Um ‘adulto na sala’ do Banco Central

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A independência do Banco Central (BC) em relação ao poder da maioria para eleger, pelo voto, governos com programas dissonantes da ortodoxia econômica foi uma das maiores vitórias, senão a maior obtida pelo campo neoliberal que apoiou Jair Bolsonaro.

É certo que o espírito da lei de 2021, que viabilizou a autonomia, não foi defendida apenas por partidários e eleitores de Bolsonaro. Uma corrente importante de economistas e formadores de opinião não apenas bolsonarista, mas muito influente nos maiores meios de comunicação, há tempos afirmava que a estabilidade econômica do país só seria garantida se as decisões supostamente técnicas do BC não fossem influenciadas pela dinâmica própria da luta política.

O argumento tem um apelo racional. Políticos, em geral, dependem do apoio de outros políticos e de votos. Todos querem fazer valer seus interesses e, assim, criam um conjunto infinito de demandas que vão gerar gastos nas contas públicas impossíveis de serem atendidos. Se não tiverem um freio, os gastos vão superar em demasia as receitas. Uma hora, a conta chega. A dívida se torna insustentável e menos recursos de poupanças privadas serão transferidos para o Estado. Por melhores que sejam as intenções de um presidente em direcionar mais recursos para combater a pobreza, por exemplo, a não observância da parte técnica da macroeconomia eliminaria a própria fonte de financiamento do Estado. Ao fim e ao cabo, a sociedade, especialmente a parcela mais pobre dela, deveria agradecer à equipe técnica por retirar parte do poder do voto que eles mesmos imaginavam ter nas urnas.

Yanis Varoufakis, ex-ministro das finanças da Grécia que, em 2015, precisou lidar com as exigências de austeridade (corte de gastos) no contexto da renegociação da dívida grega com a Comissão Europeia, o BC europeu e o FMI (Fundo Monetário Internacional), usou a expressão “precisamos de adultos na sala”, de Chistine Lagarde, diretora-gerente do FMI, como título do livro que publicou em 2017. Segundo o economista, de fato, “havia escassez de gente grande em muitos dos palcos nos quais esse drama se desenrolou. Como personagens, no entanto, eles se resumiam a duas categorias: os banais e os fascinantes”. Os banais eram aqueles que se resumiam a checar itens em listas de instrução transmitidas por seus mestres. Os fascinantes eram os que tinham a habilidade de entrar em diálogo consigo mesmos, algo, porém, que os tornava suscetíveis à armadilha da profecia autorrealizável.

Roberto Campos Neto, presidente atual do BC, indicado por Jair Bolsonaro, parece querer ser nosso adulto na sala. Para os neoliberais, a independência do BC em relação ao sufrágio popular é um valor em si e a fundamentação técnica de sua equipe não seria afetada por preferências políticas. Bolsonarista ou não, ele saberia como uma economia de mercado funciona e imporia o freio necessário à “gastança” do governo recém-eleito.

O problema, além de o mundo ser constituído de muitos tipos de adultos, é que a discussão econômica chamada de exclusivamente técnica apresenta um grau de crença muito maior do que se imagina. O dissenso entre os economistas sempre existiu, ainda que a onipresença do discurso neoliberal (ou “ortodoxia”) nos meios de comunicação interdite a representação dessa diversidade.

Uma voz dissonante surgiu de onde menos se esperava. Ex-integrante da ortodoxia que, entre outras coisas, elaborou o Plano Real no Brasil, André de Lara Resende resolveu, nos últimos anos, se fazer perguntas que estavam sendo confortavelmente evitadas pelo campo dominante que o formou. Seus livros e textos recentes enfrentam questões áridas do debate entre especialistas sobre moeda, juro e inflação, mas o que se destaca para leitores de outras áreas é a constatação de que boa parte da “lição de casa” cobrada pela ortodoxia dos autoproclamados adultos não traz os efeitos que promete gerar. O pouco crescimento com elevada desigualdade que marca o período mundial recente não arrefeceu o “dobrar de aposta” do programa neoliberal desde a crise de 2008, e a consequência política mais perigosa disso tem sido a emergência da extrema-direita em vários países do mundo.

Em texto recente no jornal Valor Econômico, Resende chama a atenção para o fato de que a histeria em relação à “gastança” do novo governo, além de exagerada (o tamanho e o tipo da dívida no Brasil não trazem necessariamente o risco que propagam), é muito mais seletiva do que se imagina: “A PEC [Proposta de Emenda Constitucional] da Transição autorizou despesas em torno de 2% do PIB [Produto Interno Bruto]. A alta da taxa básica de juros, promovida por canetadas do BC desde o início de 2021, custou quase o dobro desses 2% do PIB, só em 2022. Faz sentido?”.

