Estudo demonstra a importância da disciplina na obra do naturalista inglês
A atenção para a organização dos seres vivos no espaço e para os efeitos da paisagem sobre as formas de vida fizeram de Charles Darwin (1809-1882) um geógrafo antes de a geografia se institucionalizar como disciplina, aponta a tese de doutorado “A Questão da Geografia Na ‘Origem Das Espécies’ de Charles Darwin”, defendida por Carlos Francisco Gerencsez Geraldino, no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. A pesquisa foi orientada pelo professor Antonio Carlos Vitte.
“Já na primeira frase da ‘Origem’, Darwin diz ao leitor que as indagações que a obra pretendia elucidar chegaram a ele quando estava a bordo do HMS Beagle, refletindo sobre os padrões biogeográficos de certas espécies que havia coletado na América do Sul; o próprio mote do livro, então, tem um quê geográfico”, disse Geraldino, em entrevista ao Jornal da Unicamp.
Como muitos outros livros famosos e influentes, “Origem” é muito mais citado e discutido do que realmente lido. Para realizar sua pesquisa, Geraldino comparou as diversas revisões por que a obra passou durante a vida de seu autor – “as mudanças ocorridas ao longo das edições pautaram-se na tentativa de Darwin deixar a obra despersonalizada, objetiva, com melhorias semânticas e adequada às muitas críticas que recebeu”, explica o pesquisador – e também cadernos e anotações pessoais do naturalista britânico. O trabalho mostrou que o pensamento do cientista britânico ainda é muito incompreendido pelas Humanidades e outras áreas do saber.
“A própria icônica imagem da evolução como aquela que mostra um macaco erguendo-se em ser humano é, na grande maioria das vezes, interpretada como que se houvesse uma intencionalidade, um finalismo guiado, para que assim chegássemos a ser o que somos: ‘o pináculo da evolução’”, exemplificou. “Isso difere da interpretação darwiniana de que a tendência à perfeição, jamais alcançável, estaria em termos de adaptabilidade ao meio”.
“O modelo evolutivo darwiniano delegou-nos uma concepção de natureza não-essencialista, não-teleológica, não-antropocêntrica e não-progressista. Darwin criou um sistema cujos seres vivos transformavam-se de forma não finalista”, disse. Leia, abaixo, a íntegra da entrevista:
Jornal da Unicamp – Em que partes do raciocínio construído ao longo da “Origem” você diria que Darwin pensa como geógrafo, ou faz geografia? Destacaria algum trecho ou passagem especialmente forte, nesse sentido?
Carlos Francisco Gerencsez Geraldino – Darwin pensa como geógrafo praticamente o livro todo. Aliás, essa é uma das principais conclusões que nossa pesquisa chegou; Darwin, dentre outras adjetivações disciplinares que poderíamos hoje lhe atribuir, como “biólogo” ou “geólogo”, pode bem ser considerado como um “geógrafo”. Claro que não como um geógrafo catedrático, acadêmico, até porque em sua época essa disciplina estava em vias de ser institucionalizada, mas um geógrafo como um alguém que se pôs a entender como a ordem espacial dos fenômenos também poderia vir a explicá-los.
A origem das espécies, da pluralidade de formas da vida, passa necessariamente por questões de ordem geográfica. Você me pediu um trecho... bem, já na primeira frase da “Origem” Darwin diz ao leitor que as indagações que a obra pretendia elucidar chegaram a ele quando estava a bordo do HMS Beagle, refletindo sobre os padrões biogeográficos de certas espécies que havia coletado na América do Sul; o próprio mote do livro, então, tem um quê geográfico.
Agora, a parte do livro onde as questões geográficas aparecem de forma mais crítica, ironicamente, não está nos dois capítulos intitulados “Geographical Distribution” (o décimo primeiro e décimo segundo da primeira edição) como bem, a princípio, poderíamos supor, mas sim no quarto e mais importante capítulo da obra, intitulado “Natural Selection”, especialmente quando discute o papel do “princípio de divergência de caracteres” no processo de especiação.
Ali é onde vemos Darwin se posicionar contra a necessidade da existência de isolamento geográfico (via acidentes geográficos, como cadeias de montanhas, rios ou ilhas) para que a ocorrência do isolamento reprodutivo. É onde também vemos Darwin fazer uma espécie de hierarquização das melhores condições geográficas para que uma área manufature novas espécies, indo da pior condição, uma área pequena e isolada, para uma de melhor condição, caracterizada por ser grande, contínua e que já passou por oscilações de nível topográfico. Ou seja, as ilhas Galápagos, sempre utilizadas didaticamente como um exemplo de especiação, são, na visão de Darwin, o pior cenário geográfico para a ocorrência disso.
JU – Sua tese tem duas vertentes – o impacto da geografia no pensamento de Darwin e o do pensamento de Darwin na geografia. Quanto à segunda, como você mensuraria o efeito de “Origem” sobre a geografia, em relação, por exemplo, a seu impacto na biologia?
