audiodescrição: imagem colorida, selo "De volta a São Gabriel"

Como a árvore sumaúma

Por Juliana Sangion (Especial para o Jornal da Unicamp)

Fotos: Felipe Bezerra

 

“Hoje nos chamam de mulheres-bioma, mas não somos bioma, nós somos da terra, somos o centro da vida, o centro da floresta, dos rios, do sol e da roça” — Elizângela Baré.

Ao chegar à casa, que fica no bairro Dabaru, em São Gabriel da Cachoeira, encontrei Elizângela na varanda, sentada ao lado da irmã e da sogra, trabalhando com uma das palhas que usa para os artesanatos que produz. A varanda fica ao lado de um pequeno espaço onde ela expõe suas criações. São colares, brincos, enfeites de decoração, bolsas e outros adornos. Se o espaço é reduzido, o colorido é imenso e chama a atenção.

“Meu artesanato preferido é o abano, pois com ele faço o beiju que comemos, mas também é um belo artesanto e gera renda. Então é um símbolo de geração de renda sustentável, que não polui e não destrói a natureza”, conta Elizângela.

Ao me ver, descendo da lotação que me deixou em frente à casa, Eli anunciou: chegou a professora! E eu respondi: não, não, chegou uma mulher e uma grande admiradora sua! A tentativa era de dizer o quanto ela, enquanto mulher, me inspirava. E não somente pelo importante papel de liderança indígena, mas sobretudo como mulher que mantém sua essência e encontra exatamente nela a força para sua jornada.

Por isso, escolhi começar o texto com a imagem da Elizângela artesã. Essa mulher guerreira que tem muitas facetas fez questão de ressaltar, ao longo da nossa conversa naquela tarde, que sua base vem de valores como o coletivo, o cuidar, o ser mãe e esposa, filha e irmã. Ela — que é socióloga e ocupou durante anos o cargo de diretora do departamento de mulheres de uma imporatnte organização indígena do Rio Negro — me contou que prefere se apresentar como artesã.

Foi através da comunicadora indígena Daniela Yepá, estudante da primeira turma de ingressantes indígenas pelo Vestibular Unicamp e que cursa Estudos Literários no Instituto de Linguagens (IEL), que ouvi pela primeira vez o nome de Elizângela Baré. Daniela, que é da mesma cidade de Elizângela, São Gabriel da Cachoeira (AM), a conheceu enquanto ela estava à frente do Departamento das Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). Daniela participava do projeto de comunicadores da região, a Rede Wayuri, ligado à FOIRN.

Perguntei-me se eu não deveria, como jornalista, atuando em uma das mais importantes universidades da América Latina, ter conhecido muito antes o trabalho dessa socióloga indígena. Ocorre que o apagamento do nome, do trabalho e das lutas de lideranças indígenas brasileiras ainda é muito presente no país. Mulheres como Elizângela Baré e tantas outras deveriam ocupar maior espaço na mídia. Espera-se que esse cenário mude, a partir do fortalecimento dos movimentos indígenas, especialmente o das mulheres, e da criação inédita, no atual governo, do Ministério dos Povos Indígenas, que tem à frente Sônia Guajajara.

Elizangela
Elizângela Baré no espaço onde ela expõe suas criações; são colares, brincos, enfeites de decoração, bolsas e outros adornos: artesanato preferido é o abano 

Elizângela Baré fez parte de manifestações importantes como o ATL (Acampamento Terra Livre), que ocorre anualmente na capital federal, Brasília, e participou da Primeira Marcha das Mulheres Indígenas, também em Brasília. Foi um marco, pois pela primeira vez a capital foi tomada pelos cantos, rituais, gritos e pinturas exclusivamente de mulheres indígenas vindas de diferentes partes do território nacional.

Mas, antes da imagem de guerreira e liderança, o que pude entender sobre a atuação de muitas mulheres indígenas, na conversa com Eli, foi a maneira como se dá a relação com a terra, com os alimentos, com a natureza. É esta conexão que pauta o trabalho dessas lideranças e, ao mesmo tempo, fortalece-as para lutarem por outras questões, entendendo que a coletividade é um traço da resistência na cultura indígena.

“Minha força vem do meu dia a dia, dos meus produtos, da minha língua, dos artesanatos, vem do meu pai, da minha mãe, da minha sogra, do meu esposo. Muitas vezes, as pessoas perguntam: por que você não se apresenta como socióloga? Eu digo: não, eu sou artesã, eu sou agricultora, eu sou uma mulher indígena! Prefiro falar assim, porque as mulheres que estão no meu território, muitas vezes, não sabem se identificar como sociólogas, antropólogas, fotógrafas... mas, sim, como artesãs, mulheres indígenas, mães, que cuidam da família, da língua, das crianças, do território. Como minha mãe sempre fala, nós mulheres sabemos nos cuidar mais do que os homens, inclusive, a pandemia mostrou isso. Teve mais óbitos de homens do que de mulheres, porque tomamos banho de plantas, fazemos defumação, tomamos os chás. Já os homens são mais resistentes”, disse Elizângela.

