JU - A má conduta científica é uma preocupação crescente em todo o mundo, colocando em risco a reputação de instituições e, mesmo, países – no ano passado, divulgou-se que 80% dos dados de testes clínicos chineses são falsos, um golpe para a imagem da ciência daquele país. Como tratar essa questão?
Marcelo Knobel – Esta é uma preocupação presente em todas as universidades do mundo. E deve ser nossa também. O assunto deve estar incorporado na prática diária e na formação. Propomos, além da ética na pesquisa, tratar a questão do ponto de vista da ética e da conduta profissional em todas as dimensões. Propomos promover o debate sobre diretrizes de ética e integridade acadêmica e oferecer orientação à comunidade da Unicamp; incorporar, nas disciplinas de todos os cursos, conteúdos relacionados à sustentabilidade, ética e valores humanísticos, para aprimorar a formação dos estudantes e criar, em todos os cursos, formas de orientação de alunos de pós-graduação em ética na pesquisa. Vamos também apoiar e valorizar o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), constituído pelos seus dois comitês (Pesquisa em Seres Humanos e Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais), dando-lhe as adequadas condições de trabalho (espaço físico, apoio e recursos humanos) e uma eficiente estrutura organizacional, através da certificação do órgão. Na área biomédica, vamos apoiar e ampliar a infraestrutura e as atividades de pesquisa experimental que dependem do fornecimento de animais de laboratório, garantindo controle genético, sanitário e de ambiente adequado, assegurando condições ideais para experimentação em estrito respeito à legislação e sob a supervisão da Comissão de Ética em Experimentação Animal (CEUA/Unicamp).
Criaremos um Comitê de Ética Institucional, que será um grupo multiprofissional que receberá, analisará e encaminhará as diversas manifestações recebidas pela Ouvidoria da Universidade, referentes a conflitos interpessoais, assédio moral e sexual, discriminação de gênero, racial, religiosa e demais posturas inadequadas ou desrespeitosas. Essa instância deverá estabelecer protocolos e treinar pessoal de acordo com as melhores práticas para o acolhimento de relatos, queixas, denúncias, com o objetivo de garantir atendimento rápido, seguro e respeitoso a todos os envolvidos. Em paralelo, vamos trabalhar no desenvolvimento de um Código de Conduta Ética e Profissional, que será formulado e constituído de maneira participativa, e versará sobre os princípios da administração pública, constituindo valioso instrumento de orientação e consulta, com vistas à promoção do respeito mútuo, na construção das boas relações e na adoção de posturas e ações profissionais.
Luís Alberto Magna – Infelizmente, nenhum lugar do mundo está completamente imune a esse tipo de má conduta, a qual pode ser mais acentuada em alguns lugares do que em outros, mas a comunidade científica precisa sempre estar atenta a essa questão. A Unicamp, como parte desse cenário, igualmente tem se ressentido de episódios semelhantes. Importante dizer que, em muitos casos, passam-se anos até que a má conduta seja evidenciada, pois requer avaliação criteriosa pelos pares, isto é, os pesquisadores e especialistas na matéria, até que a inconsistência dos dados seja cabalmente mostrada.
Evidente que tais más condutas merecem todo o repúdio e devem ser apuradas com rigor e a maior rapidez possível, daí o fato de que, usualmente, as revistas científicas o fazem com mais presteza e precisão, ao contrário de instituições como a nossa. O Comitê de Ética em Pesquisa é órgão que não tem essas atribuições precipuamente, o que indica que, dada a comunicação do fato por um determinado periódico, cabe à instituição à qual pertence o pesquisador – ou pesquisadores – promover a investigação para adotar as medidas aplicadas ao caso.
Por causa dessas questões, muitas revistas científicas e sociedades científicas têm comissões que cuidam especificamente dos desvios éticos dos pesquisadores, com quadros de assessores ad hoc rapidamente mobilizáveis para emissão de parecer conclusivo, o que pode ser pensado na Unicamp para, acima de tudo, preservar seu bom nome, que é o lastro da “marca Unicamp” que queremos ver fortalecida na defesa dos interesses institucionais de nossa Universidade.
