Felipe Bezerra
Texto e fotos
Em 16 de janeiro de 2023, fui enviado pela Unicamp para São Gabriel da Cachoeira. O meu objetivo profissional era registrar a aplicação das provas do Vestibular Indígena. As palavras e fotos que aqui compartilho são, e são somente, alucinações controladas que tive e tenho, como são todas as palavras e imagens de cada dia, de cada um de nós.
A Unicamp sustenta a ousada iniciativa de promover um processo seletivo exclusivo para candidatos de origem indígena, brasileiros descendentes das pessoas que habitavam essas terras antes de o Brasil ser Brasil; antes de o Brasil servir para alguma coisa, como o pau-brasil, o ouro, o café, o açúcar, o petróleo e o nióbio (Ah, o nióbio... Mais disso em poucos anos, estimado Caio Prado Júnior...). O meu objetivo pessoal era conhecer um pouco mais dessas terras e pessoas distantes do meu universo, que, apesar disso, fazem parte, comigo e com você, cara leitora, caro leitor, desse rico amálgama que chamamos de República Federativa do Brasil, essa massa territorial e cultural que compartilhamos de alguma maneira, essa democracia que, apesar de dificuldades e lapsos de loucura em longas noites mal dormidas, sobrevive desde sua ressurreição há pouco menos de 40 anos. Meu objetivo pessoal era igualmente conhecer um pouco mais de mim.
Chegar a São Gabriel da Cachoeira – SJL para os que estão acostumados a adotar inexplicáveis apelidos “aeropórticos” para cidades queridas, como GYN para Goiânia, BSB para Brasília, VCP para Campinas, MAO para Manaus etc. – é, em si, uma aventura, uma promessa não imediatamente simples de se cumprir. Apesar de o voo de quase quatro horas até Manaus ter transcorrido bem, nosso pequeno Embraer, que partira de terras manauaras às 7h45, horário local, fez seu pouso sobre essa mesma pista por volta das 10h00. Voando, São Gabriel dista pouco mais de uma hora da capital amazonense. É possível, também, o acesso por rotas fluviais, passeio Rio Negro acima, com variadas durações a depender da modalidade. Às 9h25, horário previsto para nossa aterrissagem, a “Cabeça do Cachorro” (apelido carinhoso dado ao município, pelos seus próprios habitantes, devido à semelhança do seu mapa à forma canina da cabeça - veja o mapa ao lado) não estava em nós, mas, literalmente, nas nuvens. O tempo apresentava nebulosidade baixa, sem qualquer condição para uma sã autorização de pouso a olhos desnudos, a única forma de se deitar seguramente uma aeronave em SJL hoje. Após minutos de “cera” aeronáutica, o comandante anunciou o retorno a MAO. Revés. Rezar para São Pedro não teria resolvido. Ainda que a rocha da Igreja se compadecesse daqueles pobres viajantes, nada poderia fazer na jurisdição de outra entidade. Nas terras indígenas, não é Simão quem determina as agendas pluviométricas, mas Tupã, o mensageiro dos trovões, que, como nos era patente, exercia o seu direito de não afastar as nuvens que cegavam as habilidades do nosso piloto. O paraíso tropical no canto noroeste do Brasil repousava indiferentemente sob a capa de neblina que o protegia da nossa presença. Para Gabriel, sossego; para nós, Manaus mais uma vez.
Sobre tempo e previsões, sob chuva e frustrações
A promessa de entrega dos nossos corpos e bagagens a SJL fora transferida para a manhã seguinte: mesmo horário, mesmo aeroporto, mesma aeronave, mesmos assentos. O número do voo era outro: BCDE em vez de ABCD. Detalhe irrelevante. Outro detalhe irrelevante é que, diferentemente do ontem, chovia naquele hoje. A bordo da aeronave, ouvi atentamente o recado do piloto. Meio sem jeito, como se a culpa do insucesso da véspera pudesse ser razoavelmente a ele imputada, explicou que São Gabriel carecia dos equipamentos necessários à viabilização de pousos exclusivamente por meios tecnológicos, cenário próprio da qualidade dos céus naquela hora; acrescentou que, caso tivéssemos que pousar naquele instante, reeditaríamos o feito de 24 horas atrás, um bate e volta com origem e destino final em Manaus; provavelmente no intuito de não minar todas as esperanças de chegarmos ao destino almejado, concluiu dizendo que atrasaríamos nossa decolagem em “7 minutinhos”, assumindo, presumi, que bastasse isso para colocar as vicissitudes das entidades meteorológicas locais a nosso favor. Sete minutos me pareceram pouco, mas eu seria o primeiro a questionar minha competência para análises climáticas, mais ainda minha familiaridade com a psicologia dos deuses originários... A essa altura, porém, não seria uma segunda frustração. Frustração, então, seria pousar em SJL, dada a quase promessa de retorno recém-recitada. Uma feliz frustração, convenhamos. O segundo voo foi quase idêntico ao primeiro, exceto pelo gelo previamente quebrado entre mim e meu colega de fileira, a quem eu conhecera na véspera após acordar com o anúncio de retorno e para quem “não se fazem mais pilotos como antigamente”.
