A Universidade e os ecossistemas de empreendedorismo e inovação

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Em anos recentes, as universidades brasileiras, assim como outros atores do sistema de ciência e tecnologia, têm sido alvo de sistemáticas e coordenadas ações de enfraquecimento das suas estruturas. Tais eventos, claro, não ocorrem sem infames precedentes históricos ao redor do mundo. Felizmente, a comunidade de discentes, técnicos, docentes e pesquisadores se recusa a assumir um papel passivo nesse contexto e têm se esforçado não somente para desenvolver resultados de excelência, mas também para divulgá-los perante a sociedade. Busca-se, assim, uma legitimação da universidade em momentos nos quais suas contribuições são questionadas. 

De fato, as universidades são instituições possuidoras de uma natureza tão complexa que, frequentemente, são mal compreendidas até mesmo por suas plurais comunidades internas. Construir pontes com a sociedade é salutar e bem-vindo, ampliando a transparência e integração entre a universidade e o contexto em que ela está inserida. Dentro desse cenário, um papel da universidade que tem ganhado proeminência em períodos recentes diz respeito às suas contribuições diretas aos ecossistemas de empreendedorismo e inovação. Talvez aqui seja importante também entender em maior profundidade o fluxo inverso, isto é, os benefícios de ordem científica e acadêmica que fluem de tais ecossistemas para o ambiente das instituições de ensino superior – um tema que acaba por receber menos atenção do que merece.  

Para fins de esclarecimento, definimos ecossistemas de empreendedorismo e inovação como arranjos locais de interação entre agentes (componentes “bióticos” do ecossistema), ocorrendo dentro do escopo de instituições formais e informais (componentes “abióticos”). Em oposição aos ecossistemas naturais, contudo, os ecossistemas de empreendedorismo e inovação carregam consigo um elemento teleológico, sendo orientados à geração de novas formas de criação de valor socioeconômico[1], tanto por novas empresas como por organizações consolidadas. Nesse âmbito, o conhecimento – em seus mais diversos formatos – assume protagonismo como pilar de sustentação da própria lógica dos ecossistemas. 

Uma simplificação dessa lógica leva à conclusão simplista de que a universidade é berço da geração e difusão de conhecimento, podendo, assim, prover esse “insumo” aos demais agentes do ecossistema. Essa visão sugere que a universidade cumpriria um papel de “fábrica de conhecimento”, o que coloca, ainda, o conhecimento como uma commodity industrial. A evidência empírica com a qual nos deparamos, no entanto, aponta para uma realidade substancialmente diferente[2]

É certo que há um contingente substancial de pesquisas realizadas no ambiente acadêmico que possuem potencial para serem aplicadas comercialmente. Isso ocorre por meio de mecanismos diversos, os mais comuns contemplando a abertura de empresas (as spin-offs acadêmicas, não esquecendo o empreendedorismo estudantil) e o licenciamento de patentes. Com vistas a estimular tais práticas, o marco regulatório brasileiro adotou perspectivas amplamente fundamentadas no Bayh-Dole Act, lei estadunidense orientada a regulamentar a propriedade intelectual e sua transferência no contexto de universidades e institutos de pesquisa daquele país. No Brasil, isso correspondeu à promulgação da Lei de Inovação de 2004 (Lei 10.973/2004) e, mais recentemente, à sua revisão por meio do Novo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei 13.243/2016). Tais ações representaram inequívocos avanços à integração entre as universidades e os ecossistemas de empreendedorismo e inovação, mas ainda passam ao largo de uma compreensão em profundidade desse fenômeno, sem mencionar os impasses para a regulamentação e a operacionalização de tal marco. 

Muitos dos fluxos de conhecimento com os quais a universidade está envolvida possuem um caráter informal, não estando, assim, passíveis de controles e planejamentos gerenciais. Efetivamente, o que parece haver é uma centralidade de interações não estruturadas, fundamentadas em conhecimento construído e compartilhado por estudantes, docentes, técnicos e sociedade em ritmo frenético e alheio a planejamentos e objetivos formais. Permitir uma boa dose de caos é essencial para que o empreendedorismo e inovação floresçam no ambiente acadêmico. E isso envolve entender que os conhecimentos da sociedade e das próprias empresas também fluem para a universidade, combinando-se dialeticamente com o conhecimento científico e enriquecendo a matriz de saberes da comunidade acadêmica e, por sua vez, do ecossistema como um todo. 

Essa colaboração propriamente dita vai além da visão compartimentalizada e unidirecional da transferência de tecnologia, a qual supõe criação isolada de conhecimento para posterior fornecimento. Essa é a chave para a geração de um efetivo mutualismo entre as universidades e o seu contexto. A notícia positiva é que as universidades brasileiras – principalmente as públicas, as quais concentram boa parte da pesquisa nacional – têm evoluído significativamente nesta esfera[3], ainda mais quando analisado o contexto paulista. 

