Saudades! Sempre discordei dessa mitologia que atribui essencialismo lusófono intraduzível à palavra “saudades”. Toda tradução, toda traição, toda transculturação serão sempre possíveis, basta o gesto da troca, do desejo de comunhão igualitária.
Francisco Foot Hardman
O chinês deitado
no campo. O campo é azul,
roxo também. O campo,
o mundo e todas as coisas
têm ar de um chinês
deitado e que dorme.
Como saber se está sonhando?
(Carlos Drummond de Andrade, “Campo, Chinês e Sono”)
Será que foi um sonho? Quanto tempo terá se passado? Aqui estão os bilhetes do trem veloz de longo curso para Yunnan, província no extremo-sul da China. Tenho também os do avião entre sua capital, Kunming, e a pequena pulsante cidade de Jinhong, 700 Km ao sul, sede da prefeitura autônoma de Xishuangbanna, centro da etnia Dai.
Isso parece que ficou bem longe no tempo. E, no entanto, os tickets dizem que se passaram só três meses. É Christina, a anfitriã do hostel à beira do rio Mekong, quem me desperta a memória, ao enviar, nesses dias, um vídeo de uma alegre batucada. Sim, um povo alegre à volta de uma mesa enorme canta, bebe, toca e batuca. Sua filhinha Yî (= a número 1) parece entrosada no sarau, a número 1 que tem dois anos. Sim, agora começo a lembrar. É o Festival da Água, da Água Espalhada, respingada, chapinhada, jorrada. Da água molhada. Celebrado desde o dia 13 de abril pelos Dai. Originário da Índia hinduísta, mas perfeitamente aclimatado pelos budistas no Sudeste asiático, lá em Yunnan tem seu lugar especial no calendário de um povo que é feliz na festa, que respira música nas batidas da natureza exuberante. Jinhong, sul do sul, está a poucos quilômetros das fronteiras de Mianmar e Laos. Isso corresponde a mais de 3 mil Km de Pequim.
E me vem a feira interminável à beira-rio, em que se encontra tudo – artesanatos, roupas, utensílios, comidas –, que me punha de repente no alarido de uma grande feira nordestina brasileira. Só que esta era chinesa sulista, com tantas cores e luzes e corpos brilhantes na noite interminável do Mekong mágico, literalmente Mãe-Água, aquele rio que em algum ponto entre Laos e Tailândia vê suas águas lançarem bolas flamejantes que espocam no ar. E em Jinhong, onde cruzava uma de suas enormes pontes espraiadas, via a balada de motos e triciclos que me reconduziam ao Vietnã, à renascida Ho Chi Minh, onde presenciei as mais belas baladas de motos noturnas, um balé sincopado de um povo que passa em paz e sereno depois de tantas guerras, lá perto do delta desse mesmo Mekong, hoje doente de tantos maus-tratos, que fazem fugir os peixes e acumular o lixo.
Mas, em Yunnan, comidas e bebidas se oferecem em profusão e variedade incomuns por toda essa extensa e diversa província. E isso também na capital, Kunming, e na belíssima Dali, a oeste, cravada num vale entre o grande lago Erhai e o sopé da cadeia de montanhas Cangshan, que seguem rumo ao Tibete. O budismo, ali, faz notar sua presença marcante. Como, por exemplo, no incomensurável Templo dos Três Pagodes. Bairros antigos circundam essa área, em núcleos dispersos na transição do urbano ao rural. Foi lá que viajei no triciclo de Tian Fêng, um az da condução, a desafiar o mais veloz dos ventos gélidos a bater na cara. E os tempos se justapunham na amplidão do espaço. E a estrada era de todos os que nela se aventuravam. E Dali suspendia qualquer presunção, Dali não era daqui.
E, naqueles dias ditosos, não havia vírus nem medo. Era um inverno frio, mas ensolarado. A ponto de ser possível trilhar a pé o parque geológico da Floresta de Pedras calcárias em Shilin, na região de Kunming. Fascinante, como tudo que nos lembra que a história do planeta é muito mais antiga que a de nossa arrogante espécie, e possivelmente sucederá logo mais, como floresta de desertos, à sanha suicida que o capitalismo global consagrou, a menos que um novo regime mundial saído das ruínas do coronavírus seja capaz de combinar civilização ecológica, solidariedade social ativa e multilateralismo cooperativo internacional, para além do rame-rame das corporações e do seu Deus ex machina, o mundo-mercadoria.
Xishuangbanna, nome comprido, afetos largos: na reserva ambiental de Sancha He, em quase tudo idêntica a uma floresta úmida amazônica, a não ser pelos seus visitantes ilustres, elefantes selvagens, que hoje escasseiam; no gigantesco parque botânico tropical, em Menglun, que nos confronta com essa sua estranhíssima familiaridade e sublime beleza, palco de muitos desenhistas e pintores. Minha China Tropical é toda essa paisagem em movimento amplo e lento, agitado e sereno, ruidoso e pacífico. Ficou lá atrás e lá embaixo. Mas mora aqui no coração sem palavra.
Saudades! Sempre discordei dessa mitologia que atribui essencialismo lusófono intraduzível à palavra “saudades”. Toda tradução, toda traição, toda transculturação serão sempre possíveis, basta o gesto da troca, do desejo de comunhão igualitária.
E como ela difere, minha China Tropical, daquela outra idealizada por Gilberto Freyre, que a pensava circunscrita ao Brasil miscigenado e luso-tropicalista, em mitos que alternavam a visão de classe de um patriarcalismo “cordial” à la Casa Grande, com uma raiz lusitana da pior espécie, inspirada no fascismo colonialista retardatário de Salazar. São, a rigor, “Chinas” contrapostas.
O grande pesquisador e ensaísta pernambucano escreveu a primeira versão de seu artigo, “Por que China tropical?”, em inglês, para uma revista acadêmica, em 1959. Publicado em português, pela primeira vez, em 1971, no hoje clássico volume de ensaios Nôvo Mundo nos trópicos, da insuperável coleção Brasiliana, teve uma reedição mais recente graças a um trabalho primoroso de organização de Edson Nery da Fonseca, que o reuniu a outros escritos “orientalistas” do autor, em 2011: China tropical. Admitindo afinidades culturais profundas, Freyre propugna ao Brasil assumir um destino que o reconcilie com o luso-tropicalismo, equidistante, ao mesmo tempo, do limitado liberalismo norte-americano, do já então decadente eurocentrismo, mas também do comunismo sino-soviético, incorporando, por sua vez, tudo que o Oriente nos legou, até imperceptivelmente.
Poderíamos, a meu ver, quem sabe, tentar caminho inverso, sem medo do campo aberto, da rota longínqua, da língua estranha, dos murmúrios que contêm mistério, mas também do sonho que nos convida a parar. Ou, nas palavras do poeta: “Ouve a terra, as nuvens. // O campo está dormindo e forma um chinês // de suave rosto inclinado // no vão do tempo.” (C. D. Andrade, “Campo, Chinês e Sono”, 1945).
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