Nem passaporte, nem cartão de professor visitante, agora meu cartão de emergência exibe meu nome e endereço, e no verso reitera bons conselhos: lavar as mãos; usar máscara; deixar a casa bem arejada; evitar multidões; e não se preocupar demais. “Não se preocupar demais”: com o vírus ou com a vida em geral?
Francisco Foot Hardman
Me barraram pela segunda vez na única portaria de acesso ao meu condomínio. As regras de entrada tornaram-se mais rígidas. Isso sem dúvida causa incômodo, mas é verdade que acaba sendo, entre outras medidas, fator eficaz de prevenção da epidemia em curso. Em megalópoles como Pequim, esse refluxo no ir e vir das multidões fez com que o número de pessoas contagiadas aqui na Capital não ultrapassasse, até agora, 400, com apenas 4 mortes confirmadas. Cifra modestíssima, considerando a população de 24 milhões. No distrito onde estou, Haidian, o número oficial de infectados é de 61. Haverá entre eles algum vizinho? Entre os poucos mortos, será que algum morava aqui do lado? Vagas apreensões, a rigor parecidas com as que temos sempre em qualquer cidade grande. Felizmente, o sol desponta, as aves retornam, a temperatura aumenta e a “sinistrose” sensacionalista desse Sr. Coronavírus vai perdendo sua força. Na falta de pautas bombásticas, acorrem repórteres da CNN e outros veículos para grandes navios de cruzeiro ancorados no Japão, em nova novela que rende audiência.
Mas nada como o bom Carnaval brasileiro para desmanchar qualquer pretexto a paranoias induzidas ou interessadas. Desfilam, sobretudo em blocos no Rio, fantasias de “Coroa Vírus”, tanto femininas quanto masculinas. Melhor a sátira, neste caso. Melhor rir do que chorar, especialmente porque, nos ataques que vêm de Brasília, o dito do momento é que “o hoje parece muito pior que ontem”. Ou, na palavra sagaz de Luis Fernando Veríssimo, em sua coluna no Estadão: estamos sob ameaça não do coronavírus, mas de uma doença muito mais trágica, incurável: o “apatifamento de uma nação”.
E, como sabemos, por mais que insistam em nos iludir alguns jornalistas, economistas e cientistas, nosso cotidiano não se faz de estatísticas. Eu, aqui, agora, por exemplo: para não ter que ir dormir no viaduto, o que significaria atalho ao cemitério, preciso entrar em casa e, para tal, regularizar minha condição de morador-visitante junto ao serviço comunitário, que se localiza a uma quadra, coisa de 50 metros de onde vivo, e a 200 da portaria onde fui barrado. Para que entendam: essa vila universitária, agora reduzida a único acesso – antes eram três e o trânsito de gentes, bicicletas e triciclos era bem mais animado, os carros é que, como sempre, destoavam –, tem uma área aproximada de 100.000 m2, formando um quadrilátero retangular de 4 X 4 ruas nos sentidos norte-sul e oeste-leste. Na frente da portaria que restou, um aviso luminoso recente conclama: “Sejam solidários. Mantenham confiança. Protejam-se cientificamente. Venceremos a epidemia”.
Quando duas funcionárias do serviço comunitário, sempre gentilíssimas, me concedem um cartão manual, personalizado, que será meu passe livre nesses dias de contenção, sinto pequena euforia. Nem passaporte, nem cartão de professor visitante, que ficam por ora obsoletos, agora meu cartão de emergência exibe meu nome e endereço e, no verso, reitera bons conselhos: lavar as mãos; usar máscara; deixar a casa bem arejada; evitar multidões; e não se preocupar demais. “Não se preocupar demais”: com o vírus ou com a vida em geral? – pergunto à minha colega Fan Xing. “O cartão não explicita”, ela responde, “mas acho que quer dizer para não se preocupar demais com o vírus”. Então, gabaritei, penso. Pois todos os avisos do cartão eu já pratico. E acho que razoavelmente bem.
Mas como não se preocupar com a vida dos que estão sofrendo muitíssimo mais do que todos nós? Penso na imensa massa de esfomeados e desempregados no meu querido Brasil. Nas vítimas da violência criminal e policial, cada vez mais perigosamente igualadas. Penso em Marielle Franco e nos mandantes de sua morte acobertados. Penso nas crianças mortas ou feridas, ou fugindo apavoradas da guerra na Síria, que se aproxima de completar uma década, sinal maior da impotência hipócrita das grandes potências.
Penso na nossa aluna de segundo ano aqui na Universidade de Pequim, Kátia Yang, de Wuhan, que saiu de lá com a família para a pequena cidade de Shiyan, a uns 400 km a noroeste, ainda na província de Hubei. Instada a fazer livre comentário sobre nossas crônicas anteriores, em seu curso de idioma português brasileiro ministrado pelas colegas Fan Xing (Estrela) e Társila Borges, de lá enviou o seguinte relato: “Professor Hardman retrata em detalhes a vida sua durante celebração fria e desanimada do Ano Novo Lunar, a vendinha da reabertura, passageiros de máscaras e a morte dum oftalmologista no outro lado do país. Como uma estudante universitária de Pequim, vivo sofrendo martírio com os pais numa pequena cidade na província de Hubei, o olho da tempestade de coronavírus. A vida parece mais difícil, em vários aspectos, que em outros lugares. Sob o regulamento da guerra que exige fechamentos de todos os estabelecimentos públicos e a proibição de transporte, não podemos sair de casa ou fazer compras no supermercado. Oferecem-se verduras e alimentos básicos de quantidade limitada que apenas garantem as necessidades de sobrevivência, mesmo assim, precisamos pegar em tempo curtinho, caso contrário, não resta nada. Doenças além da nova pneumonia da coroa e suas demandas de medicamentos são temporariamente negligenciadas. A condição geral está andando cada vez melhor, mas os problemas continuam. Como uma habitante de uma pequena cidade com tantos doentes e pouca atenção da mídia social, mal posso deixar de sentir as misérias”.
Como não se emocionar diante dessas sentidas preocupações, que nenhum cartão seria capaz de afastar? Como não se abismar diante dessa redação em português de uma jovem chinesa de 20 anos incompletos, nascida neste milênio, que está cursando apenas o seu segundo ano de graduação? Como não parabenizar as colegas Társila e Estrela, que acompanham essa brava turma desde o início?
Como não conclamar a comunidade da Unicamp, estudantes à frente, para receberem, de braços abertos, Kátia Yang e mais 5 colegas que devem desembarcar no Brasil, antes de agosto próximo, para um semestre de mobilidade discente conosco lá no IEL? Porque, a exemplo das belíssimas ações de acolhimento que hoje a comunidade universitária está aprendendo, com os alunos negros cotistas, com os alunos refugiados internacionais, com o vestibular indígena (saúdo aqui as iniciativas da rede de apoio Ñandutí!) será mais que recomendável estendê-las também a essas jovens amigas e amigos do Extremo-Oriente.
Porque, afinal, devemos buscar a solidariedade que nos une e nos salva, a mesma que pode e deve salvar nossa Casa Comum, a Terra, quando todos os sinais de alarme piscam e soam, graves e agudos, a Era da Emergência Ambiental. Humanos seremos não só na luta comum pela igualdade e pela diversidade, mas também para impedir, se tempo houver, que os exterminadores da vida em suas múltiplas formas continuem a ditar os destinos do mundo.
Este cartão por ora me basta e me acalma. E a certeza de que não estamos sós, também.
Veja as matérias:
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