Estudo etnográfico revela ações de comunidades amazônicas que vivem da extração da castanha do Pará
Uma etnografia das práticas sociais e conhecimentos sobre os mundos dos animais e vegetais entre os habitantes das comunidades quilombolas do rio Trombetas, em Oriximiná (PA), transmitidos através das gerações, desde que os antepassados chegaram fugidos da escravidão à região. É o que traz a tese de doutorado do antropólogo Igor Alexandre Badolato Scaramuzzi, cujo foco está na descrição etnográfica do extrativismo da castanha do Pará, também chamada de castanha do Brasil ou castanha da Amazônia (Bertholletia excelsa), uma atividade de importância fundamental para a formação e sobrevivência das comunidades desde sua origem até os dias de hoje. O autor teve a orientação da professora Nádia Farage, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). A pesquisa foi financiada pela Fapesp.
“Realizei praticamente toda a minha pesquisa de campo acompanhando a coleta da castanha e percebi que as florestas de castanhal, locais de moradia das castanheiras, são uma porta de entrada muito interessante para estudar a relação que os quilombolas mantêm com a ‘natureza’, já que moram nesses lugares boa parte do ano e convivem com grande diversidade de espécies animais e vegetais”, conta Igor Scaramuzzi. “É um conhecimento formado no trabalho cotidiano, e por gerações. Bons castanheiros têm muita intimidade com os castanhais e um saber detalhado das árvores em que coletam castanha – tanto que, individualmente, elas recebem nomes ou apelidos que fazem menção a experiências pessoais, histórias dos lugares e das famílias ou às suas próprias qualidades produtivas. O bom castanheiro faz uma coleta seletiva, não vai até uma árvore qualquer, pois conhece os atributos produtivos de várias delas.”
Segundo o antropólogo, a população quilombola da bacia do rio Trombetas é constituída por descendentes de escravos que fugiram das propriedades que exploravam o cacau e a pecuária nas regiões de Óbidos, Santarém, Alenquer e Belém. “Quando eles chegaram aos trechos encachoeirados dos rios Trombetas, Erepecuru e Cuminá, e constituíram os antigos quilombos, o extrativismo da castanha e de outros produtos florestais foi decisivo para que obtivessem aquilo que não podiam produzir e, posteriormente, para que deixassem de ser perseguidos pelos agentes estatais. Através do comércio destes produtos, esta população se integrou de modo significativo à economia regional. A crescente importância dos quilombolas no contexto econômico da região na segunda metade do século XIX, que coincide com a alta dos produtos florestais nos mercados internacionais, teve como consequência o fim das medidas repressivas, em especial das expedições punitivas.”
Scaramuzzi resgatou o histórico deste extrativismo, demarcando um período inicial que vai da primeira metade até o final do século XIX, em que os quilombolas vendiam a castanha e outros produtos florestais para regatões e comerciantes dos núcleos urbanos de Oriximiná e Óbidos. O segundo período, que os quilombolas chamam de “tempo dos patrões”, vai do começo à década de 70 do século XX. “Segmentos abastados da região compraram neste tempo as áreas de castanhais das terras dos quilombolas, que o governo considerava como Terras Devolutas, e implantaram as chamadas ‘colocações’ – espaços de castanhal delimitados pelos patrões onde as famílias quilombolas coletavam castanha em troca de bens de consumo, de acordo com o clássico sistema de aviamento amazônico”.
O terceiro período, conforme o autor da tese, envolve o final da década de 1970 e as décadas de 80 e 90, quando o acesso a parte dos castanhais das terras quilombolas foi proibido devido à implantação da Reserva Biológica do rio Trombetas (Rebio Trombetas), unidade de conservação de proteção integral. “Nesta margem esquerda do rio estão os maiores castanhais da região e havia um conflito muito grande, já que os quilombolas continuaram coletando a castanha clandestinamente. A reserva foi criada ainda na época da ditadura militar para proteger a tartaruga da Amazônia, ameaçada de extinção. Parte dos moradores foi expulsa de suas terras e há relatos de torturas e assassinatos.”
Igor Scaramuzzi afirma que nas primeiras décadas do século XXI, a Rebio Trombelas reabriu as áreas de castanhais aos quilombolas no período de safra, mas sob regulamentação, firmada em termo de compromisso, e fiscalização, o que traz tensão e conflito. “Os quilombolas precisam trabalhar com a ‘papeleta’ (contendo dados pessoais, número de caixas coletadas, número de compradores, etc.); na área da reserva estão proibidas a caça, atividade que faz parte do modo de vida quilombola, e o porte de arma de fogo, enquanto a pesca é limitada a espécies mais abundantes e de pequeno porte.”
De acordo com o antropólogo, a tensão é agravada pela presença, na outra margem do Trombetas, de uma floresta nacional (Flona Saraquá-Taquera) sob gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que abriga a maior mina de bauxita do Brasil, cuja extração se dá de forma industrial. “A Mineração Rio do Norte/MRN, terceira maior produtora de bauxita do mundo e primeira no país, quer expandir a exploração para uma imensa área das terras das comunidades quilombolas, derrubando florestas de copaibeira, árvore da qual se extrai óleo medicinal, uma atividade tão importante para algumas comunidades quanto o extrativismo da castanha. É uma situação paradoxal para o ICMBio, que fiscaliza de forma severa as atividades de baixo impacto dos quilombolas, mas abriga a mineradora. Existe ainda a possibilidade de construção de uma hidroelétrica no Trombetas.”
