Por Peter Schulz*
Para pensar sobre a universidade e a pandemia é necessário traçar um panorama do longo caminho de transformações que as universidades sofreram até março de 2020, quando as atividades presenciais não essenciais foram suspensas nas instituições de ensino superior brasileiras. O panorama aqui é claramente incompleto, mas pode ser um guia para discutir as emergências e o futuro das universidades[i].
Para não voltar no tempo até as academias gregas, podemos marcar a origem do que identificamos como universidade nas instituições com esse nome, que surgiram a partir do século XI na Europa. Eram, certamente, muito diferentes das atuais, mas algumas de suas características sobreviveram até hoje: um grupo de estudantes e outro de mestres, que se organizavam em cursos e suas disciplinas e, não menos importante para tantos, as provas e exames. Seus propósitos, autonomia e governança foram se modificando e se diversificando profundamente ao longo de quase dez séculos. No início, por exemplo, a universidade de Bolonha era governada pelos estudantes. Em seus primórdios eram também organizações com autonomia e liberdade, que no decorrer do tempo foram sendo perdidas, à medida que elas se expandiam para atender as demandas de administração dos novos estados nacionais. Durante o Renascimento eram avessas à nascente ciência moderna, que se organizava em outras instituições. Assim, aos poucos as universidades foram entrando em decadência e só voltaram a se recuperar no final do século XVIII, quando começaram a ser engendradas as diferentes ideias das universidades modernas.
Duas obras fundamentais do final dos anos 1700 delinearam questões que nunca saíram de pauta nas discussões sobre ensino superior. Denis Diderot, em seu “Plano para uma universidade”, publicado em 1775, defendia a educação pública e laica e, em suas palavras: “Universidade é uma escola cuja porta está aberta indistintamente a todos os filhos de uma nação e onde os mestres estipendiados pelo Estado os iniciam no conhecimento elementar de todas as ciências”. Pouco mais de duas décadas se passariam até que Immanuel Kant publicasse em 1798 “O conflito das faculdades”, conflitos esses que podemos resumir agora nas tensões entre a profissionalização, as faculdades superiores, e a filosofia (ou formação geral desinteressada de então), a faculdade inferior. Conflitos, que em diferentes modalidades sobrevivem nas universidades, quando não são ampliados externamente, como nos recentes ataques às ciências, as humanas e socais em particular. E a partir do legado de Diderot, Kant e outros, o século seguinte viu florescer as ideias e modelos de universidades dos quais somos ainda herdeiros.
Logo no começo do século XIX surgiram os modelos napoleônico e o germânico, este marcado pela fundação da Universidade de Berlim e seu manifesto, ambos de Wilhelm von Humboldt. A “universidade humboldtiana” foi a que, resumidamente, colocou sob um mesmo teto o ensino e a pesquisa. E inventou os departamentos e institutos, legado duradouro de organização. O modelo inglês, de universidade como guardiã do conhecimento desinteressado, algo elitista e separada da pesquisa é descrita pelo cardeal Newman em seu “A ideia de universidade”. Mais para o final daquele século, diferentes formas do chamado “modelo americano” trouxeram a extensão como missão, permitindo o posterior mantra da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, que tanto enunciamos sem necessariamente discutir o que é indissociabilidade.
Devemos, em seguida, a Abraham Flexner a tentativa de uma síntese nos anos 1930, detalhada no seu texto “A ideia da universidade moderna”. Esse resumo de um longo ciclo de ideias se fecha com Clark Kerr nos anos 1960 e suas palestras reunidas no livro “Os usos da universidade”, em particular seu capítulo redefinindo a instituição como uma “multiversidade”. Nenhum dos modelos anteriores chegou a existir em estado puro, cada universidade é única e depende do seu contexto histórico e social. Kerr nos avisa que “uma universidade em qualquer lugar não pode almejar mais do que ser tão britânica quanto possível em prol de seus estudantes, tão alemã quanto possível em relação à pós-graduação e pesquisa, ou tão americana quanto possível para com o público em geral – e tão confusa quanto possível para preservar seu difícil equilíbrio geral”. Na multiversidade não há mais “gigantes”, como von Humboldt, cardeal Newman ou Flexner, mas mediadores de todas as tribos acadêmicas e interesses diferentes de uma instituição com múltiplos propósitos. Vejamos a multiversidade em que nos encontramos. A Unicamp, com suas 24 unidades de ensino e pesquisa, abriga, pelo menos, 24 variantes de ideias de ensino, outras tantas sobre pesquisa e extensão, resultando em mais de 13 mil combinações possíveis. O desafio de mediação é como, novamente nas palavras de Clark Kerr, fazer com que todos tenham algo a mais em comum do que simplesmente o ar-condicionado central ou o estacionamento. A principal missão de um reitor na multiversidade seria buscar a paz entre os que procuram uma vaga nesse estacionamento.