Mais importante ainda, Resende retoma o que, por décadas, economistas desenvolvimentistas (“heterodoxos”) consideram um problema central: como propiciar condições para investimentos produtivos sendo que uma parcela cada vez mais significativa do “mercado” está atrelada (material e ideologicamente) a uma lógica exclusivamente rentista, isto é, sem lastro material de produção efetiva de riqueza? Continua:

“Quem tem renda de ativos financeiros não é inimigo da pátria, mas faz parte da parcela privilegiada da população. Não são investidores, como gosta de denominá-los a mídia e os economistas do mercado financeiro, são rentistas, o que também não é crime, mas preciso distinguir entre quem aplica sua riqueza, herdada, conquistada ou poupada, em ativos financeiros para ter renda sem correr riscos e quem verdadeiramente investe em capital físico, organizacional e intelectual e contribui para o aumento da capacidade produtiva do país.”

O saber técnico que fundamenta a independência do BC, além de elementos de crença, é produto de interesses particulares que se pretendem universais. Em outro momento, retomo o problema moral que reveste parte essencial do debate. É importante voltar ao nosso adulto, porém, agora, em outra sala: aquela que recebeu a famosa reunião interministerial de abril de 2020.

Analisamos a íntegra da transcrição da reunião para um artigo feito com meus colegas Mariana Chaguri e Michel Nicolau Netto, publicado pela Brasiliana: Journal for Brazilian Studies. O problema central do artigo foi compreender como conservadores e neoliberais naturalizaram a política deliberada de Bolsonaro de fazer o vírus circular na pandemia e oferecer tratamentos ineficazes à população.

Que tipo de adulto foi Roberto Campos Neto nessa sala? Que papel cumpriu naquele momento tão trágico da história recente do país?

Sua intervenção veio na sequência das falas de Pedro Guimarães (ex-presidente da Caixa Econômica Federal) e Ernesto Araújo (ex-ministro das Relações Exteriores). Enquanto Guimarães se mostrava, por um lado, estarrecido pelas operações da polícia para fazer valer as medidas de isolamento social e, por outro, tranquilo quanto aos perigos da doença (“se tiver qualquer coisa, vou lá tomar um litro de hidroxicloroquina, aquelas coisas todas”), Araújo alertava que os planos do governo não poderiam ficar restritos ao tema do crescimento econômico, mas priorizar “a liberdade, o combate à corrupção e a reinvenção do Brasil”.

Roberto Campos Neto pede então a palavra e aborda três pontos. Primeiro, explicou que os juros naquele momento estavam baixos em razão da derrota do PT em 2018 e da reforma da previdência. Segundo, revela que, em conversas com bancos e investidores estrangeiros, há um medo de sofrerem “sacanagem” por parte do Estado brasileiro, o que seria resolvido se houver uma melhor “governança” do sistema econômico. Para tanto, seria preciso “colocar agentes internacionais” nessa governança.

O “medo de tomar risco” o leva ao terceiro ponto, que serve como forma de criar uma homologia entre comportamentos no mercado financeiro e o comportamento das pessoas em contexto de pandemia: “Se amanhã você permitir a todo mundo ir  a um estádio de futebol ver um jogo, será que todo mundo vai sair de casa e vai?”. Segundo Campos Neto, “o fator medo é interessante porque, quanto mais informação você tem, mais medo você tem”. Um leitor desatento imaginaria que o adulto na sala estivesse se referindo à potencialidade destrutiva da covid-19 naquele momento. Mas não. O medo das pessoas não tem a ver com a doença, mas com o fato de que a “mídia joga medo”. Problema maior: a “classe mais alta tem mais medo do que a classe mais baixa, exatamente porque eles têm mais acesso à informação e a informação é enviesada”.

Em sua intervenção, a única referência aos termos vida e morte não é feita em relação às pessoas, mas a gastos que podem “manter uma empresa viva que ia morrer”.

É preciso ter muita atenção a adultos como esse – em qualquer sala em que estiverem. Até porque, como observa Varoufakis, não há mocinhos ou vilões, mas pessoas que sempre consideram estar fazendo seu melhor. Muito mais quando a eles, sobretudo aos banais, são atribuídos poderes que, no limite, esvaziam de conteúdo a democracia que se pretende preservar.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

Sávio Cavalcante é professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. 

Contato: saviomc@unicamp.br.

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