Carlos Francisco Gerencsez Geraldino – Na verdade, a tese tratou mais do papel da geografia (não enquanto disciplina, mas como forma de pensar) na “Origem” e não tanto o inverso. Partimos do pressuposto que um estudo sobre a influência de Darwin no arcabouço da ciência geográfica envolveria, antes de tudo, o estudo da influência da própria distribuição das espécies em sua obra. Ou seja, buscamos entender qual é a geografia discutida por Darwin para, em trabalhos futuros, debruçarmos sobre como os geógrafos acadêmicos interpretaram e utilizaram em seus sistemas teóricos o evolucionismo ofertado por Darwin.
O que posso adiantar é que, daqueles que eu verifiquei até momento, poucos abordaram a teoria da evolução tal como Darwin de fato a propôs. Agora, em relação à segunda questão, a diferença do impacto da “Origem” para as ciências biológicas para com a ciência geográfica é incomensurável.
Não estou dizendo, com isso, que tal obra não influenciou a história do pensamento geográfico, mas nas ciências biológicas a “Origem” estabeleceu o paradigma, com reformas aqui e ali, que até hoje vigora. Aqui não consigo senão lembrar a lacônica frase do geneticista Theodosius Dobzhansky (1900-1975): “Nada na Biologia faz sentido exceto à luz da evolução”.
JU – Como Darwin é visto, hoje, entre os geógrafos? É estudado? Considerado parte da história da geografia?
Carlos Francisco Gerencsez Geraldino – Sem dúvida, Darwin é estudado e é também considerado como parte da história da ciência geográfica. Porém, muitas vezes essa história é contada como se o evolucionismo fosse uma teoria monolítica. E como se tudo aquilo que se refere ao evolucionismo dissesse respeito a Darwin. Ao fazer essa tese, tive a oportunidade de rever essas ideias das quais também partilhava. Vi o quanto o evolucionismo é uma agenda composta de múltiplas teorias, por vezes até contraditórias, e de vários autores com contribuições diferenciadas.
E mesmo que fiquemos num só autor, como Darwin, por exemplo, veremos, ao aprofundar o estudo, que o papel que os acidentes geográficos no processo de especiação tinham nos anos de 1830, enquanto rascunhava seus interessantes cadernos de anotações, é completamente revisto quando escreve a “Origem”, em fins da década de 1850. O que quero dizer é que ainda não observo os geógrafos tratarem a agenda evolucionista nessa heterogeneidade; claro, há exceções. Devemos lembrar que Erasmus Darwin (avô paterno de Charles Darwin), Jean-Baptiste de Lamarck, Thomas Huxley, Charles Darwin, Alfred Wallace... entre outros, foram todos evolucionistas com visões, em tópicos importantes, bem diferentes entre si. Ou seja, aprendi, ao fazer a tese, a sempre antes perguntar: Qual tipo de evolucionismo iremos debater?
JU – Sua tese faz um trabalho meticuloso para distinguir as ideias de evolução, tal como foram se cristalizando na obra de Darwin, de pressupostos muitas vezes conectados a ideias evolucionistas, como a de progresso/aperfeiçoamento, teleologia, mérito, darwinismo social. Você considera que ainda há uma grande confusão desses pressupostos com as ideias de Darwin no mundo acadêmico das Humanidades?
Carlos Francisco Gerencsez Geraldino – Sim. E não só nas Humanidades. Há uma confusão em várias esferas do saber. A própria icônica imagem da evolução como aquela que mostra um macaco erguendo-se em ser humano (como se macacos já não fossemos...) é, na grande maioria das vezes, interpretada como que se houvesse uma intencionalidade, um finalismo guiado, para que assim chegássemos a ser o que somos: “o pináculo da evolução”. Como que se houvesse uma conspiração da natureza para nos criar dentro de um universo de bilhões e bilhões de estrelas... Haja antropocentrismo para sustentar isso, não?!
Tendo as observações sobre padrões biogeográficos em Galápagos como pano de fundo, Darwin propôs que o relacionamento entre as espécies seria mais bem visualizado como a imagem de uma grande árvore da vida, onde todos os seres vivos seriam aparentados entre si e também onde cada forma hoje viva haveria se originado a partir de outra previamente existente.
Esse elegante modelo de evolução ramificada só foi obtido após a inserção da categoria espaço na compreensão da variedade da vida, rompendo, assim, com o modelo de evolução progressista, histórico-linear, ofertado por Jean-Baptiste de Lamarck. Lamarck desenvolveu uma teoria de progressão crescente que tenderia à perfeição, do qual a mais complexa forma de organização existente seria a humana, diferindo, assim, da interpretação darwiniana de que a tendência à perfeição, jamais alcançável, estaria em termos de adaptabilidade ao meio.
