O Jornal da Unicamp passa a publicar o Diário em Pequim, assinado por Francisco Foot Hardman, professor titular do Departamento de Teoria Literária do IEL, que está vivendo na China, como professor-visitante na Escola de Línguas Estrangeiras da Universidade de Pequim. O autor narrará suas impressões acerca da vida no país após a eclosão do surto de coronavírus originado em Wuhan.
Francisco Foot Hardman
Nesses dias de quase nenhuma circulação em Pequim, resultado da grande saída de gente que precede o Ano Novo Lunar, a maior celebração do povo chinês (cuja data, como nosso Carnaval, oscila a cada calendário, e que neste inverno caiu em 25 de janeiro), na vila em que vivo, no distrito de Haidian, noroeste da grande metrópole, há uma vendinha a menos de 200 metros de casa, que nos é sempre, moradores dessas quatro ruas e cerca de três dúzias de pequenos edifícios de até cinco andares, mais providencial do que qualquer supermercado. Lá, num espaço diminuto de dois cômodos, encontra-se tudo, quase tudo, e isso até altíssimas horas da noite.
Entre tantos estabelecimentos públicos fechados, não só pelos feriados de uma semana, mas principalmente pelas medidas de segurança sanitária em face da epidemia viral, a mim, e sei que a muitos vizinhos, causou particular desalento ver a vendinha da vila fechada. Um aviso, com felicitações e enfeites do ano novo, dizia que reabririam no dia 1. Mas os cuidados redobrados com a prevenção de um maior alastramento do surto em Pequim, cidade de 24 milhões de habitantes, levaram o serviço comunitário da vila a prorrogar o fechamento de nossa vendinha até dia 4. Novo desalento, nova espera.
A passagem de ano novo, comemorada na cidade natal de cada habitante, com seus pais e, também, obrigatoriamente, enquanto viverem, com os avós de ambos os lados, nas respectivas cidades ou aldeias, implica muitos deslocamentos populacionais que fazem desta a maior migração em tempos de paz e por um só evento no planeta. As restrições de viagens que se impuseram forçosamente, por conta dessa muito infeliz coincidência de movimentos (de gentes para a maior festa do país e de coronavírus em expansão) acarretaram, assim, uma das maiores frustrações para a grandíssima maioria da população chinesa.
Isso, claro, para além da tragédia da morte que já é de muitas centenas de pessoas – entre elas a do médico oftalmologista dr. Li Wenliang, em Wuhan, na madrugada desta quinta-feira, horário chinês, e tarde da quarta-feira no Brasil, verdadeiro herói, aqui, entre tantos outros heróis e heroínas anônimos, sacrificado aos 34 anos, que alertara, desde o final de dezembro, para a eclosão dessa nova grave doença, tendo sido negligenciado e silenciado por autoridades locais. E, também, para além do sofrimento particular de mais de 50 milhões de habitantes que estão encerrados em um cordão sanitário na região de Wuhan (a importante capital da província de Hubei, 1.150 Km ao sul de Pequim) e de cerca de uma dezena de cidades no seu entorno. Cifra superior à população do estado de São Paulo e equivalente apenas a 3,5% da população de toda a China.
Mas a vida segue e os chineses se recolhem e se cuidam, e como! Somos um país de mascarados, neste instante, sem nenhum apego à estética ou às ideias pueris e ações deletérias dos blackblocs, muito pelo contrário. Check-ins de temperatura corporal se instalaram em todas as entradas de edifícios, condomínios, cantinas, campus universitário, metrô, etc. Museus, parques e lugares de grande atração pública permanecem fechados.
A ansiedade, nessas circunstâncias, aumenta para todo mundo e não poderia ser diferente. Por isso, corri à vendinha no dia anunciado de reabertura. Pequena grande felicidade. Lá estava, mais serenamente triste do que nunca, a vendeira, com seu olhar de beleza melancólica e sua tranquila feição, agora com a máscara negra que dizem ser a mais eficaz das que hoje ainda se encontram disponíveis. Neste dia, o sol ainda se fez presente numa réstia da porta. Já somos cúmplices nesse inverno turbulento. Compro itens mais do que meu habitual, a conta passa de 110 yuan, algo como 66 reais, estou feliz de ter a vendinha de volta. E de rever, ali, sua dona, impassível. Ela sempre me ajuda com a embalagem dos víveres e, desde minha primeira visita, sinalizou que eu não precisava lhe mostrar o valor debitado no meu celular. Confiança enorme, cortesia sem par.
Hesito em lhe pedir para fazermos um selfie. Não peço, não faço. A mulher da vendinha adora as novelas que se sucedem dia e noite na TV chinesa. Como tantos milhões desse povo que se nos assemelha tanto. Em seu mini-aparelho, está sempre ligada a alguma série de amor melodramático. Sim, o melodrama aqui também tem lugar. Agora, terá que fechar mais cedo, por conta das prescrições, antes das 18 horas e não poderá seguir até mais de 11 da noite, como era antes da crise.
Invento sempre alguma falta de item para voltar à vendinha. E assim foi no dia seguinte. O sol tinha ido embora. Nevou bastante nesses dois dias, como nunca antes neste inverno. Clima muito seco, em Pequim é raro que neve. Só cinco dias nesses quase dois meses. Por isso, dessa vez, ela parece um pouco mais triste. Se antes o sol ou a lua encarregavam-se de mostrar a beleza de seus olhos, agora é o brilho da neve que se insinua na fresta da porta e de sua máscara. Que linda! Somos cúmplices. Para além dos estoques nas prateleiras e dos yuan que tilintam virtuais. Já podemos sorrir entre olhos e acenos, sempre delicados.
E sobram histórias de amor que ela não cansa de ver, de lembrar e, quem sabe, na calada do vento de Pequim, que fere as faces como faca, de sonhar viver.
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