A ideia de justiça social é injusta porque é violenta, e é injusta porque o Estado se financia com impostos.
O Ocidente está em perigo por causa de ideias socialistas.
As duas frases acima, ditas por Javier Milei em discurso no Fórum Econômico Mundial em janeiro deste ano, atestam um dos maiores êxitos do projeto de renovação das direitas iniciado por volta da metade do século XX. A reação elaborada por um novo tipo de ideias liberais e conservadoras tinha diante de si um desafio enorme: contestar a superioridade, moral e intelectual, de princípios igualitaristas que, à esquerda ou à direita, parecia estabelecer certa hegemonia após a derrota do fenômeno moderno mais radicalmente anti-igualitarista: o fascismo.
Isso não significa dizer que o capitalismo de então tenha sido menos desigual, opressor ou autoritário. Ou mesmo que ideias de esquerda fossem dominantes. Mas desqualificar, como fez Milei, o princípio de justiça social por ser uma forma de violência era algo relativamente incômodo pouco tempo atrás, até para anticomunistas de direita. Igualmente revelador dessa “retórica da reação”, como identificou A. O. Hirschman[1], é o ato de reivindicar, com êxito, a defesa da civilização ocidental para justificar tal posição anti-igualitarista.
São sempre controversas as tentativas de traçar diagnósticos e prognósticos sobre a ascensão recente de extremas direitas nacionais. Uma das razões está no baixo consenso sobre como, de fato, devem ser conceitualmente caracterizadas: “novas direitas”, “extrema direita”, “populismo de direita”, “neofascistas” etc. Sem entrar no mérito da questão, percebe-se que a divergência de diagnóstico relaciona-se diretamente com o grau de confiança nas instituições democráticas e no sistema econômico vigentes de quem analisa.
Tudo se passa como se quaisquer programas ou discursos, mesmo os que parecem dirigidos aos interditados ou criminalizados depois da vitória militar sobre o fascismo no século XX, fossem apenas rompantes de líderes carismáticos em busca, como todos os outros, de votos e nada mais. Por mais reacionários que se apresentem, estariam fadados a ser domesticados ou limitados pela solidez das instituições ou, se elas não forem suficientes, pela racionalidade instrumental do mercado, que não banca “aventureiros”.
Formular cenários hipotéticos com ironia sempre implica armadilhas, mas aqui talvez valha a pena: se, aos espíritos de líderes fascistas do século XX, fosse dada uma nova chance na carne e no mundo que conhecemos, além de afetar drasticamente a esperança na existência de um ser criador que tem apreço pela criatura, uma certeza é que, como na encarnação anterior, não faltariam argumentos daqueles que têm por profissão dizer à opinião pública que tudo está em ordem e que a ameaça é um medo infundado.
Sem ignorar as diferenças qualitativas a dificultar uma caracterização unívoca das extremas direitas contemporâneas, pode-se identificar um invariante do fenômeno. Nas redes sociais ou nas ruas, suas lideranças testam o limite do que pode ser dito na esfera pública sem temer a responsabilização penal ou temer um impacto eleitoral negativo. Pouco a pouco, aquilo antes interditado ou marginalizado (moral ou legalmente) é possível de ser elaborado abertamente sem maiores danos ao emissor da ideia. Pelo contrário, uma declaração explicitamente discriminatória, em geral vista apenas como ataque anódino e moralmente desprezível, revela-se fonte de engajamento e mobilização reacionária permanente e ativa de massas. O que parece ser um rompante é, na verdade, uma estratégia racional.
Com o tempo, os que mantêm a crença na onipotência das instituições e do sistema econômico vigentes deixam-se tragar pela necessidade de definir os critérios (muitas vezes estabelecidos de maneira ad hoc) responsáveis por diferenciar um regime democrático de um regime de exceção. Não raro, a democracia deixa de existir antes de haver consenso sobre se ela estava de fato ameaçada. Pontos de não retorno costumam ser identificados apenas a posteriori.
Entre as várias armadilhas da ironia lançada acima, inclui-se a de reforçar a ideia de excepcionalidade do presente, relativamente atávica ao senso comum depois de séculos de ideologia moderna, a qual faz crer que apenas o passado gera absurdos, sendo o presente e o futuro estágios superiores a inviabilizar o que seria irracional ou moralmente inaceitável. Ignora-se, por exemplo, que o racismo da ideologia nazista era uma variante anti-igualitarista com lastro em um modelo de ciência então aceito e incentivado no esmo Ocidente: a eugenia.
Via de regra, esse viés de excepcionalidade pressupõe uma imagem do fascismo histórico na qual, por exemplo, todos os que militaram por, votaram em ou normalizaram Hitler eram fervorosos defensores de campos de concentração construídos para alcançar a “solução final” contra os judeus. Esse quadro de referência maniqueísta e idealizado subestima, ou simplesmente ignora, que a maior parcela da sociedade viabiliza ou normaliza o “irracional” por razões as mais distintas possíveis e, geralmente, motivada por uma busca genuína (laica ou religiosa) pelo bem, a verdade e a justiça.
Guardadas as devidas proporções, essa lógica tem dominado o debate público e parte importante da pesquisa acadêmica sobre as novas direitas no Brasil: a reorganização e renovação das direitas nos últimos anos seria produto de um leque tão amplo e heterogêneo de lideranças, grupos e movimentos que qualquer tentativa de identificação de invariantes, especialmente os que sinalizam vieses autoritários e/ou neofascistas, se mostraria uma distorção ideológica e anacrônica.
