Desequilíbrio coloca em risco animais silvestres e populações humanas na Mata Atlântica
O crescimento descontrolado da população de javalis e javaporcos na Mata Atlântica está impulsionando também o aumento da população de morcegos-vampiros, que são vetores de doenças como a raiva, e criando uma situação de risco para animais silvestres e populações humanas, alertam cientistas brasileiros.
Dados apresentados em artigo publicado no periódico Frontiers in Ecology and the Environment apontam que o risco de transmissão de raiva para javalis, por morcegos, é cinco vezes maior na Mata Atlântica do que no Pantanal, o que sugere uma situação de desequilíbrio no bioma do Sudeste, aponta o pesquisador Ivan Sazima, do Museu de Zoologia da Unicamp, um dos autores do trabalho.
“Para mim, esse diferença significa o seguinte: no Pantanal, onde o porco selvagem, o porco monteiro, está presente há décadas, talvez há mais de uma centena de anos, houve um equilíbrio”, disse o professor do Instituto de Biologia da Unicamp. “Geralmente ocorre isso: há uma tendência ao equilíbrio entre as populações de morcego-vampiro, suas presas e o vírus da raiva”.
A invasão de javalis e javaporcos – animal fruto do cruzamento do javali com o porco doméstico – nas matas brasileiras é um fenômeno relativamente recente, precipitado pela fuga de animais, originalmente importados, de criações comerciais ou pela soltura deliberada por criadores que viram fracassar seus negócios.
Invasores
“Esses animais, vindos do sul do Brasil, principalmente do Rio Grande do Sul, avançaram em direção ao Sudeste. Daqui a pouco, se não for tomada alguma providência por parte dos órgãos responsáveis pelo meio ambiente, vamos ter esses javalis e javaporcos espalhados pelo Brasil todo: Caatinga, Amazônia, tudo isso pode ser previsto com segurança”, disse Sazima.
“Os javalis são considerados uma das piores pragas do mundo, devido a sua capacidade de destruir solo, plantas, o que for possível. Também são hospedeiros potenciais de várias viroses e doenças que podem transmitir para animais silvestres e, agora, servem de fonte alimentar para o morcego-vampiro, que transmite o vírus da raiva, entre outros. Então, há vários riscos, entre eles de aumento da frequência do vírus da raiva nas populações de javalis, animais silvestres e morcegos”, aponta o pesquisador.
Sazima lembra que o vírus da raiva age como um regulador da população de morcegos-vampiros, espalhando-se à medida que o número de animais cresce, até que a doença força uma redução populacional desses mamíferos. Até que um novo equilíbrio se instale, portanto, a oferta de alimento fácil para os morcegos, trazida pela disseminação descontrolada de javalis e javaporcos, deve impulsionar um aumento dos casos de raiva.
“Os javalis e javaporcos são um perigo real para a Mata Atlântica, e vão seguir seu caminho para o Norte e o Nordeste. E os morcegos vão aproveitar, porque já estão lá. Só que, aumentando a oferta de alimento, sempre aumenta o número de morcegos na população, isso é clássico”, disse. “O número de morcegos na era pré-colombiana provavelmente era pequeno, porque se alimentavam de animais silvestres que, nas matas, vivem espalhados. Então as colônias de morcegos deviam ser pequenas. Com a introdução de gado, incluindo cavalos, as populações de morcego aumentaram em todos os lugares na América pós-colombiana. Isso é fato aceito”.
Vampiros e vilões
“O morcego-vampiro é muito inteligente, ele se adapta facilmente a novas fontes de alimento”, disse Sazima. “Um exemplo: com a entrada de garimpos na Amazônia, houve um grande aumento de casos de raiva entre a população dos garimpeiros. O morcego já estava lá, explorando animais silvestres, e de repente encontrou uma nova fonte alimentar: humanos. Como consequência, o número de casos de raiva aumentou”, relatou.
O morcego-vampiro comum, da espécie Desmodus rotundus, é um animal pequeno, que cabe na palma da mão de um ser humano adulto. Além do voar, ele também anda e é capaz de saltar – muitas vezes se aproxima das vítimas pelo chão. Sua mordida atinge vasos superficiais e não, como os vampiros do cinema, veias e artérias importantes.
“Esse morcego é muito versátil”, relata o pesquisador. “Consegue atravessar um vão de porta de altura mínima. Ele anda pelo chão e é capaz de se espremer por um vão menor que sua altura normal. É difícil se proteger de um morcego-vampiro, se ele está a fim do seu sangue”.
Mas o vilão do desequilíbrio atual, insiste Sazima, é o javali e seu descendente, o javaporco. “O morcego, coitado, só toma sangue e é extremamente oportunista. Todos os autores do artigo, inclusive eu, são unânimes em afirmar que as populações de javalis e javaporcos que estão se espalhando pelo Sudeste precisam ser controladas de algum modo. É o apelo que fazemos aos órgãos responsáveis pelo meio ambiente e pela vida silvestre”.
Além do pesquisador da Unicamp, assinam o trabalho, em Frontiers in Ecology and the Environment, Mauro Galetti e Felipe Pedrosa, ambos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Alexine Keuroghlian, da WSC Brasil.