A cutia e as castanheiras
O autor considera que o mais interessante de sua tese de doutorado está nas teorias dos quilombolas sobre a formação e reprodução dos castanhais. “Há duas hipóteses sobre a formação e regeneração dos castanhais muito discutidas na botânica. A primeira é de que os castanhais são florestas antropogênicas – formadas pelo manejo humano do ambiente, desde a época pré-colonial, especialmente aquele relacionado à prática da agricultura. Os índios recorriam e recorrem a um sistema agrícola preponderante na Amazônia, que é chamado de corte e queima ou coivara. Este sistema consiste na derrubada de pedaços de floresta e no uso do fogo para a constituição de roçados em um regime rotativo. Segundo esta teoria, a castanheira, sendo uma espécie que tem seu desenvolvimento inicial favorecido conforme maior a quantidade de luz solar (heliófila, nos termos da botânica), teria se beneficiado, durante milhares de anos, das clareiras e da maior fertilidade do solo ocasionada pelo corte e queima de biomassa, e se desenvolvido em aglomerados nas áreas manejadas pelos humanos.”
Ressalvando que as duas hipóteses não são necessariamente excludentes, Scaramuzzi comenta sobre a segunda, também admitida pelos botânicos e que atribui a formação dos castanhais à cutia, roedor de pequeno porte. “É o único animal da natureza capaz de romper o ouriço, o fruto lenhoso da castanha, e que tem o hábito de armazenar alimentos– muitas vezes a cutia morre ou muda de área, deixando as castanhas enterradas. Outra característica é que ela possui um círculo territorial bastante restrito, daí o fato de as castanheiras crescerem aglomeradas.”
A contribuição oferecida por esta tese de doutorado é a teoria dos próprios quilombolas, que detêm um conhecimento aprimorado da atividade e um olhar apurado sobre a floresta. “Eu descobri que, para eles, a formação dos castanhais tem relação com vários sujeitos: a cutia, o humano, as abelhas e a vegetação sub-bosque (que fica entre o chão e o teto da floresta). Para os quilombolas, é a cutia que planta a castanheira, ‘o castanhal é sua roça’. A abelha, que os extrativistas chamam de aramã, bebe a água das flores e, com sua saliva, guarda a umidade delas, fazendo com que se tornem frutos. A vegetação sub-bosque possibilita que as abelhas alcancem a copa das castanheiras com seus sessenta metros de altura.”
Quanto à participação dos humanos, os quilombolas defendem – baseados na observação e convivência de longa duração com as árvores – que as castanheiras necessitam do “cheiro” e do “calor dos pés e dos corpos humanos” para se animarem a produzir frutos. “Eles argumentam, de acordo com tese já defendida por alguns botânicos contemporâneos, que aquelas árvores têm consciência e inteligência no âmbito individual e coletivo: sem a presença do homem, elas sabem que boa parte dos seus frutos, seus filhos, vai apodrecer na floresta, pois a cutia não dará conta de enterrar a todos. Por isso, param de produzir quando não há a presença humana nos castanhais.”
Cadeia de seres vivos
O autor incluiu no estudo um capítulo detalhando as etapas da coleta da castanha: a observação das copas das castanheiras, a coleta dos ouriços na floresta, a quebra dos ouriços e retirada das castanhas, o “vasculho” como último esforço de coleta realizado no final da safra, o transporte da castanha já sem os ouriços, e a comercialização. “No início da safra existe o ‘espiar’, uma observação minuciosa das copas para identificar quais possuem frutos maduros e, especialmente, quais estão carregadas de ‘bamburradas’ de ouriços. A partir do ‘espiar’ são planejados a coleta e os percursos a serem realizados.”
Igor Scaramuzzi também realça aspectos do conhecimento dos extrativistas quilombolas na coleta da castanha, como de não cortar a vegetação para criar trilhas, guiando-se na floresta por contrastes paisagísticos (morros, enseadas, várzeas, igapós); respeitar os resguardos em domingos e feriados religiosos; e evitar a ‘ganância’, sem tirar da floresta mais do que se deve. “A ganância é sempre passível de punições, como um encontro assustador com os seres sobrenaturais que zelam pela floresta e pelos animais. Em minha opinião, a lição dos quilombolas está em ver a biodiversidade de forma não antropocêntrica: não se acham e nem querem ser os protagonistas em uma atividade e na relação com um ente especifico, a castanheira, à qual dão tanta importância; consideram que os diferentes sujeitos atuantes na formação dos castanhais, incluindo eles mesmos, possuem um grau de importância equivalente nessa rede de relações. A castanheira e os castanhais se desenvolvem de acordo com uma cadeia de seres vivos em que não há hierarquia entre eles, o homem é só mais um.”
Outro lado
Em nota, a Mineração Rio do Norte (MRN) esclarece “que não realiza lavra de bauxita em áreas quilombolas tituladas. Todas as áreas lavradas pela MRN são reflorestadas com mudas de espécies nativas da região amazônica produzidas no Viveiro Florestal da MRN. De 1979 a 2016, a MRN reflorestou 5.930 hectares onde foram plantados mais de 12 milhões de mudas de 450 espécies arbóreas nativas. A MRN mantém um programa de manejo sustentável de copaibeiras que associa a conservação da espécie à geração de renda para comunidades localizadas na área da atuação da empresa. A MRN também mantém o único banco de germoplasma do Brasil voltado exclusivamente para conservação da castanheira-do-pará e que produz conhecimento essencial para a conservação desta espécie”.