Por Luciana Utsunomiya**
A partir de uma experiência de testagem e monitoramento em um território considerado vulnerável, é possível um olhar mais detalhado sobre para as estratégias de controle pandêmico por meio de ações de contenção que, embora previstas pela Organização Mundial da Saúde, são pouco presentes no imaginário social e no próprio sistema de saúde, em que a busca de saídas para a contingência está centrada quase que estritamente ao universo hospitalar.
Como médica sanitarista e parte da equipe de Núcleo de Apoio da Saúde da Família, em março de 2020 fui alocada para trabalhar no atendimento às famílias no Módulo de Saúde Vila Soma, uma das maiores ocupações urbanas da América Latina. Trata-se de um território ainda em processo de regularização, onde 100% dos dez mil moradores viviam em moradias sem água encanada, esgoto ou coleta de lixo. Porém, tinham uma ampla capacidade de organização local no enfrentamento de adversidades.
Naquele momento, os estudos sobre novo vírus SARS-CoV2 já alertavam os desiguais recortes de classe e raça na sua morbidade e mortalidade. A pandemia não afeta igualmente os territórios e são diferentes as possibilidades de isolamento e o acesso aos serviços de saúde. Além disso, a falta e a demora de testes diagnósticos eram barreiras para grande parte da população nos municípios locais, principalmente onde o trabalho remoto ou mesmo o isolamento social maciço é impossibilitado. A detecção de casos precocemente, além de auxiliar no estudo do comportamento do vírus, auxilia no isolamento mais direcionado, com uma informação mais precisa sobre o risco da contaminação na impossibilidade de isolamento.
O discurso “Fique em Casa” e as orientações de desinfecção doméstica das campanhas de comunicação exigiam uma força hercúlea dos trabalhadores e principalmente, das trabalhadoras responsáveis pelas tarefas domésticas, informais ou com vínculos precarizados no esforço de isolamento social de seus familiares. A alimentação das crianças e a falta de medidas de proteção social, como o auxílio emergencial (que demorou meses para chegar), só foram amenizadas pelos fornecimentos de cestas básicas nas escolas e duas leis municipais que permitiram o abono nas contas de luz e água para pessoas vivendo em moradias consideradas subnormais.
Atuar como médica assistencial parecia uma ação ínfima frente a complexidade do cenário que a pandemia exigiu de todos. A meta de diminuição da circulação para contenção do vírus (no mínimo 50% da população) parecia impossível de cumprir, mesmo com o esforço de lideranças locais que realizavam campanhas de conscientização nas visitas ao comércio local, reuniões com lideranças religiosas, distribuição de marmitas e distribuição de álcool gel e máscaras à população. Até final de maio de 2020, com a chegada de parte do auxilio emergencial, ficar em casa com os filhos com a mesa vazia não era uma opção para muitas famílias da ocupação.
Nesse contexto, a formação de uma parceria com a Força-Tarefa Unicamp contra a Covid-19, uma equipe multiprofissional de docentes e pesquisadores de diferentes institutos, envolvendo o laboratório LDMAD (Laboratório de Diagnóstico Molecular de Alto Desempenho), foi estratégica na ampliação da capacidade de processamento de testes PCR-RT, principal exame para detecção do vírus ativo em pessoas sintomáticas ou pré-sintomáticas.
Em uma parceria com gestores e lideranças locais do municipio de Sumaré, foram disponibilizados os testes e realizados em mutirões semanais na unidade de saúde. Foram realizadas mais de 700 coletas no período considerado o primeiro pico da pandemia de Covid-19, grande parte entre o mês de junho e julho de 2020. Os resultados eram enviados via whatsapp para equipe local para a notificação e a detecção de casos de maneira ágil, chegando de 48 horas a 5 dias do momento do exame.