Pouco antes do combinado, o comandante anuncia, com uma alegria um tanto contida, que os procedimentos de pouso seriam iniciados em instantes. Isso confirmou a minha ignorância sobre assuntos do tempo e dos deuses. Sob aplausos e sorrisos aliviados, nosso pássaro de alumínio, borracha, plástico, querosene e proteínas animais beijou graciosamente o liso solo de piche do aeroporto regional da “capital estadual dos povos indígenas”, São Gabriel da Cachoeira.
O epíteto não é fruto de exagero, tampouco mera força de expressão. SJL foi formalmente assim reconhecida em 12 de janeiro de 2022, pouco mais de um ano atrás, após a publicação da Lei Estadual 5.796. Apenas formalmente, pois materialmente o é há muito mais tempo. Hoje, sabe-se que acolhe em seu território um total de 23 etnias originárias, com mais de 90% da sua população composta por indígenas e descendentes.
No universo do multilinguismo encarnado
O município tem o português como língua oficial, por razões de, como se diz atualmente, Marquês de Pombal, e possui, como línguas cooficiais, o nheengatu (a famosa língua geral oriunda do tupi, praticamente a mesma proibida pelo supracitado nobre lisboeta em meados do XVIII), o tucano e o baníua, idiomas indígenas reconhecidos legalmente pelo ente federativo são-gabrielense desde 2002. Parece muito, e de fato é – nada é comparável a estar de corpo presente em rodas de conversas indígenas, alegres e espontâneas, nas quais tudo lhe parece glossolalia para atestar a sua impotência comunicativa –, mas não assegura a representatividade da realidade linguística do espaço. Lá se fala também o baré, o yanomami, o desano, as línguas dos povos hupdas e yuhupdëh, para citar as de que mais ouvi, todas com direito às suas variantes e dialetos, sobretudo as duas últimas. Peço que tenham calma com a minha empolgação, queridos amigos que ainda me leem. Quando digo que lá se falam esses idiomas, é preciso esclarecer. Pretendo dizer, na verdade, que essas línguas, lá, para muitas pessoas, são a primeira língua aprendida, um dos fundamentos do que poderíamos chamar de identidade cultural. Numa palavra, não são apenas línguas faladas, mas literalmente encarnadas; línguas dessa terra, desse povo, dessas carnes morenas, vermelhas, outrora pintadas, que são daqui desde antes de haver história sobre esse chão, como, talvez, concordasse [Mircea] Eliade.
A barreira linguística traz uma experiência difícil de se colocar em palavras (peço perdão pelo trocadilho besta, ato falho verdadeiro): tornar-se gringo dentro do Brasil. Foi o que senti após a minha primeira "flanação", depois de descarregar as malas e reforçar, merecidamente, o desodorante e protetor solar fator 70, pálido-róseo desacostumado com o clima tropical que sou. Fica evidente que estar no Brasil e ser brasileiro, quando me encontro cercado por indígenas – que, apesar de, em sua maioria, dominarem bem a fala do português, têm como primeira, até segunda, língua o tucano ou o nheengatu antes do idioma de Brasília –, é um acidente. É um acidente ser brasileiro ali, para mim e para eles. É quase como se não pudéssemos, à primeira vista, ser o mesmo povo. Quase. Não somos, mas, de alguma forma inexplicável, também o somos. É só à primeira vista.
