Técnica denominada RNAi permite “desligar” a função de genes em qualquer organismo vivo
A ciência traz constantemente para o nosso dia a dia ferramentas e tecnologias que mudam a nossa forma de interagir com o ambiente. A interação entre vírus e os demais seres vivos que os primeiros atacam é um dos melhores exemplos de uma batalha evolutiva de aprimoramento de mecanismos de atacante e defesa. Praticamente todos os seres vivos hoje evoluíram algum mecanismo de defesa contra os inúmeros mecanismos de ataques virais. Plantas ou animais infectados por vírus desencadeiam este mecanismo para silenciar, ou seja, inibir a função de genes virais.
Henrique Marques-Souza, professor do Instituto de Biologia (IB), é quem faz o preâmbulo para explicar que o estudo deste mecanismo de defesa trouxe para o dia a dia da pesquisa e da área da saúde uma ferramenta, chamada de RNAi (do inglês RNA interference), que permite ao pesquisador “desligar” genes específicos em qualquer organismo vivo. “Além de sua aplicação na pesquisa básica para o estudo da função gênica, ou aplicada à área da saúde em terapias gênicas, a ferramenta de RNAi passou a ser usada a partir de 2006 para o controle de pragas em culturas agrícolas. Nesta abordagem, moléculas capazes de silenciar especificamente genes de pragas são introduzidas nas plantas; ao se alimentarem destas plantas, as pragas têm seus genes silenciados.”
Esta capacidade de buscar genes essenciais para pragas agrícolas nacionais é o foco de um grupo de pesquisa liderado por Marques-Souza no Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual do IB. Com doutorado em silenciamento gênico para o estudo da função gênica em insetos pela Universidade de Colônia, na Alemanha, e pós-doutorado pela Universidade da Califórnia, Berkeley, o pesquisador da Unicamp investe hoje boa parte do seu tempo junto ao grupo, para identificar genes alvos em insetos e testar a capacidade de silenciamento gênico e redução de danos em pragas de interesse econômico ao país.
Ao retornar ao Brasil, ele estabeleceu uma colaboração com os professores Antonio Figueira, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, e Joni Lima, da UFMG, para desenvolver a tecnologia de controle molecular de pragas por RNAi para a broca do tomateiro (Tuta absoluta). “Esta parceria, que teve o apoio da Fapesp, rendeu um artigo em 2015, na revista BMC Genomics e um outro artigo publicado no final do ano passado, na revista PeerJ, que assino como último autor.”
Através de um projeto Fapesp, os grupos de Henrique Marques-Souza e de Antonio Figueira conseguiram uma redução da expressão dos genes e do tempo de sobrevivência das larvas. “A maioria das larvas não passou do estágio de pupa. Houve diminuição também do dano folhear, sendo que devemos levar em conta que, para a técnica funcionar, a larva precisa se alimentar. Este projeto contou com a participação do meu aluno de iniciação científica Cyro von Zuben, que hoje lidera a ala de controle de pragas por RNAi em nosso grupo.”
Há cerca de um ano, o professor do IB foi procurado por uma grande empresa brasileira de germoplasmas interessada em identificar alvos para silenciamento gênico em várias culturas. Com a intermediação da Agência de Inovação Inova Unicamp, firmou-se uma parceria inicialmente de 18 meses e o projeto já está em andamento desde meados de 2016. “Temos uma relação muito rica e eficiente, com interações frequentes entre os pesquisadores do meu grupo e da empresa, treinamentos de pessoal, transferência de tecnologia e visitas de campo para adaptarmos a nossa abordagem experimental aos interesses desta parceira e às necessidades dos agricultores. Estamos aprendendo muito neste trabalho conjunto. A autoria, tanto de trabalhos científicos como de patentes, serão compartilhados entre a Unicamp e a empresa, sendo que esta terá prioridade para licenciar o produto.”
Segundo Marques-Souza, se existe uma demanda definida com esta empresa, a ideia de seu grupo no IB é estabelecer um polo de pesquisa e desenvolvimento visando parcerias público-privadas para oferecer acesso a esta tecnologia para os produtores brasileiros. “O silenciamento gênico funciona não apenas para insetos, mas também para outros artrópodes, vírus, fungos ou nematoides, merecendo por isso o investimento de muitos recursos por grupos de pesquisa no mundo todo. Em relação a pragas, temos hoje o controle químico (com agrotóxicos), o biológico (com um inimigo natural da praga) e agora esta tecnologia, que seria um controle molecular, já que colocamos moléculas (RNA) na planta. Meu papel é buscar os genes que afetam o inseto e reduzem o dano às plantas e criar as moléculas que serão inseridas na planta por especialistas.”
O professor ressalta, também, que a especificidade da técnica evita que outros insetos que frequentem a cultura, conhecidos como inimigos naturais, sofram danos pelo controle molecular. “Na busca do gene alvo ideal, conseguimos definir se o resultado será específico ou mais amplo. Também conseguimos selecionar vias metabólicas, um neurotransmissor importante para o apetite, uma enzima digestiva ou ainda provocar diretamente a letalidade. Com isso, elimina-se o problema mais preocupante no controle de pragas, que é o desenvolvimento de resistência pelo inseto.”
Petúnias
A interferência de RNA (RNAi), mecanismo que permite silenciar a atividade de genes específicos em plantas e animais, foi descrito pela primeira vez em petúnias, no início da década de 1990. Pesquisadores queriam produzir flores com cores muito intensas, aumentando a expressão da enzima chalcona-sintase (CHS), que é responsável pela cor; mas o resultado foram flores brancas, o que não fazia sentido. “Foi quando observaram que, ao aumentar a expressão da enzima, o RNA formava fitas duplas, levando as células da planta a assumi-lo como um gene viral, silenciando-o: ocorria um bloqueio por excesso. Seria como uma resposta auto-imuno, onde o corpo ataca suas próprias células, achando que são agentes patológicos. Mas neste caso seria algo como uma resposta auto-molecular.”
Este fenômeno, finaliza Henrique Marques-Souza, foi observado em outras espécies de plantas e em organismos como fungos, mas o mecanismo que levava ao silenciamento gênico ainda era desconhecido. Em 2006, os pesquisadores os norte-americanos Andrew Z. Fire e Craig C. Mello, trabalhando com nematoides, ganharam o Nobel (de Medicina ou Fisiologia) ao elucidar o fenômeno do silenciamento gênico por RNAi. “E hoje em dia a técnica é usada por praticamente todas as linhas de pesquisa como forma de inativar genes.”