A noção de progresso enquanto melhoria relativa a um ideal previamente estabelecido não se coaduna ao evolucionismo proposto por Darwin. A teoria da evolução por seleção natural é essencialmente aberta e não progressiva, nela não há hierarquia entre os seres vivos. A diferença de nível adaptativo das espécies dá-se apenas entre aquelas existentes e aquelas que já foram extintas. No presente, todas as espécies ainda existentes são, por essa razão, bem adaptadas.
Nem mesmo a diferença de complexidade orgânica das espécies pode ser utilizada como fator de hierarquização. Não são os seres mais complexos que sobrevivem, mais os mais adaptados ao ambiente. O modelo evolutivo darwiniano delegou-nos uma concepção de natureza não-essencialista, não-teleológica, não-antropocêntrica e não-progressista. Darwin criou um sistema cujos seres vivos transformavam-se de forma não finalista.
A adaptação não contempla mais ou menos complexidade orgânica; organismos simplórios ou complexos partilhavam da mesma categoria dos “adaptados”. Insetos, camelos, carvalhos, humanos e as bactérias que habitam seus estômagos, nesse sistema, igualam-se ontologicamente.
JU – Depois de Darwin vieram a descoberta das leis da hereditariedade, a genética molecular e a síntese moderna; hoje, alguns biólogos sugerem uma nova síntese, para levar em conta eventuais fatores biológicos extra-genéticos. Esses desenvolvimentos seriam relevantes para a geografia do mesmo modo que o trabalho seminal de Darwin?
Carlos Francisco Gerencsez Geraldino – Para eu poder te responder essa questão de forma satisfatória necessitaria desenvolver mais estudos sobre o papel ao qual se alocou a geografia dentro da nova síntese. O que posso adiantar é que quanto maior for o espaço da participação do meio no desenvolvimento dos organismos maior será, consequentemente, o papel da geografia na evolução.
JU – Você descreve, na tese, seu trabalho de pesquisa online nos escritos originais de Darwin e de cotejamento entre as diferentes edições da “Origem”. Nesse trabalho todo, houve algum achado que o tenha impressionado de modo especial? O que você destacaria?
Carlos Francisco Gerencsez Geraldino – A “Origem” teve seis edições diferentes, cinco revistas pelo autor. A primeira data de 1859 e a última, de 1872. As mudanças ocorridas ao longo das edições pautaram-se na tentativa de Darwin deixar a obra despersonalizada, objetiva, com melhorias semânticas e adequada às muitas críticas que recebeu. Darwin conseguiu modificar a cosmovisão de sua sociedade por de dentro. Com o pesquisador Michael Ruse certa vez disse, Darwin foi um revolucionário sem ser um rebelde. Darwin solapou o criacionismo pautado na Teologia Natural e foi enterrado com honras na Abadia de Westminster... foi muito interessante na pesquisa acompanhar o raciocínio de Darwin buscando realizar essa difícil tarefa.
Bem, vários foram os “achados” interessantes na pesquisa. Destacarei dois, um por ser irônico e outro por ser importante. Sabe que, para eu estar aqui conversando com você sobre a tese eu tive antes, lá no início dos anos 2000, que fazer um vestibular. Na época, estudei que a diferença entre a teoria de Lamarck e a de Darwin era que o primeiro acreditava na herança de caracteres adquiridos e o segundo, não. Nesse doutorado tive a oportunidade de rever isso.
Darwin teve grande consideração pela herança de caracteres adquiridos, a ponto de desenvolver toda uma nova teoria chamada “pangênese” que desse conta dela. Darwin, inclusive, na última edição da “Origem”, traz o didático caso do alongamento do pescoço da girafa como um exemplo do acúmulo de esforço prolongado! Achei isso engraçado, pois para entrar no mundo acadêmico aprendi que a herança de caracteres adquiridos era coisa do Lamarck e, para obter um doutorado, vi que quem mais se preocupou com isso foi Darwin. Isso é um exemplo da importância dos historiadores da ciência sempre estarem atentos a revisar suas considerações a respeito das visões consolidadas, não é?
Bom, já o “achado” que considerei mais importante na pesquisa foi o debate feito por cartas entre Darwin e o zoólogo alemão Moritz Wagner a respeito do papel do isolamento geográfico na especiação. Darwin, por meio do princípio de divergência de caracteres, entendeu ser plenamente possível que uma espécie se ramifique em duas ou mais dentro de um mesmo hábitat contínuo, a partir da exploração de nichos diferenciados, ou seja, tenderia a concordar com aquilo que hoje é chamado de especiação cladogênica simpátrica.
Já Wagner, por seu turno, jamais concordaria com isso: em sua ótica, o isolamento reprodutivo depende única e exclusivamente do isolamento geográfico, daí que se duas variedades intraespecíficas pudessem ter o livre trânsito em um mesmo hábitat – sendo esse, não recortado por expressivos acidentes geográficos ou então não tão grande a ponto da distância entre essas variedades fosse impossível de atravessar – fatalmente se reproduziriam entre si impedindo qualquer possibilidade de que a especiação pudesse vir a ocorrer. Esse é um debate interessante, pois, de certo modo, até hoje, ainda permanece.