O poder do saber: dizer assim, aqui, é quase tautológico, numa civilização que, continuamente, em cerca de cinco milênios, sempre soube, desde as obras matriciais de Laozi, Confúcio e Mêncio, valorizar a busca incessante do conhecimento como base de humanização, mesmo e sobretudo quando diante dos abismos da ignorância e de sua irmã gêmea, violência.
Nesses dias de semiconfinamento, todos os meus caminhos levam à pequena cantina universitária que permanece bravamente aberta nessa temporada toda. Fica numa das extremidades da vila a que estou circunscrito, a uns 400 metros de casa. Com a baixíssima frequência dessas semanas difíceis, fui ficando freguês conhecido da turma de cozinheiros, copeiros e, agora, dos indefectíveis guardas que monitoram temperatura e cartões dos moradores (sobretudo famílias de antigos funcionários e professores da Universidade de Pequim). E, senhora absoluta do movimento e das cadências, a mulher que cuida da recolha de pratos e bandejas usadas, e que agora também tem as chaves da entrada. Já somos, posso dizer, quase amigos.
Na escolha dos pratos, me auxiliam na preferência vegetariana. Vou me apegando ainda mais a esses temperos e misturas ótimas, o ensopado de berinjelas com batatas, o quase obrigatório mexido de tomates e ovos, num molho levemente adocicado, o brócolis, o espinafre, o broto de feijão sempre no melhor ponto, e agora não preciso sequer ordenar: mîfàn (arroz branco). A turma já o retira do caldeirão imenso, e o põe ao fim do prato composto, em seu lugar certo, neutro, um centro para onde podem convergir todos os outros condimentos e comidas, e é assim que me protejo, porque, aqui, sabe-se, “não tem mosquito”, e a batalha de todo o país contra a epidemia, nesta área de Pequim, parece por ora amplamente vitoriosa. A mulher que serve bebidas, sopas, batata-doce laranja (ótima!) e diferentes tipos de pães a vapor e empadas (mántou, bâozi, xiànrbîng), diverte-se muito com meus pedidos, sempre quer me entrouxar algo a mais, embora eu tente maneirar.
E aqui volto sabendo que não me faltará o pão de cada dia. Assim, também, a fonte de água potável, em máquina automática, a apenas 50 metros de casa, um dos meus rituais preferidos, meu cartão mais precioso, 6,5 litros de boa água a cerca de 80 centavos de real. Num país, ao contrário do Brasil, em que as águas não são excessivas, essa generosa disponibilidade é digna de nota. Em todos os hotéis, aqui, o viajante encontrará, diariamente, duas garrafas de água mineral gratuitas em seu dormitório. Há já bom tempo longe, nem imagino a quantas andou a extorsão no preço de copinhos e garrafas de água no Carnaval brasileiro.
Mas, aqui, se tenho água e comida fáceis, podemos recomeçar as aulas, agora tudo à distância, a classe conectada em uma dúzia de cidades e províncias diversas, algumas bem remotas. Vocês acreditam em coincidência? Eu prefiro convergência de espaços-tempos, para não recorrer a uma palavra mais técnica e rara, tautocronismo. Fiquemos, quem sabe, com sincronia. E, diante das barbáries crescentes que assolam nosso querido Brasil, vindas sempre de cima para baixo, vamos recomeçar de baixo para cima, com dois pensadores que Pernambuco e o século XX legaram ao mundo e que nenhuma barbárie foi ou será capaz de solapar: Josué de Castro e sua obra-prima Geografia da Fome (1946), que tratou do problema mais simples e mais essencial naquele cenário em ruínas e que, lamentavelmente, continua a escancarar sua atualidade; Paulo Freire e sua joia rara Pedagogia do Oprimido (1968), um dos livros mais citados mundialmente na área de humanas, do saudoso Professor Emérito da Unicamp, a justo título Prêmio Educação para a Paz da UNESCO e Patrono da Educação Brasileira, que nenhum mequetrefe metido a ministro da Deseducação, seria capaz, jamais, de destronar.
