Foi lançado recentemente, no Brasil, o filme Emily, début de Frances O’Connor como diretora e roteirista, que promete imaginar a história da composição de O morro dos ventos uivantes (1847), único romance de Emily Brontë (1818-1848). O impulso de imaginar, quando se trata da vida de Emily Brontë, é compreensível; talvez seja intrínseco à experiência de leitura de sua obra, já que sabemos tão pouco sobre a autora. Enquanto figura histórica, Emily Brontë é excessivamente opaca: sobreviveram escassos documentos seus, do tipo que poderia lançar luz em seu processo criativo ou em sua personalidade, como cartas e diários. Sua biografia, portanto, é cheia de lacunas, e a imagem que se tem hoje de Emily Brontë é uma especulação, feita a partir de relatos indiretos e, não raro, enviesados.
Assim, o que temos de substancial a seu respeito é sua produção literária. E, em partes por esta razão, há uma aura enigmática em torno de O morro dos ventos uivantes. A pergunta que parece se colocar é: como Emily Brontë pôde escrever esse livro? Uma jovem de 20 e poucos anos, que cresceu na primeira metade do século XIX — na Era Vitoriana —, filha de um pároco e integrante de uma família muito religiosa, que vivia em pequena vila em Yorkshire, cujas relações não extrapolavam seu círculo doméstico e que faleceu, aos 30 anos, solteira. Como é possível que ela tenha escrito O morro dos ventos uivantes, esse romance estranho, passional e violento?
A resposta que Frances O’Connor deu a essa questão — formulada, nos primeiros minutos do filme, por uma Charlotte Brontë horrorizadae enraivecida (“How did you write it?”) — é que Emily teria vivido um amor arrebatador e proibido, com um pároco, auxiliar de seu pai em Haworth. O’Connor sugere, assim, que o florescer de sua sexualidade, a consumação de seu amor e as dificuldades colocadas pela crença religiosa do rapaz — que, posteriormente, rejeita Emily por temer a liberdade excessiva de seu modo de pensar e escrever, que lhe parece ímpio — forneceram o material para a composição de O morro dos ventos uivantes. De início, o espectador minimamente familiar com os modos vitorianos se pergunta o que haveria de proibido no amor entre Mr. Weightman e Emily, visto que ele teria sido um pretendente perfeitamente elegível: ambos pertenciam à mesma classe social e religião, seu ofício era o mesmo do pai de Emily e, é claro, sua paixão era mútua. Mas, para além da altíssima improbabilidade de que Emily Brontë pudesse se deitar com um pároco de Haworth em um chalé abandonado sem nenhuma proposta de casamento, O’Connor não apenas recorre a um clichê em sua representação de Emily Brontë, mas resvala numa premissa que, a despeito de seu autoproclamado feminismo, beira o degradante.
Em uma entrevista ao The Guardian, O’Connor afirmou que esperava críticas raivosas de leitores conservadores, mas que seu filme foi produzido a fim de “inspirar jovens mulheres”, voltando-se para as “novas gerações”. O exercício imaginativo da diretora e roteirista, no entanto, reflete tristemente concepções sexistas e características do século XIX, e isto num ponto fundamental em se tratando de Emily Brontë: a questão da capacidade criativa feminina.
Nicola Diane Thompson, em um excelente estudo sobre gênero e recepção de romances na Era Vitoriana [1], mostrou como havia, naquela época, um double standard crítico, em que o gênero dos escritores instituía uma das categorias levadas em conta na avaliação das obras. Isto significa que havia expectativas diferentes para escritores homens e mulheres: enquanto a masculinidade era associada a qualidades intelectuais, ao poder, à verdade e à invenção, a feminilidade era vista como intelectualmente fraca. Uma vez que se considerava que as mulheres não eram capazes de criar e imaginar como os homens, esperava-se delas que se mantivessem circunscritas a uma espécie de realismo doméstico. A matéria de sua escrita, por conseguinte, estaria condicionada àquilo que elas pudessem observar, isto é, ao que em alguma medida se relacionasse a sua experiência pessoal.
Este double standard se relaciona de perto à problemática moral suscitada por O morro dos ventos uivantes logo após sua primeira publicação, em 1847, e explica o esforço de Charlotte Brontë em zelar pela reputação de sua irmã após sua morte. O romance fora publicado inicialmente sob o pseudônimo Ellis Bell, e muitos críticos acreditavam que havia sido escrito por um homem. Ainda assim, a obra provocou desconforto e perplexidade. Quando Charlotte Brontë decidiu revelar a identidade de sua irmã, em 1850, ela procurou defendê-la precisamente da acusação de que, para ter escrito O morro dos ventos uivantes, Emily precisaria ter vivenciado, ao menos em partes, a história narrada em sua obra. Em meados do século XIX, na Inglaterra, isto significaria uma transgressão grave de papéis de gênero e poderia tornar Emily um alvo de sérias acusações de imoralidade, afetando toda a família.
A despeito dos quase dois séculos que nos separam do tempo das Brontë, é precisamente essa ideia que rege o filme de Frances O’Connor: se Emily Brontë escreveu sobre o amor de um modo tão visceral, é porque ela vivenciou um amor visceral. É isto o que me parece algo degradante. Emily tem uma bela fotografia, uma trilha sonora notável e boas atuações; mas a sua narrativa fantasiosa nega, à Emily Brontë, a capacidade inventiva e imaginativa que os críticos oitocentistas também lhe negavam. Elaborar uma ficção da vida da autora não é, em si, problemático; mas fazê-lo de modo a reduzir Emily Brontë a um estereótipo, ao mesmo tempo em que se alega que ela foi colocada “no centro de sua própria história”, é, no mínimo, despropositado.
Uma certeza histórica que temos a respeito de Emily é que — embora ela nunca tenha se casado, nem, ao que tudo indica, tenha se relacionado amorosamente com ninguém —, ela lia e escrevia desde muito cedo. As crianças da família Brontë entretinham-se criando mundos de fantasia, emulando periódicos britânicos, compondo peças teatrais e poemas. Três delas se tornaram escritoras consagradas: Charlotte, Emily e Anne. E, ainda que a genealogia de O morro dos ventos uivantes seja uma questão disputada, sabemos que Emily leu Shakespeare, Milton, Byron, contos alemães que eram publicados na Blackwood Magazine, a Bíblia, clássicos franceses. Nesse sentido, o que me impressiona a seu respeito é a habilidade com que ela transformou esse repertório de leitura, por meio de sua imaginação, em um romance tão impactante, ambíguo e bem-escrito, de uma técnica narrativa tão refinada, como é O morro dos ventos uivantes; e que, em meados do século XIX, ela tenha rompido tão completamente com as expectativas estabelecidas para o gênero romance, fazendo algo de inovador — e isto em uma primeira publicação! A mim, parece que esta Emily Brontë leitora, talentosa, criativa e solteira é que é verdadeiramente inspiradora, ainda que, talvez, não seja tão vendável.
Júlia Mota Silva Costa é doutoranda em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp e estudou a obra de Emily Brontë em seu mestrado, também na Unicamp.
Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] THOMPSON, Nicola Diane. Reviewing sex: Gender and the Reception of Victorian Novels. London: Palgrave Macmillan, 1996.