Por Juliana Sangion (Especial para o Jornal da Unicamp)
A partir de hoje (17/1), o Jornal da Unicamp dá início a uma série de reportagens sobre o universo indígena, com foco na aplicação da quinta edição do Vestibular Indígena Unicamp, unificado com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), desde o ano passado. O recorte geográfico da série é a cidade de São Gabriel da Cachoeira, município do estado do Amazonas, com a maior população de povos originários do Brasil. “De Volta a São Gabriel — Diário do Vestibular Indígena” retoma a cobertura que a equipe de reportagem realizou na primeira edição da aplicação das provas, em 2018, e posteriormente, na chegada e recepção aos calouros indígenas, em 2019.
A relevância da série se relaciona com o momento histórico em que ocorre o Vestibular Indígena. Sua quinta edição é realizada em um contexto em que, pela primeira vez na história do país, o Brasil tem um Ministério dos Povos Indígenas, cuja ministra é a indígena Sônia Guajajara, empossada no último dia 11 de janeiro, em Brasília. Durante seu discurso, ela falou sobre o difícil contexto enfrentado pelos povos indígenas no Brasil, duramente intensificado nos últimos quatro anos do governo Bolsonaro. Guajajara ressaltou que, além de representar inclusão e reconhecimento, a criação do Ministério é o início da reparação histórica da invisibilidade e da negação de direitos dos indígenas.
A Unicamp tem, hoje, cerca de 350 estudantes indígenas — e deve alcançar 480 com o ingresso dos calouros 2023 até março —, número que era praticamente nulo em 2018, antes da chegada dos primeiros ingressantes nos cursos de graduação. Desde então, os estudantes têm movimentado a produção de conhecimento e os debates no ambiente acadêmico. Em 2022, o campus de Campinas sediou, por iniciativa dos próprios estudantes, a 9ª edição do ENEI – Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, evento que reuniu cerca de 2 mil estudantes universitários de todo o país, além de várias lideranças, intelectuais, artistas e representantes do poder público e da comunidade acadêmica. Foram discutidos temas como saúde e educação indígena, retrocessos nos direitos dos povos originários, meio ambiente e sustentabilidade.
Como parte das políticas de inclusão aprovadas pela Unicamp no final de 2017 e que começaram a valer a partir do ingresso em 2019, o Vestibular Indígena foi a modalidade que apresentou maior aumento proporcional de demanda e de vagas, passando de 66 vagas oferecidas no primeiro ano para 130. Os campi passaram a receber, desde 2019, estudantes que contribuem não apenas para uma Universidade com maior diversidade étnica, mas para a significativa expansão da troca de saberes e de conhecimentos científicos e culturais.
Um dos impactos dos quatro primeiros anos da convivência com os saberes indígenas na academia é que o conhecimento dos povos originários contribui para transformar a visão de ciência. Durante a realização do ENEI, em julho de 2022, foram apresentadas e debatidas mais de 100 pesquisas de estudantes indígenas da pós-graduação, para os quais fazer ciência é também sinônimo de resistência.
Comparadas às vagas do Vestibular Unicamp, as 130 vagas oferecidas pelo Vestibular Indígena equivalem a 5% das vagas. A relação candidatos por vaga é de 26,7, contra 24,3 no vestibular tradicional. Com inscrições gratuitas, a procura pela modalidade tem despertado o interesse de cada vez mais estudantes indígenas. Na primeira edição, em que foram oferecidas 66 vagas, inscreveram-se 610 estudantes. Ano a ano, nas quatro edições, esses números foram aumentando, como mostram os dados da tabela abaixo. Na segunda edição do Vestibular Indígena, a Comissão de Vestibulares registrou 1.675 inscritos. Já na terceira edição, a Unicamp registrou 1.697 inscritos, sendo o segundo ano consecutivo em que o número ficou acima dos 1.500 candidatos. No primeiro ano de unificação com a UFSCar, o crescimento foi ainda maior, passando a 2.805 candidatos. E, na edição mais recente, para ingresso em 2023, houve novo recorde, com 3.480 inscritos, que disputam 130 vagas na Unicamp e outras 130 vagas na UFSCar.
Vestibular unificado
Desde a edição para ingresso em 2022, Unicamp e UFSCar se uniram para oferecer o vestibular indígena. A decisão das universidades de unificar o vestibular para estudantes indígenas teve como objetivo facilitar o seu ingresso, a partir da constatação de que há uma intersecção entre os estudantes que buscam vagas em ambas as universidades. Desta maneira, tanto as inscrições como a prova passaram a ser realizadas de forma conjunta e operacionalizadas pela Comissão de Vestibulares da Unicamp (Comvest).
No ano da unificação, a UFSCar já havia feito 14 edições da modalidade de ingresso para estudantes indígenas, e a Unicamp, três.
Perfil dos estudantes
Em relação às carreiras, as mais procuradas pelos estudantes têm sido aquelas da área da saúde/ciências biológicas. Tanto na Unicamp, como na UFSCar, cursos como Medicina, Enfermagem, Nutrição, Farmácia, Odontologia e Fisioterapia encabeçam a lista dos mais buscados no Vestibular Indígena.