O poder do saber: dizer assim, aqui, é quase tautológico, numa civilização que, continuamente, em cerca de cinco milênios, sempre soube, desde as obras matriciais de Laozi, Confúcio e Mêncio, valorizar a busca incessante do conhecimento como base de humanização, mesmo e sobretudo quando diante dos abismos da ignorância e de sua irmã gêmea, violência. Conhecimento que é arte-ciência a caminho, e que pressupõe a amizade e ação dialógica. Tudo em busca de um verdadeiro sentido de vida comum, que tem como pressuposto, e meta, a harmonia com a natureza e entre os humanos. Por isso, falei em sincronia, quando, em plena semana dedicada a esse binômio tão banal e esquecido (educação-amor), despontou a Escola de Samba Águia de Ouro, lá do bairro da Pompeia, de doces recordações da minha infância, como a campeã do carnaval paulistano, com homenagem a Paulo Freire numa letra que afirma, no alto acorde de sua bateria: “meu coração é comunidade / faz o sonho acontecer”. A cultura popular brasileira, o que temos de melhor nesses dias de ameaças golpistas, comparece com tudo e vem até Pequim iluminar nosso ensino à distância. Sincronia harmônica digna de grandes mestres inspiradores: kairós, aquele evento que vem no “momento certo”. Kairós, que toda resistência prolongada de povos sempre ensinou. Aqui, também, muito a comungar entre nossas canções, ritmos, espaços. E entre nossas lutas, claro.
Mas a China igual se fez mostrar, neste ano, no Sambódromo paulistano. Refiro-me à homenagem que lhe prestou a Escola de Samba Unidos de Vila Maria, num enredo algo premonitório, feito ainda no meio do ano passado, muito antes da crise epidêmica bater aqui. E que diz: “Vila, um caso de amor na avenida / O mundo hoje te reverencia / Oh, China! Oh, China! / Um caso de amor na avenida”. Sinestesia, sincretismo, simbiose, sincronia? Mágico poder esse de diálogo inter ou transcultural: China na Avenida graças à escolha inspirada da Vila Maria, um dos bairros populares mais tradicionais de São Paulo.
Idas e vindas, vindas e idas: não posso atrasar meu horário na cantina! Depois de dias mais rigorosos, em que ela se vestia como astronauta, e estava tão ciosa de seu uniforme tirando selfies, a copeira da recolha, numa tarde mais fria, olhava triste pela janela, e cantarolava uma música. Deu logo para perceber: música antiga e triste. Sem se importar comigo, nem com o colega guarda em seu já merecido lugar à mesa, almoçando. Horas mortas, como dizem os cineastas, onde talvez se vislumbrem as mais belas cenas. E, daqui, também, a brecha de uma amizade comunitária internacionalista. Perco a vergonha, e peço a meus camaradas guardas e à copeira cantante, por mim diretora da cantina, para fotografá-los.
É só um instantâneo. Eles ficaram alegres com meu pedido. Eles não sabem, como meus alunos já sabem, da Águia de Ouro e da Unidos de Vila Maria. Mas entenderam perfeitamente quando disse: Wô shì Bâxî rén (sou brasileiro); Wô shì Beida lâoshî (sou professor na Universidade de Pequim).
Eles também não sabem, mas isso pouco importa, que nesses dias duros de Pequim aprendi a admirá-los como meus heróis anônimos, como meus guardiães.
Veja as matérias:
A última crônica: de estudantes da Universidade de Pequim para indígenas do Alto Solimões
O Homo Pekinensis e O Mundo: nas voltas que o tempo dá
Duas lágrimas na ponte de dandong
Se essa rua, se essa lua, se essa luta: comunhão da cidade renascida
Somos ondas do mesmo mar e um povo lindo surge das ladeiras
Por uma outra globalização: krenak e milton santos pedem passagem
Go China! (nem precisa avisar)
Cidade: quantos tempos e lugares?
O cartão e outras preocupações