Eu, aliás, falo português por acidente, como todos nós. Se não falo, tento. Minha primeira língua é a imagem, o sonho. Humano que sou, nessa eu nasci fluente. Se você é humana também, compreende. Essa, todo mundo entende. Sente. Não apenas isso, mas, eu arriscaria dizer, prefere, sobretudo as crianças. Não precisamos falar a mesma língua quando somos humanos. Talvez para construirmos uma ponte ou desenvolver um sistema de informática, isso seja bem útil – e, por favor, não me entenda mal: pontes, vacinas e internet (esta quando sabiamente usada) são soluções mais do que bem-vindas –, mas não é necessário para sermos, ser no plural, juntos, no instante.
Eu é você.
Você sou eu.
Teu sorriso me pertence; o meu, sempre foi seu.
Alteridade. A primeira sensação.
Identidade. A zerésima sensação.
Como o zero, às vezes passa batido; com atenção, fica claro que vem antes de tudo. Se olhamos, nada há de comum na superfície; através dela, os mundos de todos nós se encontram.
Antes de sermos brasileiros, indígenas, brancos, pretos, RGB, CMYK, escala de cinzas, curipacos, piratapuias, yanomamis, apenas somos. O encontro acontece, mesmo que um “oi” seja impossível. Quanto mais conversava e via as pessoas e era visto pelas pessoas, mais me convencia de que estava em casa, mesmo que não fosse a minha. Não tem problema. Casa é casa. A sensação de familiaridade se fazia premente em todos os olhares – sim, quando você é o gringo da cidade, é inevitável o olhar curioso, interessado, de quase todo mundo cuja vista você corta ao passar –, pois as cascas insistem em reforçar as diferenças.
Um território de tesouros originários
São Gabriel da Cachoeira fica no noroeste do Amazonas, no noroeste do Brasil, encostadinha no poderoso Rio Negro. Faz fronteira com os municípios de Santa Izabel do Rio Negro (AM, Brasil), Japurá (AM, Brasil), com os territórios administrativos de Vaupes (Colômbia), Guainía (Colômbia) e com o Estado do Amazonas (Venezuela). Há dois Amazonas, um do lado do outro, mas é só no papel e nas mentes de quem acredita. Seja como for, é longe. Mas longe de onde? Longe de quem? É longe de onde eu moro, mas só. É perto de onde eu estava, perto de mim, tão perto quanto se queira chegar. ε… δ… Limite? Alcance. Se o espaço é contínuo, tudo é perto.
É uma região estratégica para os interesses do Brasil, fundamental para o progresso e desenvolvimento nacionais. Por quê? Se não é óbvio, vejamos. Lá, a variedade cultural implica zelo diante dos tesouros originários que ainda podemos salvar, uma prioridade para uma nação que se pretende novamente atenta aos objetivos de proteção da dignidade humana. Acho que Celso Furtado foi mais feliz do que se reconhece quando indicou que desenvolvimento é, necessariamente, social e econômico. Só concordo se for cultural também e ele só concordaria, estou certo, nessa condição igualmente. É um território estratégico, além disso, para a Unicamp, que tanto tem aprendido ao tentar auxiliar estudantes indígenas a acessarem algumas das mais finas oportunidades de ensino superior no Brasil. Em 2023, houve recorde de inscrições: 3.480. Gosto desse número. Gosto porque é grande, mas gosto mais porque cresce. Que belo ano para um recorde desses...
São Gabriel está, como contei há pouco, dentro dos Yanomamis, o povo que hoje está com fome e malária em Roraima, que desde Claudia Andujar tem nos mostrado as dificuldades de convivência mediante um critério mínimo de sobrevivência e dignidade. Interessante. O progresso regrediu. Curioso como o tempo linear da era histórica teima em se apresentar cíclico, contraditório tantas vezes.
A vida aparente de São Gabriel da Cachoeira é diferente do que imaginava antes de chegar a uma cidade conhecida por ser tão indígena. A ignorância aliada aos imaginários superficiais pode nos sugerir que haverá encontros com indígenas pintados, práticas ritualísticas ancestrais quase que nas ruas, porte de zarabatanas, flechas, arcos e outras armas e ferramentas típicas das caricaturas oriundas das atribuições anacrônicas que se faz do indígena. A constatação vem das perguntas que ouvi de quem soube que eu iria ao Amazonas – “será que lá tem indígena de verdade (sic)? Será que lá fazem ayahuasca? Arco e flecha?” –, questões, acho, pouco relevantes e desinteressantes até para quem perguntava, percebia eu. Mas, sim, lá tem indígena de verdade. Como poderia ser diferente? Todos os indígenas são de verdade.