A má notícia diz respeito às incertezas geradas pelo subfinanciamento da pesquisa científica, o que impacta diretamente a capacidade das universidades de atraírem e reterem capital humano qualificado. Esses são elementos que afetam negativamente não somente as atividades acadêmicas, mas a própria capacidade das universidades de ampararem o amadurecimento dos ecossistemas de empreendedorismo e inovação. A construção de capacidades, tanto no nível micro da universidade como no nível macro do ecossistema, é um processo cumulativo, coevolutivo e dependente de trajetórias.  E por que isso importa?

Primeiro porque afeta a qualidade e a quantidade de pesquisas com potencial para geração de ganhos socioeconômicos. Os indicadores de licenciamento de tecnologias e de criação de spin-offs são importantes medidas de contribuição das universidades para o tecido econômico, sem dúvida. Mas contam uma história bastante incompleta e míope do papel das universidades nos ecossistemas. De fato, as universidades demonstram contribuições múltiplas para a sociedade, muito além da geração de competitividade empresarial. Nisso se inclui a geração de tecnologias frugais, isto é, direcionadas à solução de problemas de comunidades vulneráveis, democratizando o acesso a bens, serviços e condições de vida dignas para a população[4]. Complementarmente, são berços do surgimento de novas empresas fundamentadas em tecnologias orientadas ao desenvolvimento ambientalmente sustentável[5]. Isso significa que o papel das universidades nos ecossistemas de empreendedorismo e inovação não se restringe a elementos quantitativos, mas possui potencial de estimular transições qualitativas nesses ecossistemas. Essas mudanças são essenciais frente aos desafios que a sociedade humana enfrenta e continuará enfrentando no futuro. 

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É de fundamental importância colocar que os argumentos aqui expostos não representam de nenhuma forma uma ideia de hierarquia de impactos da universidade na sociedade. Em nenhuma hipótese buscamos sugerir que as relações estabelecidas pela universidade com o ecossistema de empreendedorismo e inovação se sobrepõem a outras missões da universidade. As missões das universidades precisam ser vistas como complementares. Ensino, pesquisa e extensão atuam como sistemas que se retroalimentam não somente com base nos fluxos internos, mas também por meio das interações com o ecossistema no qual a universidade está inserida e com os sistemas globais. 

De fato, tais contribuições não somente são múltiplas, mas, na maior parte das vezes, são indissociáveis em sua essência. E é com base nessa visão que a universidade não deve e não pode ser vista de forma meramente instrumental na dinâmica dos ecossistemas de empreendedorismo e inovação. Além disso, a autonomia da comunidade acadêmica deve ser respeitada irrestritamente, permitindo, sim, maior envolvimento com empreendedorismo e inovação para aquelas e aqueles que enxergarem nessa finalidade algo legítimo e alinhado com seu senso de identidade pessoal e profissional. Por outro lado, jamais impondo que a comunidade acadêmica se envolva com atividades a respeito das quais não há interesse ou aderência dos indivíduos. O respeito à diversidade e pluralidade de perspectivas é o esteio do próprio ethos da universidade.


[1] Dessa forma, excluímos aqui a mera noção de autoemprego como sinônimo de empreendedorismo. Não consideramos, tampouco, a definição genérica de “abertura de novos negócios”, uma vez que esses não necessariamente coincidem com novas formas de criação de valor socioeconômico, estando mais próximos da ideia de circulação de valor. Pelo contrário, a literatura internacional tem consistentemente relatado que tais formas de empreendedorismo estão negativamente associadas com o desenvolvimento econômico.

[2] Schaeffer, P. R., Guerrero, M., & Fischer, B. B. (2021). Mutualism in ecosystems of innovation and entrepreneurship: a bidirectional perspective on universities’ linkages. Journal of Business Research, 134, 184-197. doi:10.1016/j.jbusres.2021.05.039

[3] Fischer, B. B., Schaeffer, P. R., & Vonortas, N. S. (2019). Evolution of university-industry collaboration in Brazil from a technology upgrading perspective. Technological Forecasting and Social Change, 145, 330-340. doi:10.1016/j.techfore.2018.05.001

[4] Fischer, B., Guerrero, M., Guimón, J., & Schaeffer, P. R. (2021). Knowledge transfer for frugal innovation: where do entrepreneurial universities stand? Journal of Knowledge Management, 25(2), 360-379. doi:10.1108/JKM-01-2020-0040

[5] Fischer, B., Bayona-Alsina, A., da Rocha, A. K. L., & de Moraes, G. H. S. M. (2022). Ecosystems of green entrepreneurship in perspective: evidence from Brazil. International Journal of Technological Learning, Innovation and Development, 14(1-2), 52-77. doi:10.1504/IJTLID.2022.121475

 

*Bruno Brandão Fischer é professor associado da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) Unicamp e pesquisador do Laboratório de Empreendedorismo, Inovação e Comércio Internacional (LEICI)

**Paola Rücker Schaeffer é diretora de gestão da inovação da Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul e professora da Atitus Educação 

 

Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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