Por Juliana Sangion (Especial para o Jornal da Unicamp)
Escolhi terminar a minha participação na série “De Volta a São Gabriel – Diário do Vestibular Indígena” (outras matérias ainda virão) com um relato sobre seu Bibiano, um senhor de 57 anos, do povo tukano, pai da estudante da Unicamp Daniela Yepá — que ingressou na primeira turma do Vestibular Indígena, em 2019, no curso de Estudos Literários, ministrado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. A escolha é uma tentativa de salientar a importância não apenas da iniciativa inclusiva da Universidade, mas também a importância de entender e respeitar a trajetória familiar e cultural de cada um dos estudantes indígenas que chegam aos campi da Unicamp, vindos das diferentes regiões do país. Tal respeito passa, certamente, pelas políticas de permanência, mas também por conhecimento e acolhimento das histórias desses estudantes por parte de toda a comunidade acadêmica.
Bibiano Barbosa é um pequeno agricultor, em São Gabriel da Cachoeira, no pedaço de terra indígena no igarapé Wakatunu, no Rio Negro, cuja posse algumas famílias receberam há cerca de 20 anos. Era por volta de uma hora da tarde quando veio ao nosso encontro, levar-nos para conhecer o sítio. No grupo, estavam também a coordenadora acadêmica da Comissão de Vestibulares (Comvest), professora Márcia Mendonça, e o pró-reitor de graduação da Unicamp, professor Ivan Toro. Subimos na caçamba do veículo chamado de táxi-carga para percorrermos poucos quilômetros de uma estrada de terra batida, conhecida como Ramal 1, até chegarmos à entrada do igarapé.
Bibiano fez questão de mostrar a sede da associação das famílias do igarapé Wakatunu e pontuar que falta apoio das autoridades para mantê-la. O engajamento político e social sempre esteve presente na vida de seu Bibiano, segundo a filha Daniela. “Admiro a trajetória de trabalho de meu pai enquanto esteve atuando, pessoa politizada, atualizada e sempre dando conselhos sobre a vida e, principalmente, sobre política. Atualmente, se dedica à agricultura, por decisão dele mesmo e da família”, contou.
Passando praticamente a semana toda no sítio, seu Bibiano consegue acompanhar de perto a roça e as suas plantações: açaí, mandioca, pimentas, jacumã, limão, cupuaçu e uma variedade de outros frutos que, para alguém da região sudeste, são novidades sem fim. Ali ele mantém, também, uma pequena casa de farinha, onde torra a mandioca e faz o xibé — mistura de água com farinha de mandioca, muito apreciada na região.
“Meu pai nos ensinou que os valores do ser humano não vêm das riquezas que possuem, e sim da simplicidade que se constrói a cada dia. A simplicidade aparece quando a pessoa dá valor à vida e não ao dinheiro", disse Daniela ao falar sobre o pai.
Em Campinas desde 2019, a estudante só voltou a São Gabriel quando as aulas na Universidade adotaram o formato remoto, durante a pandemia de covid-19. De volta à Campinas desde março de 2022, com o retorno das atividades presenciais nos campi, Daniela não se encontrou mais com seus pais e irmãos.
“Ele ensina os filhos a terem senso crítico, serem politizados, a não abaixarem a cabeça para ninguém e o principal: não se iludir, manter a postura firme sempre. Meu pai é um grande mestre e, como filhos, nós o admiramos nisso”, disse.
Conheci a família Barbosa quando fomos pela primeira vez ao município, em novembro de 2018, para a aplicação da edição de estreia do Vestibular Indígena. Daniela participou do documentário que produzimos sobre a experiência, mostrando seu dia-a-dia e falando sobre o desafio do vestibular. O vínculo se manteve e rendeu parcerias pessoais e acadêmicas, incluindo um convite e ida à Índia para debater a experiência do Vestibular Indígena. Mais recentemente, escrevemos juntas um capítulo sobre as principais lideranças indígenas mulheres no Brasil, para o livro “Still I Rise”, lançado em novembro de 2022, na cidade de Jamshedpur, Índia, e que será traduzido para algumas línguas indígenas do Brasil.
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A estudante acaba de se tornar mãe de uma menina. Estive com ela no dia do parto, em 13 de janeiro, no Caism/Unicamp, e parti para São Gabriel dois dias depois. Visitar a família de Dani foi uma das primeiras coisas que fiz ao chegar à cidade, até porque ela me havia incumbido de levar algumas sementes de pimenta de outras regiões para seu Bibiano. Além das fotos e vídeos da pequena Rydê Agnes, seus pais me perguntavam como estava Dani, seu companheiro e os demais estudantes que foram da cidade mais indígena do país para Campinas. A preocupação principal é com o bem estar emocional dos jovens.
Mesma preocupação expressada, alguns dias depois, no depoimento da coordenadora do departamento de Educação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Lorena Araújo, do povo tariano, sobre o assunto. A demanda foi, inclusive, apresentada formalmente por Lorena e outros representantes da FOIRN ao pró-reitor de graduação da Unicamp, Ivan Toro, na sede da Federação.
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Na ocasião, Toro disse que a Universidade tem feito uma discussão contínua sobre os mecanismos de inclusão e permanência estudantil e que a Unicamp deseja ampliar os sistemas de auxílio-transporte para alunos mais carentes, incluindo os estudantes indígenas.
No sítio, o passeio prosseguiu e, depois da roça, caminhamos em um trecho de mata fechada, depois uma breve navegação em canoa, para conhecer uma prainha no igarapé, com direito a parada para banho gelado e despedida de seu Bibiano.
Voltamos para Campinas com as demandas dos familiares, das organizações indígenas, dos candidatos e candidatas do vestibular. Trouxemos, também, as imagens dos rios, igarapés, matas, floresta, lembranças das muitas conversas com os moradores. À Dani, levei farinha, jacumã e um abraço do seu Bibiano e da família.