Um cara-pálida por detrás da caixa preta
Eu encontrei uma cidade, em parte como qualquer outra, em parte, única. Depois de um tempo, mesmo os mais distraídos e menos antenados aos detalhes raciais notam a semelhança dos fenótipos dominantes. Aqui, sou o cara-pálida, literalmente (em Campinas eu sou também). Mas isso é um detalhe. A humildade geral dos habitantes se apresenta de forma autêntica e, ao mesmo tempo, clemente. Alguma coisa está fora de lugar. Muitas coisas estão fora de lugar. Penso na inauguração do tempo histórico, no fim do tempo do mito. Queda. Despertar. Desespero. Como não? Ali, na floresta amazônica, pensávamos, haveria o homem primitivo, não? Não. Pelo menos não mais do que vemos em outras cidades. O fato corta para ambos os lados. Ao passo que o indígena ingressou no tempo histórico, assemelhou-se aos demais que lá já estavam, adquirindo, também, as mazelas condizentes com a condição do homem moderno. E quase que só as mazelas. Não foram raras as ocasiões de encontros com homens – sobretudo homens – embriagados já pelo final da manhã, perambulando, pelas ruas e vielas do centro. Alguns rindo, outros tropeçando, outros tropeçados e uns, mesmo parados, andando sobre a linha fina do limiar da anestesia completa. Com que cidade não se parece? Com alguma que eu não conheço, certamente.
Havia muitas crianças. Muitas. Por definição, pelo menos por uma possível, uma criança é um serzinho que tem menos tempo vivido do que o adulto (não precisamos cair na ciclicidade dos termos tentando definir o que é um adulto, um problema bem próprio do nosso século, não fujamos). Tábula mais rasa. Mais daquilo que há e não há em todos nós desde o começo. Menos história. Mais mito? Mais verdade.
Os olhares curiosos pueris quase sempre terminam em graça após uma oferta pública inicial de afeição, aquela impossível de se ignorar. Gente nossa: nos encontramos no sorriso. Basta. A câmera é a desculpa perfeita para ser feliz. Um dos meus padrinhos intelectuais, Joan Fontcuberta, me antecede: grato ofício nessa hora. O tio, aqui, aproveita o discreto consentimento de quem cuida, autorizando o clique por um sutil aceno de cabeça, exagera os movimentos, causa um pouco mais de risos e fica parado por uns instantes, um pateta concentrado, escondido atrás de uma caixa preta meio estrambólica. Em segundos, a criança se encontra com ela mesma, agora pequenininha, paradinha, desenhada numa telinha. Mais risadas, mais sorrisos, dessa vez da mãe, do pai, da irmã ou tio que está com a pequena ou o pequeno.
A condição do indígena deve ser pelo menos tão ambígua quanto aquela do não indígena. Na verdade, é mais, com certeza. Os descendentes dos povos primitivos parecem habitar um interstício temporal complexo. Foram arremessados na história, mas não estão inseridos nela ainda. A vida social, urbana, industrial, moderna etc., bem como a vida no mundo dos mitos, é uma estrutura, material e cósmica. Sair de um barco não significa entrar em outro. Sair da vida primitiva, original, não é suficiente para uma inserção no tempo linear. O que me parece um entrave é o aumento da entropia desse processo: é um caminho sem volta e o indígena foi empurrado para essa rota e abandonado no meio dela. O resultado parece ser o mesmo de quando isso se sucede dentro da própria cidade, a saber, a corrosão das condições de sobrevivência – e, como Furtado provavelmente insistiria, sobrevivência implica dignidade. Ainda não sabemos como resolver esse problema, seja em Campinas, seja no Alto Rio Negro. Não sabemos? Não sabemos, mesmo. É um problema de ignorância, mas me parece uma ignorância, coletiva, inconscientemente consentida, o que só significa ainda mais ignorância. Talvez? Sem dúvidas.