A equipe de agentes comunitários de saúde e as lideranças locais capacitadas em 2019 que já faziam atividades de cadastro na unidade de forma voluntária foram as primeiras a identificar pessoas com sintomas da chamada Síndrome Gripal nos moradores. Junto à equipe local, logo assumiram as orientações iniciais nas visitas domiciliares, marcação de teleatendimento médico, agendamento dos testes PCR-RT e auxiliando a rede de apoio aos moradores (auxiliando os cadastros virtuais para benefícios, locais de entrega de marmitas, acesso a medicamentos como soro oral e analgésicos) e disponibilizando número de contato celular (whatsapp próprio) para toda a população.
Nas primeiras testagens, no início de junho, o sentimento que o vírus já estava se espalhando de maneira rápida se confirmou. Já nos primeiros mutirões, que chegaram a 94 pessoas por dia, a explosão de casos positivos ficou evidente, subindo de 30% para 60% de casos positivo por amostra em menos de 3 semanas. A partir das conversas com as agentes de saude e visitas domiciliares, a equipe identificou grupos mais vulneráveis como: pessoas morando sozinhas, pessoas sem rede de ajuda por conta do “medo do vírus”, ou grupos que não cumpriam as medidas restritivas por “negação do vírus”, trabalhadores doentes sob ameaça de demissão e mães sem renda para subsistência que acionavam redes possíveis, como parentes de outras cidades e Estados, o que aumentava a circulação de viajantes na comunidade.
A partir a primeira testagem, foi necessária uma rápida organização para monitoramento dos casos, principalmente os positivos e seus contatos próximos. Considerando a adaptação do isolamento familiar prescrito pelas autoridades sanitárias, que prevê que a pessoa diagnosticada consiga se isolar dos demais membros da casa, a situação parecia improvável de ser cumprida na maior parte das casas da ocupação. A reduzida equipe de saúde local fazia o esforço de manter atendimentos de gestantes e recém-nascidos na unidade, além do acesso a anticoncepcionais e injetáveis. De imediato, os membros da Força-tarefa se organizaram para o teleatendimento dos pacientes testados nos mutirões, realizando o trabalho de suporte as famílias. Vale lembrar que, naquele momento, uma outra virulência nos preocupava: a imensa carga de informações negacionistas sobre as medidas preventivas e promessas infundadas de medicamentos contra a doença.
O contato telefônico propiciou uma importante aproximação dos pesquisadores com os dilemas dos moradores dessa localidade, mas que traziam dúvidas que naquele momento eram de muitos: O que fazer no momento do diagnóstico? Posso ficar com meus filhos? Preciso tomar algum remédio? Posso ir à venda? Meus familiares podem sair? Em quantos dias posso sair de casa? Sem contar as dúvidas sobre a eficácia do uso de máscaras e os medicamentos milagrosos que circulavam nas redes sociais e outras. Vale comentar que situações de desinformação como essas ainda se fazem presentes mesmo após um ano do primeiro caso no país, fruto de uma campanha negacionista do próprio Governo Federal, no discurso de descrédito da ciência e na insistência no desmonte nacional da rede de saúde, o SUS, e seu desfinanciamento, vide a PEC 96 e a exaltação de medidas de austeridade fiscal em plena pandemia.
Na prática, a insegurança e o medo quando chegaram os primeiros casos de Covid19, e principalmente nas casas onde o vírus circulava, traziam desafios complexos para garantir as medidas preventivas e o controle de casos. Foi preciso organização de equipes à distância, distribuição de casos, a construção da informação que precisa a ser disponibilizada, os atores deveriam ser acionados e um diálogo constante entre os participantes. O que fazer no caso de quem trabalha fora? Quem forneceria os atestados? Quando procurar o hospital? O que falar para quem não consegue ficar em casa? O que fazer com aquele que precisa ir ao hospital e não vai? Nessa experiência do Vila Soma, a comunicação entre o profissional à distância e a equipe local foi sendo afinada a partir dos contatos diretos da equipe de monitoramento da Força-tarefa Unicamp, equipe de saúde e as agentes de saúde, via whatsapp.