Coloco um fim arbitrário nesse ciclo nos anos 1960 de Clark Kerr, pois novos desafios e pressões começaram a marcar nesses anos o fim da “era de ouro das universidades”, segundo outros autores mais recentes. Até o início dos anos 1970, por exemplo, o ensino nas universidades públicas americanas era gratuito, quanto às mensalidades ou anuidades. A “anarquia organizada” para preservar seu difícil equilíbrio, a ideia de que a universidade seria uma organização única, diferente de todas as outras, foi sendo forçada a seguir o rumo da accountability e mimetizar outras organizações. Seria possível? Christine Musselin diz que não: e que “tal conclusão não tem a intenção de desqualificar a introdução de ferramentas e práticas de gestão nas universidades. Ela simplesmente sublinha que as especificidades das universidades não podem ser ignoradas.”
O gerencialismo se intensifica nos anos 1980, quando os atuais ataques à universidade pública começaram a ser sistematizados, tendo como marco o relatório do Banco Mundial de 1986: os estados de países subdesenvolvidos ou emergentes não deveriam envidar esforços para o ensino superior, que deveria ficar para a iniciativa privada. E se instaura aqui um paradoxo: ao mesmo tempo em que a universidade pública passou a se defender, ela assumiu as regras do gerencialismo e da accountability (não estou falando das prestações de contas dos gastos), que é tão bem simbolizada pelo “fetiche dos rankings”. E não faltam alertas dos especialistas em indicadores de que a missão da universidade deve vir em primeiro lugar e não a corrida pela colocação nos rankings.
Não poucos acadêmicos passaram a criticar esse estado de coisas, como já tive oportunidade de discutir em outros momentos. Para não me alongar demais quero lembrar apenas dois. Tristan McCowan, que por aqui esteve recentemente discutindo a educação com bem público, alude a Simon Marginson: “enumera três ameaças a essa ideia [educação superior como bem público]: a busca pelo status (como promovida pelos rankings de universidades), a comercialização do ensino superior e sua desagregação (o mito, entre outros, da salvação pelo ensino à distância)”.
Lembro também críticas da época em que o neoliberalismo acadêmico começava a se espalhar, como as do pedagogo estadunidense, Ernst Boyer, que, no início dos anos 1990, rediscutiu as missões da universidade, acrescentando duas às três que nos são familiares. A quarta missão seria a integração: “estabelecer conexões entre as disciplinas, posicionando as especialidades em um contexto mais amplo, iluminando os dados de forma reveladora, frequentemente pensando também nos não especialistas”. A quinta missão, revelada em 1996 em uma publicação póstuma, é a do engajamento, que vai além da extensão. A percepção de Boyer era de que o intelectual acadêmico passou a ser cada vez mais o recipiente de um cargo na universidade escrevendo em um determinado estilo voltado apenas aos seus pares, participando cada vez menos de um discurso público mais amplo. Com isso a contribuição da universidade estaria se afastando das grandes questões da sociedade.
A menção a tantos nomes, sem aprofundar as ideias, tem o propósito de revelar uma percepção incomoda: nos debates intramuros, como, por exemplo, aqueles com candidatos a reitor, essas ideias e seus autores não aparecem. Nem mesmo pensadores que usam ou usaram a nossa língua, como por aqui Anísio Teixeira ou Darcy Ribeiro, ou além-mar, como Boaventura de Sousa Santos. Parece que vivemos uma paráfrase de seu livro “Da ideia de universidade à universidade de ideias”, que se transforma em “da ideia de universidade à universidade de métricas”.
Isso até, por que não escolher a data, março de 2020 e, dado os limites de espaço, apenas um parágrafo para a pandemia, mas que sigam as discussões absolutamente necessárias. Embora assustados, aflitos e depois indignados com o descaso do governo federal, percebemos na universidade a retomada de um ethos que parecia perdido. A colaboração voltou a ser mais importante do que a competição. A universidade passou a pautar as agendas, em vez de ser pautada por agências. A integração, na acepção dada por Boyer, passou a ser praticada entre diferentes áreas e atores. Os pesquisadores passaram a sair dos seus colégios invisíveis para participar do discurso público mais amplo abraçando a missão do engajamento. A universidade se colocou no centro das grandes questões da sociedade. Ainda que de forma muitas vezes precária, a equidade se juntou à agenda da inclusão nas necessidades do ensino remoto emergencial.
Resta saber se não perderemos essa oportunidade de rediscutir a universidade, lembrando mais uma dupla de críticos, Geoffrey Boulton e Colin Lucas, em 2011, que remete também a outras ideias aludidas acima.
“É o complexo e interagente todo da universidade que é a fonte dos distintos benefícios econômicos, sociais, culturais e utilitários apreciados pela sociedade. Ela precisa ser entendida, valorizada e administrada como um todo. Essas percepções são um desafio direto não apenas para governos, mas também para gestores universitários, que têm sido ou assombrados ou seduzidos pela lógica inadequada que está levando a demandas que universidades não podem satisfazer, enquanto obscurecem suas mais importantes contribuições”.
Na pandemia vimos sinais dessas percepções e de suas contribuições importantes obscurecidas, não podemos, nesse sentido voltar ao normal.
Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).
[i] Agradeço aos professores Álvaro Bianchi e Roberto do Carmo, diretor e diretor-associado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, pelo convite ao evento “Universidade e Pandemia”, que permitiu a apresentação das reflexões deste texto.