Elizângela da Silva é do povo Baré, da terra indígena de Cué-Cué Marabitanas, que fica em São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste Amazônico. É licenciada em sociologia, com especialização em educação indígena. É agricultora, artesã, socióloga e coordenou o Departamento de Mulheres da FOIRN entre 2017 e 2020. Para se ter a dimensão do seu trabalho, o departamento representa 33 associações de mulheres espalhadas nas nove terras indígenas de abrangência da FOIRN. 

Em 2020, com a chegada da pandemia de covid-19 ao Brasil, especificamente nos territórios indígenas do Rio Negro, Elizângela lançou a campanha “Rio Negro, nós cuidamos”, cujo objetivo era fornecer atendimento, medicamentos, insumos para testes de covid-19, máscaras, álcool em gel e cestas básicas, itens que só podiam ser transportados para chegar às comunidades indígenas por via fluvial. O trabalho na coordenação da campanha rendeu à Elizângela algumas reportagens em veículos de imprensa, que reconheceram a importancia de seu papel durante a pandemia, como a revista Marie Claire, que a colocou na seção de “Mulheres do Mundo”. Já pelo Universa, do UOL, ela foi finalista do Prêmio Inspiradoras, na categoria Conscientização e Acolhimento, uma iniciativa com o Instituto Avon para “descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras”. 

No entanto, os esforços para manter a saúde da população de São Gabriel da Cachoeira e, sobretudo, das comunidades mais afastadas do núcleo urbano do município, interromperam seu foco mais antigo de luta: pelo direito das mulheres indígenas e contra a violência de gênero.

Elizângela vinha trabalhando por esses direitos em diversas aldeias e na própria cidade, onde, inclusive, a maioria das ocorrências policiais são feitas por mulheres. Depois que Elizângela assumiu a coordenação, o alcance do departamento saltou de 400 para 750 comunidades nas nove terras indígenas da região. Porém, faltavam dados e informações nos registros, dificultando levantamentos e investigações. Elizângela pressionou para haver uma delegada em São Gabriel, no entanto, a pandemia paralisou as ações em curso, suspendendo os programas nesse sentido.

Elizangela e Juliana Sangion
Elizangela com a jornalista Juliana Sangion; socióloga integra a equipe da Rádio Sumaúma em que recebe jornalistas para falar de bastidores das reportagens sobre a Amazônia, a partir de diferentes assuntos

"Por 522 anos nos mandaram esquecer nossa língua"

Atualmente, Elizângela tem feito da palavra uma de suas principais ferramentas de luta. No ano passado, foi convidada a integrar a equipe do Sumaúma, uma plataforma de jornalismo independente da Amazônia, a partir da floresta e da perspectiva de seus povos, apresentando o podcast Rádio Sumaúma. Ela conta que já foram feitos 10 programas e ressalta o alcance dessa mídia. 

“Eu já tinha tido a experiência de fazer conteúdos em áudio, junto com a Rede Wayuri, mas o alcance do podcast na Sumaúma é imenso, assim, podemos falar com mais pessoas, indígenas e não-indígenas”, explicou.

A cada episódio, Eli recebe jornalistas para falar de bastidores das reportagens sobre a Amazônia, a partir de diferentes assuntos. Sobre os ataques recentes ao Planalto, em Brasília, Eli disse que, quando perguntada a esse respeito, respondeu: “Foi horrível, mas aquilo tudo depois de amanhã será recuperado. Mas vocês se perguntam sobre nós, o que fizeram com a gente? Por 522 anos nos mandaram esquecer nossa língua, esquecer nosso território. Quando isso será recuperado? Em compensação, nossa força vem do centro da Terra, de onde está nosso umbigo, onde a gente nasceu e cresceu”, disse.

Recentemente, Elizângela foi aprovada como a primeira mulher indígena no mestrado em Saúde Pública, na USP (Universidade de São Paulo). Ela contou que, apesar da alegria da aprovação e da perspectiva de mudança para São Paulo, para cursar o mestrado, ela vai aguardar o resultado da bolsa que solicitou à Universidade, pois sem isso não terá como se manter por lá. Assim como a árvore Sumaúma, uma das maiores da floresta amazônica, cujas raízes, ao puxarem água do solo e lançarem ao céu, unem céu e terra, Eli desfruta dos sonhos com os pés fincados no chão.

“Eu quero ir para a universidade, sim”, ela me diz, “mas não quero deixar meu artesanato, minha roça. Minha mãe estava rindo, porque eu disse que só vou em julho, assim dá tempo de plantar a maniva, e ela respondeu: ainda bem que tu não vai ficar sem roça!”.

Para mim, Elizângela é como a sumaúma, uma gigante, que puxa do chão a água que engrossa os rios que voam sobre nossas cabeças!

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