Provas contextualizadas
A prova, desde sua primeira edição, de acordo com a Comissão de Vestibulares, procurou levar em conta a realidade da educação básica no contexto indígena. Em depoimento ao Portal Unicamp, à época da primeira edição, o diretor da Comvest, José Alves de Freitas Neto, comentou como se dá o diálogo com tal realidade.
“A prova foi pensada desde o início considerando que a Unicamp seleciona para cursos de graduação e considera a realidade educacional desse público. Sabemos da disparidade que existe no sistema educacional brasileiro, das desigualdades de oportunidades entre os milhões de brasileiros que frequentam o ensino público. Ao mesmo tempo, a Unicamp sempre teve claro que desejava uma prova que dialogasse diretamente com a realidade desses estudantes indígenas”, explicou José Alves.
Na mesma entrevista, José Alves falou, ainda, sobre a importância da iniciativa do Vestibular Indígena no contexto social e político brasileiro. “O cenário politico brasileiro e internacional não é simples, e, diante desse cenário, uma universidade deve buscar respostas que não sejam triviais. O Vestibular Indígena representa isso, não dar respostas triviais a problemas complexos que a sociedade brasileira vivencia. Assim, acolher e ter esses estudantes aqui é ampliar a interlocução da universidade pública e comprometida com o desenvolvimento da sociedade brasileira, como é a Unicamp”, salientou.
Outra preocupação da Universidade é com a permanência desses estudantes. Na medida em que fazem a matrícula, os ingressantes são orientados pelo Serviço de Apoio ao Estudante da Unicamp (SAE) sobre as diferentes bolsas de auxílio para que possam se manter em Campinas. Fora do âmbito institucional — mas tão importante quanto ele —, está o trabalho das redes de apoio, organizações que, desde o início da implantação das ações de inclusão como o Vestibular Indígena e as cotas étnico-raciais, têm tido papel fundamental na adaptação dos estudantes.
João Florentino da Silva, ou João Baniwa, como é conhecido, estudante da graduação em Ciências Econômicas, no Instituto de Economia da Unicamp, e também do MBA latu-sensu “Master Business Exponential”, oferecido pela Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação, ingressou na primeira turma de calouros indígenas. Vindo de São Gabriel da Cachoeira, João conta que foi recebido pela Rede de Apoio Ubuntu Unicamp.
“Com essa recepção, aprendi como é fundamental esse primeiro contato ao chegar à Unicamp. Diante disso, passei a fazer parte da rede de apoio, pois percebi a importância dessas redes na vida dos estudantes ingressantes, sejam indígenas ou não-indígenas. De 2019 a 2022, venho ajudando de forma voluntária os estudantes indígenas, seja com orientação, transporte, hospedagem, matrícula e outros benefícios que a Universidade oferece. É importante lembrar que a redes de apoio se expandiram e atualmente são compostas, além dos estudantes, por professores e outros apoiadores”, disse Baniwa.
Ouça o depoimento do estudante João Baniwa sobre a prova do primeiro Vestibular Indígena:
São Gabriel da Cachoeira, um município da tríplice fronteira
O município de São Gabriel da Cachoeira está localizado na bacia do Rio Negro, no noroeste do estado do Amazonas, tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. O Rio Negro — que nasce na Colômbia — é o maior rio de águas pretas do mundo e o principal afluente do Solimões, com o qual se encontra em Manaus para formar o Amazonas. Para os povos indígenas, é um rio sagrado.
São Gabriel da Cachoeira, assim como boa parte dos municípios que integram a Amazônia Legal, está sob a pressão de questões que envolvem a demarcação de territórios, explorações ilegais de recursos naturais, riscos da mineração, lógicas econômicas exploratórias, dentre outros.
Por outro lado, a cidade é uma das mais ricas em diversidade étnico-cultural, com 23 povos indígenas, que se espalham em cerca de 750 comunidades, nas diferentes calhas dos rios. Um dos patrimônios da região, reconhecido oficialmente pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), é o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, que abrange as plantas cultivadas, os espaços, as redes sociais, a cultura material, os sistemas alimentares, os saberes, as normas e os direitos. De acordo com o Instituto, “os povos indígenas que habitam a região noroeste do Amazonas — ao longo da calha do rio Negro e das bacias hidrográficas tributárias — detêm o conhecimento sobre o manejo florestal e os locais apropriados para cultivar, coletar, pescar e caçar, formando um conjunto de saberes e modos de fazer enraizados no cotidiano. O Sistema acontece em um contexto multiétnico e multilinguístico em que os grupos indígenas compartilham formas de transmissão e circulação de saberes, práticas, serviços ambientais e produtos”.
São 16 línguas faladas no Alto e Médio Rio Negro, sendo quatro línguas co-oficializadas em São Gabriel da Cachoeira: Baniwa, Tukano, Nheengatu e, mais recentemente, o Yanomami.
Em 2018, a bacia do Rio Negro foi reconhecida internacionalmente como a maior área úmida preservada do planeta e ganhou o título de Sítio Ramsar Rio Negro, como é conhecida a Convenção Internacional destinada à preservação de áreas úmidas em todo o mundo, vitais para a sobrevivência da vida e para a manutenção da biodiversidade. Pela primeira vez no Brasil, um sítio Ramsar foi criado contemplando terras indígenas.
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Rio Negro ganha status internacional de maior zona úmida do planeta no 8o Fórum Mundial da Água - IPAAM. Acesse a matéria.