Foto: ScarpaUgo Giorgetti - Cineasta e cronista no jornal “O Estado de S.Paulo”, Ugo Giorgetti dirigiu 19 filmes, entre os quais “Festa” (1988) – vencedor do Festival de Gramado –, “Boleiros” (1998), “Sábado” (1995), “Cara ou Coroa” (2011), “Quebrando a Cara” (1986) e “Edifício Martinelli” (1975). Foi o primeiro convidado no Programa “Hilda Hilst” do Artista Residente do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp, atuando entre agosto e novembro de 2018.

Um ônibus na estrada

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Ico by LPO ônibus Mercedes-Benz novinho entrava na Via Anchieta em velocidade moderada. Estava quase lotado. Seus confortáveis assentos estavam ocupados por pessoas de várias idades e aspectos, desde crianças até senhores de idade já meio avançada.

Todos se comportavam como passageiros em ônibus de viagem. Olhavam a paisagem, alguns liam, uma ou outra mãe comentava alguma coisa com sua criança. Num dos assentos centrais sentava-se um senhor, inegavelmente estrangeiro, talvez do Leste europeu, olhar bondoso e azul que passava lentamente de uma pessoa a outra, de algo mais longe para algo mais perto, sempre com um quase sorriso perpétuo nos lábios. Devia ser padre, porque se vestia como padre. 

Era em frente dele, a um metro de distância, ou pouco mais, que estava colocada a câmera. Atrás da câmera algumas pessoas se ocupavam em ajustá-la e uma delas dirigia breves palavras ao padre. Como se pode imaginar, tudo naquele ônibus era falso. Os passageiros não eram passageiros reais, mas figurantes, extras, atores secundários contratados para fazer parte de uma cena de filme.

O “padre” era um famoso ator, na verdade um lendário ator de teatro, russo de nacionalidade, cujo nome era Eugênio Kusnet, que hoje dá seu nome ao antigo e mitológico Teatro de Arena, no centro de São Paulo, pertinho da Igreja da Consolação.

O que estava sendo filmado era um comercial da própria Mercedes-Benz destinado a demonstrar o conforto e a comodidade dos novos assentos. Ao “padre” competia apenas simular, através de sutis movimentos de corpo e de expressão, o bem-estar que a poltrona lhe proporcionava, de tal forma que não resistindo caía rapidamente num sono pacífico, beatífico, com o eterno semi-sorriso que nunca abandonava.

Me parecia incrível que um famoso ator, que tinha encerrado sua participação no grande sucesso que foi a peça “Pequenos Burgueses”, de Máximo Gorki, com direção do então jovem José Celso Martinez Corrêa, pudesse se prestar a fazer um trabalho tão pouco significativo, tão simples, diria, quase, tão medíocre.

Eugênio Kusnet tinha trabalhado na Rússia com grupos de teatro ligados a Constantin Stanislavski, o criador do famoso método de preparação de atores que correu Europa, Estados Unidos e é largamente utilizado até hoje. Como, então, um homem, que tinha trabalhado e estudado sob a influência direta de Stanislaviski, podia estar em algum lugar da Via Anchieta, num ônibus cheio de figurantes, que, aliás, não tinham a menor ideia de quem fosse ele, vestindo uma batina de padre, sorrindo como um querubim ?

Fiquei observando o homem e pensando como era difícil a profissão de ator no Brasil. Naqueles anos deste longínquo comercial da Mercedes, ainda não havia uma poderosa televisão. Ao contrário, a televisão em geral era hesitante, quase tão incerta como o teatro e o cinema como possibilidade de trabalho para atores. Os filmes publicitários se apresentavam como uma saída rápida e, às vezes, salvadora. De qualquer maneira me surpreendia um ator dessa qualidade naquele papel.

A segunda surpresa, porém, que me tocou bastante, foi verificar a maneira com que Kusnet se dedicava ao seu miserável papel. Não o tratava com desprezo, nada em sua atitude demonstrava que estava fazendo um trabalho menor, quase ridículo. Tratava aqueles pequenos movimentos que devia fazer com todo cuidado, repetia várias vezes um mesmo gesto, ouvia atentamente o que o diretor do comercial lhe dizia, com o mesmo interesse como se estivesse no palco do Arena para uma cena importante. Nada lhe escapava, prestava atenção em toda a sua atuação, procurando fazê-la melhor ainda.

Dava a impressão que não estava fazendo um mero comercial, mas teatro. Estava representando, sua tarefa era representar, tinha sido contratado para exercer sua profissão. Não fazia, ao menos não demostrava que fazia, qualquer julgamento sobre o que estava representando. Parecia até não se importar muito com isso. Tudo em sua atitude era de uma dignidade impressionante. Me deu a certeza de que aquele homem estava atuando em nome da dignidade de sua profissão.

O papel podia ser pobre, menor e insignificante, mas a profissão, não. E sua dignidade tinha que ser mantida em qualquer circunstância. Deveria estar presente inclusive quando o papel parecesse prescindir dessa dignidade. E dela, ele não abria mão.

Fez tudo o que o roteiro do comercial exigia. Repetiu as cenas quantas vezes julgou necessário. A filmagem parava ocasionalmente porque a luz se movia lá fora e muitas vezes era necessário encontrar outro lugar da estrada para que a luz voltasse a ser adequada. A filmagem foi interrompida várias vezes ou porque o negativo tinha de ser recarregado, ou para a troca de lentes – ou por outros motivos que eu não compreendia muito bem. A atitude de Kusnet era sempre a mesma. Nunca demonstrou cansaço ou contrariedade com as interrupções. Nunca perguntou quando aquilo ia acabar.

Foi a primeira vez que tive o privilégio de ser o primeiro espectador de um ator exercendo sua arte. E foi a primeira lição que apreendi na atividade de fazer cinema. Outras e outras vezes presenciei atores exercitando sua incrível tarefa. Tive inúmeras oportunidades de me admirar e ficar entusiasmado. Mas essa primeira demonstração de respeito pela própria profissão que, involuntariamente, o grande ator Eugênio Kusnet me deu, nunca esqueci. Ficou muito distante agora, isso aconteceu na metade dos anos 1960. Era meu primeiro dia participando de uma filmagem. Não poderia ter sido melhor.   

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