Quando a pesquisa se pretende etnográfica, o risco tende a se agravar. O contato direto e prolongado de pesquisadores com lideranças e bases sociais das novas direitas lhes revela uma condição humana complexa, quase sempre imbuída, como qualquer outra, de valores legítimos e comportamentos bem-intencionados. Ou seja, embora seja crucial levar em consideração a complexidade dessas subjetividades para a compreensão sociológica do fenômeno como um todo, tudo pode se tornar analiticamente frágil quando, por conta delas, se normalizam os resultados, imprevistos ou não, de suas ações práticas. Como se as maiores violências contra a humanidade não fossem produzidas ou permitidas também por seres humanos.
Assim, o apoio de novas direitas, autodeclaradas democráticas, a líderes como [Donald] Trump, [Jair] Bolsonaro ou Milei tende a ser explicado apenas em termos da contingência da cena política ou, quando muito, valendo-se de escolhas contextuais “infelizes”, as quais subestimaram efeitos imprevistos.
É importante, sem dúvida, compreender tais diferenças para que a extrema direita possa ser, em algum momento, politicamente isolada. Porém, o fundo comum anti-igualitarista que molda todas as novas direitas não pode ser simplesmente ignorado.
Para voltarmos ao discurso de Milei: uma arqueologia das ideias mobilizadas nas suas frases acima encontrará não apenas os mesmos significantes para o sentido de injustiça ou degeneração – como “justiça social”, “social-democracia” ou “socialismo” –, mas também uma identidade étnico-racial, cujo uso deliberado e imune a sanções morais ou legais ainda estava de certo modo à disposição daqueles que foram suas grandes referências intelectuais e políticas.
A civilização do Ocidente seria a realização (e o fardo) de um tipo humano cuja racionalidade, senso de justiça e padrão estético estão em constante luta contra outros tipos inferiores caracterizados pelos “coletivismos”, “irracionalismos” ou “tribalismos”[2]. Uma referência explícita, de uma fonte importante de inspiração para Milei, pode ser acessada sem escavar correspondências privadas ou notas de rodapé contextuais. Encontra-se em um livro de divulgação de L. Von Mises, originalmente publicado em 1956 e traduzido por um grupo das novas direitas do Brasil em 2018. O termo destacado em negrito é o qualificativo que falta ao discurso de Milei, mas que, à época, ainda podia ser postulado por Mises:
As antigas obras da filosofia e da poesia oriental podem comparar-se às mais valiosas obras do Ocidente. Mas durante muitos séculos o Oriente não produziu nenhum livro importante. A história intelectual e literária da época moderna não registra o nome de um autor oriental. O Oriente deixou de contribuir para o esforço intelectual da humanidade. (...) Será possível que os descendentes dos construtores da civilização do homem branco devam renunciar à sua liberdade e voluntariamente entregar-se à suserania de um governo onipotente? (...) Devem as mentalidades das civilizações oprimidas destruir os ideias pelos quais milhares e milhares de seus antepassados sacrificaram a vida?[3]
Como todo processo de tradução e mediação, quando grupos da nova direita começaram a empunhar e popularizar a bandeira “Menos Marx, Mais Mises” no Brasil, as ideias de origem podem (e devem) ser alteradas ou ressignificadas para um público mais amplo. Igualmente, esses mediadores sabem que certas dimensões das ideias de intelectuais de referência nunca irão chegar integralmente ao movimento mais amplo.
(Pessoalmente, contudo, admito ter muita curiosidade em saber se os responsáveis pela tradução: a) sentiram algum incômodo ao ler a expressão; b) chegaram a discutir coletivamente o assunto; e/ou c) cogitaram alguma nota da edição “contextualizando” o termo aberta, explícita, desavergonhadamente racista.)
No limite, saber o que esse grupo pequeno de pessoas de fato pensou importa pouco em relação ao fato objetivo e inegável de que milhões de pessoas apoiaram Bolsonaro não apenas em 2018, mas também em 2022, mesmo depois do negacionismo na pandemia, de ataques contra o sistema eleitoral e de declarações golpistas. O crucial e urgente é saber se o anti-igualitarismo radical das bases sociais mais amplas das novas direitas pode ser enfrentado ou, pelo menos, limitado pelos regimes democráticos vigentes sem que, diferentemente do passado, o recurso ao poder das armas revele-se o único capaz de preservar a manutenção da vida de quem não se encaixa muito bem nessa “civilização do homem branco”.
É por isso que o slogan “Mais Mises” precisa também ser visto como inspiração para a tomada de posições políticas. Sua defesa do “mérito” do fascismo, convenientemente pouco lembrada, revela algo muito mais forte e orgânico do que um mero aceno contextual como ele mesmo quer fazer parecer:
Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até o momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história. Porém, embora sua política tenha propiciado salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encará-lo como algo mais seria um erro fatal.[4]
As análises sobre as novas direitas que enfatizam a diferença entre elas e o bolsonarismo acabam por absorver, ainda que por outros caminhos e intenções, o argumento interessado e dissimulado dos próprios sujeitos. Hoje, atribuir méritos ao fascismo, tal como ainda podia fazer Mises, é uma posição difícil ou interditada de vários modos. Porém, justificar o apoio à extrema direita, seja ela qual for, como “expediente de emergência” parece ainda funcionar sem maiores consequências.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] Hirschman, Albert O. The Rhethoric of Reaction. Massachusetts: Harvard University Press, 1991.
[2] Convido a quem me acompanha até aqui a prestar a atenção em como “Brasil” e “África” aparecem em textos como, por exemplo, os de Ayn Rand (Capitalism: the unknown ideia).
[3] Mises, Ludwig von. A mentalidade anticapitalista. São Paulo: LVM, 2018, p. 130.
[4] Mises, Ludwig von. Liberalismo. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 77.