O uso de plantas medicinais é frequente em muitas comunidades onde a população as utiliza de forma empírica para combater os sintomas de doenças, na forma de chás e infusões. O chá dos frutos da espécie Pterodon pubescens Benth, conhecida popularmente como sucupira, é tido como analgésico e anti-inflamatório natural. Mas também é muito comum encontrar produtos, que alegam conter sucupira, sendo oferecidos no mercado. E a população exposta ao apelo de produtos milagrosos e naturais não conhecem realmente os riscos.
A sucupira é estudada desde 1998 pelo grupo de Mary Ann Foglio, atualmente professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, que desenvolveu o trabalho nas dependências do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA). A união do conhecimento popular com a investigação experimental de drogas, a partir da observação do uso de plantas medicinais pelos povos, é denominada etnofarmacologia.
Diante do grande número de pessoas relatando melhoras clínicas após a ingestão da infusão dos frutos da sucupira, e diante da escassez de dados consistentes sobre a segurança de sua utilização, a farmacêutica Vanessa Helena da Silva Souza desenvolveu tese de doutorado avaliando a toxicidade não clínica do extrato bruto diclorometânico (EBD), bem como de compostos isolados do extrato, a fim de verificar os riscos deste uso terapêutico.
Os estudos toxicológicos foram realizados de acordo com a legislação vigente, tendo como base o guia de orientação de condução de estudos, proposto pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), que estabelece as normas para o desenvolvimento de um medicamento fitoterápico e/ou fitofármaco. “A Anvisa preconiza os testes com animais porque a resposta que oferecem permite uma projeção de segurança no uso humano. Chamamos de análise preliminar, não clínica, com todos os testes atendendo a normas nacionais e internacionais, bem como a aspectos éticos de boas práticas de experimentação animal”, diz a farmacêutica.
As amostras dos extratos e compostos isolados foram testadas em protocolos de toxicidade aguda oral e de doses repetidas in vivo, e ainda de genotoxicidade e mutagenicidade in vitro. A tese intitulada “Avaliação da toxicidade não clínica de extrato e vouacapanos obtidos dos frutos da espécie Pterodon pubescens Benth” foi defendida no programa de pós-graduação da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP).
A professora Mary Ann Foglio, que orientou o trabalho, afirma que uma das preocupações do seu grupo de pesquisa é desmistificar a crença de que o “natural não faz mal” e, portanto, que plantas medicinais ou produtos fitoterápicos estariam isentos de riscos à saúde. “Isso faz parte da bagagem cultural da nossa população. Porém, o potencial tóxico, a diversidade de respostas fisiológicas para cada indivíduo e a possibilidade de contaminação com o desvio de qualidade de produtos, constituem fatores de risco de reações adversas, intoxicações e outras complicações decorrentes do uso indiscriminado e da falta de informações.”
Para a professora, esta preocupação se acentua quando se constata que as mais variadas espécies de plantas, consideradas medicinais, são comercializadas livremente em mercados populares ou pela internet, com apelos de cura para quase todos os males. Existe um vasto uso de extratos de sucupira para aliviar as dores de artrite e comprimidos anunciados como dela oriundos são facilmente encontrados no mercado informal. Porém, a análise em laboratório demonstrou que vários destes produtos, na realidade, continham o princípio ativo de medicamentos como Voltaren® e Cataflam®, que é o diclofenaco utilizado no tratamento de processos inflamatórios.”
Vanessa Helena alerta que a artrite, por exemplo, é uma doença crônica, o que induziria as pessoas a fazerem uso contínuo do suposto comprimido de sucupira. “O diclofenado deve ser tomado com acompanhamento de um profissional da saúde capacitado, e geralmente por um período de sete dias, considerando que o uso prolongado pode comprometer as funções renais do indivíduo. Neste trabalho foram avaliados os riscos do uso contínuo de diferentes dosagens dos extratos e componentes extraídos da sucupira em camundongos e ratos. Esses dados científicos são importantes, pois muitos analgésicos, como o paracetamol, são altamente hepatotóxicos. Ainda assim, o paracetamol está isento de prescrição médica, sendo muito utilizado na pediatria.”
Segundo a orientadora da tese, a enorme biodiversidade vegetal é capaz de fornecer insumos para gerar fitoterápicos, fitofármacos e protótipos de novas drogas com importância econômica. Ela cita dados dos autores Newman & Cragg, do Instituto Nacional de Câncer dos Estados Unidos, referentes a 2016, estimando que aproximadamente 63% de fármacos utilizados para o tratamento de câncer eram derivados diretamente ou indiretamente de produtos naturais. “Mas é importante salientar que a planta produz substâncias para as suas necessidades. Portanto, é preciso cuidado quando queremos tirar proveito dela.”
Medicamento
A tese de Vanessa Helena gerou dados que possibilitam estabelecer as doses corretas em futuros estudos clínicos visando ao desenvolvimento e registro de um medicamento fitoterápico originado da sucupira. Mary Ann Foglio considera que o projeto alcançou a fase de avaliação de riscos no uso dos frutos, viabilizando uma solicitação para testes em humanos e alimentando ótimas perspectivas para a produção de um medicamento. “Os dados e métodos consistentes obtidos pelo grupo dão suporte à intensificação dos estudos pré-clínicos para viabilizar um medicamento fitoterápico (ou alopático) produzido com extratos e frações enriquecidas por compostos ativos da espécie Pterodon pubescens.”
A professora explica que o estudo de determinada planta é um processo longo e com várias etapas. Neste projeto da sucupira, ao longo dos anos, a equipe de pesquisadores caracterizou os compostos dos frutos e comprovou sua funcionalidade como analgésico e anti-inflamatório, e também analisou os efeitos da “garrafada”. “A Pterodon pubescens possui é constituída principalmente de vouacapanos e compostos atípicos. Verificamos que no chá se extrai apenas um tipo de composto, os vouacapanos, que estão envolvidos com o alívio da dor, mas apresentam uma potência bem inferior.”
Conforme a orientadora da tese, com o extrato, que reúne os dois grupos de compostos, a potência aumenta e, consequentemente, a quantidade necessária de frutos é bem menor. “Trata-se de um efeito sinérgico bem interessante, já que expomos o indivíduo a uma concentração bem menor da substância. A palavra sinergia é derivada da palavra grega synergo´z, que significa ‘trabalhando juntos’. A busca de sinergia no campo da farmacologia refere-se à elucidação e quantificação da ação de medicamentos administrados em combinação. A literatura científica vem demonstrando com frequência que a ação farmacológica do princípio ativo isolado difere da ação dos extratos brutos e fitoterápicos. Acredita-se que essas vantagens terapêuticas encontradas em medicamentos fitoterápicos decorrem de interações sinérgicas que potencializam os seus efeitos farmacológicos.”
Na opinião de Mary Ann Foglio, os resultados alcançados por seu grupo trazem impactos significativos sob diferentes aspectos, contribuindo com a literatura por meio de publicação dos resultados, depósito de patentes e desenvolvimento de produto fitoterápico oriundo de fontes ecologicamente sustentáveis. “Os frutos são produtos renováveis que permitirão uma produção contínua dos insumos, formação de recursos humanos, obtenção de fármacos para dores crônicas e geração de emprego nos setores agrícola e farmacêutico.”