O encontro da organização local, lideradas pelas agentes de saúde e equipe, junto à capacidade ampliada na realização de testes diagnósticos que a força- tarefa, gerou um terceiro desafio que seria dar conta das ligações em dias alternados dos pacientes testados. Aqui vale a pena registrar que as experiências de monitoramento ainda sofrem de invisibilidade, frente ao enfoque da “saída hospitalar” que predominou no debate nacional. O sistema de vigilância das doenças infecto-contagiosas e a busca de contactantes é a primeira lição que os alunos de várias profissões da saúde aprendem nos estágios nas unidades básicas de saúde, no trabalho junto a suas equipes. Mais do que uma prática de busca de casos para dados epidemiológicos, que tem grande importância para tomada de decisões no acompanhamento de uma epidemia, a atividade pode ser uma importante forma de suporte para aqueles afetados pela doença e num momento de extrema insegurança e dificuldade de obter uma informação clara e precisa. As ligações poderiam, assim, compor uma rede de apoio à distância importante às pessoas adoecidas e a suas familiares.
As ligações eram realizadas em dias alternados, prevendo acompanhamento de sintomas, pois se sabia que o quadro se dava de maneira dinâmica e imprevisível e a transmissão poderia chegar até quatorze dias do início dos sintomas. Foi a partir desse contato domiciliar via telefone, que a princípio visava averiguar sintomas, que foi possível a realização de um importante suporte àqueles que vivenciaram “estar com Covid”. A partir do acompanhamento continuado de famílias vulnerabilizadas, mesmo que à distância, foi possível o acolhimento daqueles cujo imaginário da universidade é tão distante ou intangível. Ocupar esse imaginário em um momento de catástrofe sanitária[RCG6] , quando nossa condição de interdependência fica cada vez mais evidente, pode apontar para a necessidade da criação de pontes possíveis entre universidade e comunidades vulneráveis, ou coletivos em luta por direitos, como no caso das ocupações urbanas.
Para além das práticas prescritivas que trabalha com saberes pré-estabelecidos, as ações solidárias podem trazer um contraponto importante à individualização excessiva e a mercantilização na saúde, considerando que não há “salvamento” possível, mas sim o exercício contínuo de escuta e resiliência. Além de outras questões que poderíamos suscitar: quais os conhecimentos possíveis de alcançar a partir desse exercício solidário, sem deixar de endereçar os ataques ao patrimônio público? Nesse exercício de encontro, mesmo que virtual, dado o isolamento social em que nos encontramos, não seria também uma forma de perseverar na luta por uma sociedade mais igualitária e em defesa da vida[RCG7] ?
A defesa de uma rede publica generosa e ampla como direito de todos sempre caminhou com a construção de experiências locais que, mesmo quando vivenciada em pequenas escalas, podem iluminar soluções para questões complexas que o contato com a doença traz, tanto para aqueles que a vivenciam quanto para aqueles dispostos a buscar soluções. O monitoramento como forma de suporte à distância, para além de um saber disciplinar, é uma ferramenta mais que necessária num momento em que o isolamento social está cada vez mais a cargo das famílias, como se o recrudescimento da pandemia dependesse exclusivamente da escolha individual de cada um] . Uma alternativa de cuidado, portanto, um contraponto à lógica liberal e a necropolítica, que tem prevalecido como mote central do governo federal.
** Luciana Utsunomiya, é médica sanitarista, mãe de três e mestranda da Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp
Referências bibliográficas:
1. FIOCRUZ (FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ), 2020. “A gestão de riscos e governança na Pandemia por Covid-19 no Brasil”. Rio de Janeiro: CEPEDES | ENSP Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde
2. SEIXAS, Clarissa Terenzi et al . A crise como potência: os cuidados de proximidade e a epidemia pela Covid-19. Interface (Botucatu), Botucatu , v. 25, supl. 1, e200379, 2021 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=