NOTÍCIAS

Cesárea: obstetra vê ‘assimetria de poder’ entre médicos e parturientes

Para especialista, fatores sociais complexos explicam a alta taxa de ocorrências do procedimento no país

Autoria
Edição de imagem

A taxa de cesáreas realizadas no Brasil, que vinha crescendo há décadas e que, em 2010, pela primeira vez superou os 50% do total de partos, parou de subir em 2015, quando registrou queda de 1,5 ponto porcentual na comparação com o ano anterior, estabilizando-se em 55%, de acordo com dados divulgados no início de março pelo Ministério da Saúde. Ainda assim, a taxa permanece alta: documento divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2015, reafirma um consenso científico dos anos 80 de que, em termos de população geral, não há justificativa médica para uma taxa de cesáreas superior a 15%.

O documento da OMS afirma ainda que, à medida que a taxa de cesáreas numa população supera os 10%, os benefícios da prática, medidos em termos de redução da mortalidade materna e neonatal, começam a se confundir com os trazidos por melhores condições socioeconômicas, o que sugere que, a partir desse ponto, a condição social da mãe acaba sendo tão ou mais importante que o procedimento.

O professor titular de Obstetrícia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, José Guilherme Cecatti, atribui a estabilização do índice de cesáreas a uma conjunção complexa de fatores, incluindo políticas adotadas pelas autoridades, mobilização da sociedade civil, uma mudança cultural que veio a valorizar o parto natural e uma maior pressão da Agência Nacional de saúde Suplementar (ANS) sobre os planos de saúde privados, com a exigência de informações e justificativas para o uso da cesárea.

Foto: Antonio Perri
José Guilherme Cecatti, professor da FCM: “Há uma diferença, absolutamente gritante, que depende de fatores sociais”

“O dado de que 55% são cesáreas vem do SINASC, o Sistema Nacional de Nascidos Vivos, e isso envolve a totalidade da população, então aqui estão o sistema público, os convênios e o privado. Se fizermos nesses dados uma estratificação por público, veremos o disparate, a diferença”. De acordo com os números divulgados pelo Ministério da Saúde e pela ANS, em 2015, no SUS, houve 40% de cesáreas. Já entre os planos e seguros de saúde privados, a taxa ficou em 85%, número que representa queda em relação a 2014, quando 86% dos partos pagos por planos e seguros de saúde foram cesáreas.

“Há uma diferença, absolutamente gritante, que depende de fatores sociais – porque não existe, é claro, uma justificativa clínica racional para que os indivíduos do sistema privado ou dos convênios tenham problemas ou complicações clínicas que justifiquem o dobro da proporção de cesáreas que existe no sistema público”, afirmou o professor.

Campeão

“No passado, o Brasil já foi chamado de campeão mundial de cesáreas. Não é mais, mas a marca pegou”, disse Cecatti. “E isso por uma série de causas, não se encontra uma explicação simples”. Ele elenca desde uma política mantida pelo SUS nos anos 80, de pagar mais aos médicos por cesáreas do que por partos normais – “o que era uma inversão total, não havia justificativa” –, até limitações na formação dos profissionais de saúde e questões culturais que só recentemente começaram a mudar.

“Falando do treinamento de profissionais, nem todos os indivíduos tem o privilégio de ter uma formação profissional completa na área de ginecologia e obstetrícia”, declarou o pesquisador. “E fazer uma cesariana, do ponto de vista técnico e de rapidez, é muito mais rápido e fácil do que acompanhar um trabalho de parto, com todos os problemas que podem acontecer ao longo dele, e aquilo que você tem de fazer diante de uma ou de outra condição que possa surgir. Então, é mais fácil para as pessoas fazerem uma cesárea do que fazer um parto normal”.

A percepção pública também favorece a realização de cesáreas. “Vamos supor que tenha um trabalho de parto que esteja sendo seguido por um médico, e por algum problema que aconteceu, essa criança morre. Se foi parto normal, a associação imediata de todo mundo que está por perto, principalmente do público, é: morreu porque foi parto normal”, exemplifica. “Agora, se o mesmo acontece numa cesárea, a reação é: morreu, apesar de ter feito a cesárea. É um conceito que já está na cabeça das pessoas”.

Foto: Antonio Perri
Parto em hospital púbico: apesar da queda no número de cesáreas, taxa continua alta

Essa percepção vem mudando com o aumento da busca pelo parto natural, disse ele, que é auxiliada por inovações como a lei que garante a presença de um acompanhante no hospital ou maternidade. “Acredito que ter alguém junto tenha representado, também, um papel de controle social”, ponderou.

“Porque numa relação entre o profissional e uma mulher que está em trabalho de parto, há uma assimetria de poder. Às vezes basta um olhar, uma insinuação do médico, e a mulher já concorda com a cesárea. Se há um acompanhante junto, o poder de raciocínio, de barganha, de cobrar explicação, aumenta”, disse o professor. “E isso acaba funcionando como um controle social: cesárea por quê? Não dá para esperar mais um pouco? Não está quase lá?”

Humanização

Cecatti ressalta que a ideia de retorno ao parto natural e de humanização do parto – e da medicina – não exige que se prescinda da tecnologia. “Pessoalmente, acho que o meio termo é o ponto para tudo. Nesse processo de volta ao normal, ao natural, existem alguns grupos que a meu ver são extremistas”, declarou. “A cesárea é sim um procedimento importante e às vezes necessário. Ela é boa quando usada na medida da necessidade comprovada”.

 

Imagem de capa JU-online
Foto: Antonio Perri

twitter_icofacebook_ico