Leo Pini – Denúncias de má conduta científica da parte de pesquisadores vinculados à Unicamp podem afetar a reputação da Universidade e devem ser institucionalmente apuradas. A nossa legislação atual provê todos os mecanismos para a investigação e a punição de transgressores que fazem parte de nossa comunidade acadêmica, sejam eles denunciantes ou denunciados, discentes ou servidores docentes ou não-docentes. Má conduta científica, após sua comprovação, deve ser punida de forma exemplar, podendo levar à demissão ou expulsão da Universidade. Um reestudo e aperfeiçoamento da legislação voltada à prevenção, e não apenas à punição, desses delitos deve ser uma prioridade de qualquer gestão.
Deve-se observar que os casos de má conduta científica estão fortemente associados à pressão por mais publicações acadêmicas em curto espaço de tempo, levando a procedimentos acadêmicos antiéticos e inadequados como falsificação de dados, omissão parcial de dados, plágio e autoplágio, casos muitas vezes tornados públicos por órgãos de fomento como a Fapesp e por sites independentes como o Retraction Watch.
Uma política institucional de incentivo à publicação e transparência de dados de pesquisa, principalmente daquelas financiadas com recursos públicos, é mecanismo essencial para inibir a falsificação de dados e resultados de pesquisas, além de servir como elemento para uma difusão mais ampla das pesquisas realizadas na Unicamp. Porém, o modo mais eficaz de aliviar essa pressão pela publicação (o famoso “publish or perish”) é a definição de outras métricas para valorizar a pesquisa, tais como o seu impacto social. Mais uma vez, a descentralização da gestão tem aqui forte papel, pois em diferentes campos do saber devem ser definidas métricas diferenciadas, que possam indicar como valorizar a Pesquisa e a Inovação Responsável em cada área de pesquisa.
Antonio Fonseca – Quando a alta administração da Universidade, que é composta por docentes, apresenta boa conduta ética, a tendência é que os demais os sigam.
Rachel Meneguello – As questões envolvidas com a ética em pesquisa são centrais não apenas para a reputação da Universidade, mas porque as atividades de pesquisa e a conduta acadêmica devem ser desenvolvidas a partir de princípios éticos e valores, de modo a garantir a integridade de indivíduos e o patrimônio material e imaterial de populações pesquisadas.
Testes falsos, fabricação de resultados, plágio, publicação redundante, ou o não acompanhamento das regras básicas legais que regulamentam a relação do pesquisador com o indivíduo ou com o objeto de pesquisa são condutas alheias ao valor básico da honestidade intelectual, descoladas das definições legais e morais consagradas da pesquisa científica e de sua divulgação.
A Unicamp está adequada às legislações federal e estadual através da formação das várias comissões de ética – Comissão de Ética em Pesquisa (CEP), Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA), Comissão do Patrimônio Genético (PATGEN), e mais recentemente, a Comissão de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas.
A Comissão de Ética em Pesquisa tem feito um trabalho cuidadoso de atenção ao atendimento às normas e à legislação pertinente para os projetos de pesquisa apresentados na Unicamp, mas os desdobramentos positivos desse trabalho requerem ainda um esforço institucional na definição e divulgação do que a Universidade considera como “boas práticas” ou “boa conduta científica”.
É preciso dotar a instituição de um Código de Conduta de Pesquisa interno, que regulamente a conduta de alunos, professores, pesquisadores e funcionários em suas atividades de pesquisa e na divulgação dos seus resultados, de forma a preservar os valores e normas que subsidiam os princípios da Universidade nas suas atividades de pesquisa e produção de conhecimento. Estamos tratando da disseminação e consolidação de valores morais e éticos na produção científica e, dessa forma, ganham importância as ações educacionais para a comunidade acadêmica, que devem se consolidar nos cursos de Graduação e de Pós-Graduação, e em atividades amplas de reflexão e debates.
Mas cabe ainda uma reflexão sobre o sistema acadêmico de reconhecimento e recompensa que rege a dinâmica da produção científica nacional e internacional. Em boa medida, tais condutas negativas resultam de defeitos desse sistema, que se baseia em indicadores contábeis que, por exemplo, estimulam a proliferação de artigos, a velocidade inadequada da produção, e outros problemas éticos variados. Se esse sistema não for revisto, não é difícil prever os efeitos deletérios que tais comportamentos podem provocar sobre as atividades de pesquisa na instituição, desde a iniciação científica até os projetos institucionais mais amplos.