De acordo com estudo, atuação feminina no entreguerras contribuiu para conformar uma nova noção de justiça social no Brasil
A luta das mulheres pela conquista de direitos durante o entreguerras (1917-1937) contribuiu para conformar uma nova noção de justiça social no Brasil. A análise é da historiadora Glaucia Cristina Candian Fraccaro, autora da tese de doutorado intitulada Os Direitos das Mulheres - Organização Social e Legislação Trabalhista no Entreguerras Brasileiro (1917-1937), defendida em 2016 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob a orientação do professor Fernando Teixeira da Silva. “Depois das greves de 1917, que contaram com uma significativa participação das mulheres, não foi mais possível pensar a justiça social no Brasil sem pensar na condição da mulher trabalhadora”, sustenta a pesquisadora.
Glaucia decidiu investigar o tema depois de ter pesquisado, durante o mestrado, questões ligadas ao sindicalismo no Brasil. Na ocasião, a historiadora teve a atenção despertada para a participação das mulheres no mundo do trabalho. “Um ponto que me motivou a pesquisar o assunto foi tentar descobrir em que contexto foram formuladas as leis trabalhistas específicas para as mulheres, como a licença maternidade. Atualmente, legislações dessa natureza são consideras ‘naturais’, mas no início do Século XX a realidade era muito diferente”, explica.
Em sua tese, Glaucia trabalhou com três eixos principais, que ela também classifica de hipóteses. O primeiro deles foi identificar a participação das mulheres no movimento organizado dos trabalhadores. Embora não estivessem na linha de frente dos sindicatos, dirigidos majoritariamente por homens, elas participaram efetivamente das lutas da classe operária, demonstrando bom nível de organização, notadamente no chão das fábricas. “As mulheres tiveram presença importante nas greves de 1917. Ainda que de modo um tanto difuso, as pautas delas estavam presentes no conjunto das reivindicações dos trabalhadores”, assinala.
Naquela época, continua a historiadora, as mulheres já se mobilizavam pela licença maternidade e pelo princípio do “trabalho igual, salário igual”. “As greves de 1917 também foram importantes porque fizeram com que essas demandas emergissem”, pontua Glaucia. O segundo eixo de pesquisa presente na tese refere-se à formulação das legislações trabalhistas. Segundo a autora, após a mobilização do operariado, a pauta da Comissão de Legislação Social da Câmara dos Deputados passou a contemplar diversas propostas contidas na agenda das trabalhadoras, como a própria licença maternidade e a proibição do trabalho noturno, esta última como parte do entendimento de que as mulheres exerciam dupla jornada de trabalho.
Aqui, Glaucia abre parênteses para falar sobre o movimento feminista no Brasil. Segundo ela, há uma ideia arraigada na sociedade de que o feminismo tem origem nas classes mais abastadas do país, tendo a bióloga Bertha Lutz como principal expoente. “Uma parte da história do feminismo brasileiro pode ser contada sob esta ótica. Entretanto, antes disso, foi travada uma luta muito consistente pelos direitos das mulheres por parte das trabalhadoras. Quando Bertha funda a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, em 1922, algumas pautas defendidas pela entidade eram reivindicadas pelas trabalhadoras dez anos antes”, compara a historiadora.
O terceiro eixo explorado na tese analisa como as demandas das trabalhadoras brasileiras foram inseridas num debate transnacional, que discutia a definição de padrões internacionais para orientar o trabalho. A compreensão de que era preciso estabelecer padrões internacionais do trabalho levou a Liga das Nações, antecessora da Organização das Nações Unidas (ONU), a criar, em 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT). “A OIT tornou-se um grande irradiador das ideias e reivindicações das trabalhadoras, com as quais o chamado ‘feminismo de elite’ teve que lidar”, relata Glaucia.
No Brasil, o período em questão, observa a autora da tese, ficou mais conhecido por causa da luta de Bertha Lutz e outras feministas pelo direito de voto para as mulheres. “Aquele momento também foi classificado como ‘a primeira onda do feminismo’, mais voltado para a garantia dos direitos civis das mulheres. Entretanto, nos documentos históricos que analisei, encontrei várias tensões e demandas das trabalhadoras, o que contraria a ideia de que elas estiveram ausentes do movimento feminista”, reforça a pesquisadora.
Tensões
O movimento feminista no Brasil registrou diversas tensões em seu interior, como reafirma a autora da tese. Assim como em outros países, aqui também havia correntes com pensamentos divergentes sobre as estratégias de luta. Havia um grupo que concordava com a postura de uma corrente de pensamento norte-americana, que achava que não era preciso qualquer ordenamento jurídico para garantir a conquista dos direitos das mulheres. Segundo este entendimento, bastaria somente a existência de uma lei proibindo a discriminação entre homens e mulheres.
Outro grupo pensava justamente o contrário, ou seja, defendia a formulação de leis específicas para fazer valer os interesses das mulheres. “A própria Bertha ficou dividida entre uma posição e outra, mas acabou percebendo, no embate com o governo Vargas, que era fundamental brigar por leis específicas. O que talvez minha tese traga como contribuição é revelar que essas tensões sempre existiram. O feminismo, assim como outros movimentos sociais, não é homogêneo. É esperado que ocorram disputas internas dentro de um campo tão extenso”, pondera Glaucia.
Momento atual
Ao discutir a origem da luta das trabalhadoras e do movimento feminista no Brasil, a pesquisadora considera que muitas conquistas foram alcançadas ao longo dos últimos 100 anos, mas reconhece que alguns direitos fundamentais das mulheres ainda não foram assegurados na prática, como a isonomia salarial com os homens, quando do exercício da mesma função. “Algumas demandas continuam na pauta, principalmente neste momento em que assistimos a ações de um governo ilegítimo que busca retirar direitos dos trabalhadores por meio de reformas. É um período de retrocesso, que atinge os trabalhadores em geral e as trabalhadoras em particular”, avalia Glaucia.
Entre as fontes consultadas pela historiadora para o desenvolvimento da tese estão coleções pertencentes ao acervo do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp, como jornais da Imprensa Operária, documentos diplomáticos, circulares de indústrias etc. “Também usei boletins do Departamento Estadual do Trabalho e documentos da OIT, DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social), Federação Brasileira para o Progresso Feminino, Ministério do Trabalho e Presidência da República”, elenca a pesquisadora, que contou com bolsa de estudo concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).