Tupã, a dança das corredeiras e um coração
São Gabriel da Cachoeira tem um nome curioso. Gabriel, arcanjo do Senhor, “homem poderoso de Deus”. É o nome do meu único irmão, caçula. Eu busquei, mas não encontrei as cachoeiras constantes do RG da cidade. Pior ainda: busquei, encontrei, mas não sabia que havia encontrado. As cachoeiras às quais São Gabriel pertence são, para o linguajar ao qual sou afeito, corredeiras: fluxos de água do leito do rio com gradiente elevado, implicando turbulência e alta velocidade de escoamento... Não são quedas d’água como as que vemos em Brotas, por exemplo, tampouco correntezas. São perigosas movimentações hídricas na superfície do leito, discretas o suficiente para serem facilmente subestimadas e, ao mesmo tempo, perigosas o bastante para matar barcos e quem eventualmente cair deles.
Mas são lindas. As cachoeiras de São Gabriel fazem movimentos com variáveis intensidades na tez da água em meio a rochas que parcialmente protuberam numa dança simultaneamente caótica e harmônica, como as línguas que aqui ouvi e que poderia ouvir indefinidamente. Convenceram-me de que aquela imensidão negra é, numa palavra, viva. As águas são vivas. O Rio Negro está em vários pontos literalmente se remexendo. De longe, parecia-me uma piscina gigante, uma poça larga, paradinha. De perto, arrebatou-me. Revolve violentamente em alguns pontos. Repousa noutros.
Vórtices, espumas e pedras se revezam permanentemente na completação da paisagem amazônica para aqueles que têm a sorte de olhar para dentro desse abismo. Eu olhei. Não olhei muito, mas olhei um pouco. Olhei o suficiente? Nunca saberei. Pensei em [Friedrich] Nietzsche, que alertou bem para esse perigo, mas o Rio Negro olhou de volta para mim. Apenas me olhou de volta. Não me engoliu. Não que eu saiba. Honestamente, o encontro com essas forças, mecânicas, hidráulicas, oníricas, me convenceu da razão de o inconsciente ser tão bem representado pela água nos nossos sonhos. Eu vi. Se é negra, então, a analogia passa a identidade. Pensei também em [Carl Gustav] Jung, que equipara Deus ao Inconsciente. Navegar sobre o corpo Deus. Foi essa a sensação que os passeios sobre o Negro me deixaram. Talvez nada tenha sido mais violento e doce nesse delírio do que o encontro com essas águas vivas bruxuleantes.
As alucinações e os delírios que experimentei não caberiam em textos, nem em fotos, nem em vídeos. Sequer cabem em mim, que não encontrei ainda os limites do meu infinito de dentro. Sei que me entendem, leitora, leitor. O seu infinito de dentro é assim também. Ainda fluem as curvas do Rio Negro nos meus sonhos tortuosos; a radiação sonora de fundo que vem da Floresta para o alto da Pedra da Cosama ainda ecoa junto à memória do pôr do sol na Amazônia; os olhares e os encontros com tantos homens e mulheres, tristes e felizes, sofrendo e sorrindo, ainda me fazem chorar e rir por dentro e por fora.
A volta para Campinas foi mais difícil do que a ida para Gabriel. Sem querer, metade do meu coração ficou lá. Sem querer querendo, certamente, como diria [Sigmund] Freud e Chaves. Tupã estava lá, no aeroporto. Levado. Mais uma vez se fez inconveniente, mas dessa vez convenientemente: pregou ao voo que nos buscaria a mesma peça que ao nosso dias atrás, o que nos rendeu uma estadia adicional na cidade. Um choro, para moquear mais memórias, para que durem mais, como a carne do peixe. Em Campinas, em Barão Geraldo, na Unicamp, aguardo a chegada dos nossos indígenas. Nossos, porque da Unicamp, porque do Brasil; nossos porque somos deles também. Virão com seus anseios, com seus frios criogênicos na barriga, com seus desejos e sonhos possíveis e extravagantes, meio que como quase todos que vêm para a universidade. Peço que não tragam de volta o pedaço do meu coração que esqueci de lembrar de trazer: os que carregam nos vossos peitos bastarão para mim.
Texto: Felipe Bezerra
Fotos: Felipe Bezerra
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