Foto: ScarpaUgo Giorgetti - Cineasta e cronista no jornal “O Estado de S.Paulo”, Ugo Giorgetti dirigiu 19 filmes, entre os quais “Festa” (1988) – vencedor do Festival de Gramado –, “Boleiros” (1998), “Sábado” (1995), “Cara ou Coroa” (2011), “Quebrando a Cara” (1986) e “Edifício Martinelli” (1975). Foi o primeiro convidado no Programa “Hilda Hilst” do Artista Residente do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp, atuando entre agosto e novembro de 2018.

Entrevista com Ugo Giorgetti

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Ico by LPLido mal com a internet. Não porque seja difícil, mas ao contrário, porque exige vocação para simplificar as coisas. Acostumado a buscar auxílio em instâncias bem mais sofisticadas e trabalhosas, como, por exemplo, livros, a internet me embaraça exatamente por tentar facilitar a minha vida. Como sou um especialista em complicar minha pobre existência, frequentemente me insurjo contra quem quer contrariar minhas inclinações mais profundas. Mas não posso negar que a internet frequentemente me proporciona surpresas, algumas delas espantosas.

Recentemente, quando eu estava por alguma razão que não lembro, à procura de alguma coisa, comecei a fuçar e-mails antigos e, caminhando cada vez mais para trás no tempo, acabei indo parar em 2006. Perdi completamente a noção do que estava realmente procurando, tão envolvido fiquei por aquele mundo esquecido de mensagens e mais mensagens de repente disponíveis diante de mim. Um mundo abolido, inteiramente esquecido, reapareceu subitamente. Pessoas mortas voltaram à vida me mandando mensagens alegres e despreocupadas, companheiros que não vejo faz anos falavam comigo de modo familiar como se nos tivéssemos visto na véspera. Projetos eram mencionados, ainda em seus começos, que se tornaram depois trabalhos realmente feitos e há muito superados por outros projetos. E tudo estava ali pertinho de mim, dentro do meu laptop, bastando para se fazer presente apenas um movimento inquieto do meu dedo, um apertar, às vezes, involuntário, do teclado.

Nada mais de pesquisas que deveriam me levar anos por arquivos empoeirados, pastas espalhadas por todos os lugares, envelopes amarelecidos pelo tempo, cartas rasuradas, todas as minhas memórias espalhadas como que propositadamente para que eu nunca conseguisse mais reuni-las, sequer tentasse uma coisa tão disparatada.

Nos e-mails de 2006 diante de mim tudo era instantaneidade e limpeza, nesse mundo onde não há cupins, onde as páginas nunca ficam amarelas e as letras esmaecidas. Dar de cara, de repente, sem qualquer razão e sem querer, com esse eu perdido, sobre o qual não pensava mais fazia tempo, me causou um profundo choque e sem saber bem por que fiquei muito tocado. Na verdade eu não estava tentando me lembrar de nada, nem de amigos mortos, de amores perdidos, de ideias de filmes, isso tudo se mostrou como se obedecendo vontade própria, que excluía estranhamente minha própria vontade , como se se movesse apesar de mim, e  surgisse  com algum propósito secreto e definido, para me dizer alguma coisa que eu precisava saber.

Mas o quê? Passo o dia ocupado com esse laptop, escrevendo, me correspondendo, enfim, levando a vida normal de qualquer usuário de laptop. Por que fui, naquele momento, parar em 2006? E por que achei tantas coisas, pequenos incidentes sem qualquer significação para outras pessoas, mas para mim frequentemente incômodos e mesmo dolorosos? A máquina estará querendo me dizer, à sua maneira silenciosa, alguma coisa?

Sim, porque as surpresas de minha viagem a 2006 não param aí. Ultrapassando como que hipnotizado mais alguns e-mails, me deparo com um que diz: “entrevista com Ugo Giorgetti”. E lá, diante de uma câmera de vídeo, estou eu em 2006. Passo piedosamente pelo choque causado pelo que o tempo fez comigo nos últimos 12 anos e vou direto ao que chamou profundamente minha atenção. Era uma entrevista curta na qual eu respondia poucas perguntas. Reconheci certa elegância no falar, alguma destreza vocabular, mas foi só. Nenhuma das minhas respostas coincidia minimamente com o que realmente penso sobre as perguntas propostas.

Atônito, vi de novo a entrevista e lá continuava eu, sério e seguro, falando coisas que não penso nem creio. Como foi possível que eu tivesse dito tudo aquilo? Minha primeira impressão é que tivesse sido dublado, depois vi que era impossível. Estava ali minha voz desagradável, traindo inegável sotaque paulistano dos bairros centrais. Era eu. Aquelas afirmações que me contrariavam, que davam uma ideia completamente oposta, e, mais que isso, medíocre, do que penso , estavam ali por mais de 10 anos à disposição de qualquer um!

Tentei me lembrar da entrevista, pelo menos de quem estivera ali me entrevistando. Nada. Havia apenas uma voz feminina, fora de quadro o tempo todo, fazendo as perguntas. Pensei em algum momento de 2006 particularmente detestável, em que tivesse minhas faculdades mentais completamente abaladas, e também nada. Ao contrário: o e-mail seguinte, do mesmo dia, era de uma pessoa me agradecendo pela noitada divertida, extremamente agradável que eu lhe tinha proporcionado.

Pensei nas pessoas que se importam com o que faço (poucas), pensei nos amigos que mais prezo (poucos), nas pessoas inteligentes em geral (poucas) e me deu vontade de mandar mensagens de advertência para todos, avisando de uma entrevista na internet onde eu mesmo criminosamente tentava me fazer passar por mim, sem nenhum sucesso, aliás.  

Concebi vários planos para eliminar a vergonha. Não fiz nada disso. Com um movimento rápido de um dedo, saí de 2006. Deixei-o onde estava. O que era em 2006, ficava em 2006 com suas contradições e obscuridades.  Voltei à minha atual pessoa e meus atuais e-mails. Saudade, estupor, perplexidade, espanto, vagas alegrias, dores suavizadas pelo tempo, um amontoado de sentimentos confusos e misturados. Tinha durado não mais que 2 minutos.  

 

 

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