeabilidade absoluta à força externa”. Esta, se é única, torna-se ruinosa para a continuidade de um povo. Empréstimo e invenção se temperam e a sua medida é a adaptação do grupo às condições do meio natural e técnico anteriores, postos diante de indivíduos concretos, trazendo constrangimentos bioétnicos a serem dominados, por meio de saberes e instrumentos novos, frutos do empréstimo e da invenção, para que o coletivo continue existindo. Para isto, o conceito de fixação é nuclear.

Através da fixação, o meio anterior – especialmente o técnico – absorve os empréstimos, torna-se capaz de inventar. “O importante no empréstimo não é o objeto que entra num grupo técnico novo, é o destino que lhe é dado pelo meio interior”. Quem empresta “pode utilizar e, no limite, inventar”. (Guerin). Há diferença entre “ter” um instrumento ou um saber e o “fixar”. Só no segundo caso “o instrumento é digerido pelo meio, integrado em seu capital, porque ele é harmônico com a politécnica pré-existente do grupo. O conceito de fixação define o índice de pertinência”. O importante não é saber se um povo possui computadores ou carros, medicina ou cirurgia avançadas. Importa se ele as fixa, aumenta a sua tendência. Instrumentos separados do sistema pouco significam para uma coletividade.

Não é o par “empréstimo/invenção” o que mais permite entender como um povo sobrevive e se amplia. O par “fixação/flutuação” é mais importante. A técnica é politécnica fixada. As forjas no pretérito, os computadores hoje, constituem complexos instrumentais. “Todos os meios de ação elementar sobre a matéria encontram-se aí representados”. Sem fixar tendências, os coletivos não são autônomos diante de outros. “Massas, grupos, indivíduos, manifestam, com os mesmos constrangimentos, o mesmo esforço de individualização”. Se perde a memória e a força de inventar, se não fixa os empréstimos feitos de outros povos, produzindo novos instrumentos e conceitos, os quais, por sua vez, entram de mil modos em contato com outros instrumentos e conceitos, num equilíbrio sempre instável mas progressivo e de refinamento, em suma, se um povo é condenado a só consumir os resultados técnicos dos outros coletivos, ele tende a perder sua individualidade, passa à sua morte passiva.

É lamentável que no Brasil os laboratórios e seus operadores, as bibliotecas e seus habitantes, sejam não apenas hostilizados pelos governos, mas também pela opinião pública. Preocupa muito que um futuro ministro, encarregado pela ciência e técnicas, siga dogmas ideológicos que tiveram seu apogeu na Guerra Fria. E ignore que nos tratos entre países, o primordial é a força do empréstimo técnico (que não leva em considerações ideologias e inimizades) que permite a invenção, meio para que um povo tenha indústria e comércio que lhe permitam viver e sobreviver. Perigosamente tais doutrinas sobre a inimizade interna ou externa hoje voltam em companhia de proposições teóricas que supostamente foram escritas para combater o terrorismo e a corrupção. Trata-se do “direito penal do inimigo”, que no Brasil amealha adeptos no mesmo ritmo em que enfraquece a ideia norteadora dos direitos humanos. Se a ciência e a técnica ignoram fronteiras ideológicas ou religiosas, os regimes de exceção, na sua maioria escolhidos de acordo com as regras democráticas, tendem a opor barreiras ao circuito dos saberes.

Perseguindo os que não aceitam dogmas políticos, governos autoritários perdem cérebros que se movem, pela demissão de seus cargos por prepostos do regime ou pelo exílio voluntário, para países que os acolhem e conseguem, por seu intermédio, aumentar sua força científica, industrial, bélica. É assim que a caça aos opositores, dentro ou fora dos campi, conduz ao empobrecimento de todo um povo, submetido às escolhas desastrosas dos governantes. Esperemos que as declarações do futuro ministro da Ciência e Tecnologia sejam por ele desmentidas ou atenuadas ao máximo, para bem de nosso país. Desviar recursos para o privatismo escolar, ou fazer uma pregação anacrônica sobre amigos e inimigos, é fornecer provas evidentes de que se desconhece o interesse maior do país. As consequências serão, como sempre, desastrosas.

 



[1] “Federação das Escolas privadas entra com ação no TCU contra Sistema S”, Valor Econômico, 05/11/2018.

[2] Rohan, Henri: De l ´intérêt des princes et des Etats de la chrétienté, edition Christian Lazzeri (Paris, PUF, 1995), p. 161.

[3] Segundo Fichte, são duas as regras da defesa nacional: 1) O vizinho, a menos que ele seja constrangido a nos considerar como seu aliado natural contra uma outra potência temível para nós dois, está prestes continuamente, na primeira ocasião, desde que ele possa fazê-lo com segurança, a crescer às nossas custas. É preciso que ele faça assim, se ele for prudente, e não pode negligenciar isso, mesmo que fosse nosso irmão. 2) Não basta defender o nosso território mas é preciso conservar imperturbavelmente os olhos abertos sobre tudo o que pode influenciar a nossa situação, e não suportar nunca que algo mude em nossa desvantagem no interior dos limites desta influência, e não hesitar um átimo se pudermos mudar as coisas em nossa vantagem; pois devemos estar certos de que o outro fará o mesmo desde que possa, e se de nosso lado hesitarmos e deixarmos a ele a iniciativa. Quem não cresce, diminui quando os outros crescem” Fichte, Johann Gottlieb. Machiavel et autres écrits philosophiques et politiquesde 1806-1807, traduits par Luc Ferry et Alain Renaut. Paris: Payot,1981.

[4] Folha de São Paulo, 31/10/2018.

[5] O livro negro da USP, que pode ser lido em PDF : https://www.adusp.org.br/files/cadernos/livronegro.pdf

[6] Evolution et Technique. Paris, Albin Michel, 1973. Toda a argumentação presente é retomada de meu artigo, publicado na revista Política Externa, volume 24, número 1e 2 : “ Soberania, segredo, Estado democrático”.

[7] Michel Guerin, “Leroi-Gourhan, notre Buffon”. Révue de Métaphysique et de Morale, 2, 1977, p.174. Para efeito de comodidade, seguirei passo-a-passo este comentário de Guerin aos trabalhos de Leroi-Gourhan. Esta parte da exposição usa diretamente o artigo citado

[8] Gourhan, Le Geste et la Parole, T.I. Paris, Albin Michel.

[9] Itens examinados por Leroi-Gourhan no segundo capítulo de L’ Homme et la Matière. Paris, Albin Michel, 1972, p.43 e ss

 

 

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