Religioso transformou igrejas e coordenou grupo de artistas, entre os quais Benedito Calixto
Dom Duarte Leopoldo e Silva (1867-1938), o primeiro arcebispo da cidade de São Paulo, foi um mecenas da arte religiosa que transformou os templos católicos da capital paulista no começo do século passado. A maneira como planejou a demolição de igrejas e a construção de outras, com a preservação das obras de arte, e principalmente como trabalhou com um grupo de artistas, entre eles Benedito Calixto (1853-1927), foi tema de um estudo de doutorado desenvolvido no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob orientação da professora Claudia Valladão de Mattos Avolese.
A pesquisadora Karin Philippov investigou especialmente a Paróquia Santa Cecília, que foi a primeira encomenda de dom Duarte para Calixto. O artista iniciaria ali o trabalho com a arte religiosa, que compreende as pinturas nas paredes ou a decoração da igreja, sem incluir os objetos voltados para o culto (arte sacra).
“O objetivo da pesquisa foi dar início a uma série de estudos sobre a arte religiosa do início do século 20 em São Paulo, uma vez que Benedito Calixto realizou diversas encomendas de arte religiosa a pedido de dom Duarte Leopoldo e Silva. Existiu um mecenato artístico profundo na capital, mas que foi ocultado pela historiografia da arte”, ressalta a pesquisadora.
Localizada no centro de São Paulo, a igreja é considerada um museu. Abriga o maior conjunto de obras religiosas de Benedito Calixto e também trabalhos de outros artistas como Oscar Pereira da Silva, Carlo De Servi, Conrado Sorgenicht e Gino Catani. Todos foram gerenciados por Calixto, então contratado pelo arcebispo.
Mártir cristã
O artista realizou, segundo Karin, uma profunda pesquisa histórica e arqueológica em torno da vida de Santa Cecília, que é apresentada ali não como padroeira da música, mas como mártir cristã. Em uma das obras, Calixto transfere para a pintura a óleo o modelo da escultura da santa feita por Stefano Maderno, que está em Roma. Seria uma maneira de “driblar” o fato de a igreja paulistana não possuir nenhuma relíquia da mártir.
Também são do artista as pinturas dos doze primeiros papas martirizados e dos doze primeiros bispos de São Paulo, além de dois painéis representando episódios da vida do escravizador de índios, depois jesuíta, Pedro Correa, e mais oito painéis instalados na nave, mostrando santos martirizados.
Karin enfatiza que o trabalho de Calixto, e dos outros artistas, foi realizado de maneira “orquestrada” por dom Duarte. Tudo está interligado e tem um sentido. “Observando a linguagem dessa produção atrelada aos vitrais, a gente chega à conclusão de que há uma linguagem comum, um decoro que unifica a temática escolhida e instaura a nova imagem religiosa na São Paulo da Primeira República”.
A pesquisadora se refere, por exemplo, às pinturas da conversão e martírio de Pedro Correa que, a certa altura do dia, recebem determinada iluminação dos vitrais. “A luz incide no momento em que Pedro Correia é tornado Santo, quando abandona a atividade escravizadora para se tornar jesuíta e protetor dos índios”. Karin afirma que o feixe de luz não incide ali por acaso, mas foi uma ideia do arcebispo juntamente com o artista.
As representações de Santa Cecília vão se modificando de outra maneira. Nas primeiras cenas ela aparece sempre de forma delicada, uma menina, símbolo de pureza. Já próximo do altar adquire a posição de uma escultura. “Ela se torna uma fortaleza porque está sendo julgada e se recusa a abandonar o cristianismo”.
A nova imagem da religião católica foi pensada a partir do Concilio Vaticano I com os preceitos da corrente Romanizadora, que pregava novos cultos com a substituição de santos populares não reconhecidos por santos do Cristianismo primitivo, além da defesa do fim da estética do barroco que predominava nos templos católicos.
No Brasil, a Igreja estava perdendo fieis uma vez que a Constituição de 1891 tornava o estado laico e a imigração trazia para o país uma diversidade de religiões, além até mesmo do ateísmo.
“Dom Duarte atua como um grande arquiteto revolucionário da cidade de São Paulo, que nesse momento também vive uma transformação com a substituição da velha cidade de taipa pela cidade de tijolos, europeia e afrancesada, com elementos da arquitetura eclética”, explica Karin.
A Santa Cecília seria mais suntuosa e maior, mas acabou sendo simplificada. Ainda assim, conta a pesquisadora, a “mão grande” da Igreja está sobre tudo. “O templo se torna um espaço de doutrinação desse fiel para que ele aprenda a ter um comportamento decoroso em relação à Primeira República, em relação à sociedade paulistana da época”.
Doutrinação política inclusive. Com a expansão territorial do café para o oeste paulista havia a necessidade de reforçar o discurso do indígena como inimigo do progresso. As pinturas da igreja Santa Cecília trazem então índios sendo eliminados ou catequisados.
A afirmação do poder do branco e dos bispos como operários de Cristo também se dá por meio da planta da igreja. “Se a gente observar a planta, o corpo de Cristo está lá inserido: a cúpula coincide com o coração. As pinturas dos bispos estão na região dos braços de Cristo, são eles que ‘lançam mãos à obra’”.
A iluminação da Igreja de Santa Cecília em 1929 já era feita com energia elétrica. “As lâmpadas amarelas corroboravam para a experiência com o divino, uma vez que a luz dourada é a luz divina, a luz celestial, do céu divino, trazendo a ideia de que você seja inundado por isso”. A pesquisadora lamenta que hoje a luz amarela tenha sido substituída pelas brancas dificultando essa percepção.
Além de recuperar a história da arte religiosa na Paróquia Santa Cecília a tese também fez o resgate desse personagem que foi dom Duarte. Karin salienta que, além de mecenas, o arcebispo atuava também como museólogo que idealizou o então Museu da Cúria, hoje incorporado pelo Museu de Arte Sacra, além de arquivista, organizando os documentos da cúria. “As contribuições dele transcendem a própria Igreja e nos ajudam a compreender a nossa história”.