Joaquim Brasil Fontes revela o processo de tradução de Os Cantos de Maldoror
Poucas obras causaram tanto impacto na história da literatura, sobretudo entre os iniciados, como Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont – pseudônimo do uruguaio Isidore Ducasse [1846-1870]. A despeito de sua importância, foram poucas as edições da obra no Brasil. Coube ao professor Joaquim Brasil Fontes, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, a tradução da mais nova versão do clássico, a ser lançado amanhã (6) pela Editora da Unicamp, a partir das 10 horas, em Campinas. Na entrevista que segue, Fontes fala da importância da obra, de suas imbricações e das barreiras enfrentadas ao vertê-la para o português. “Não se esqueça de que traduzir Lautréamont é entrar no coração da escrita da crueldade”.
Jornal da Unicamp – Em que medida sua tradução de Os Cantos de Maldoror traz novos elementos quando cotejada com as (poucas) já publicadas no país?
Joaquim Brasil Fontes – A língua de Isidore Ducasse – nome do jovem montevideano que se escondia sob a máscara de Lautréamont – coloca problemas mesmo para o leitor nativo, como pude constatar, ao longo do meu trabalho, em trocas de e-mails com tradutores franceses. Comento alguns desses problemas no meu posfácio. Falarei de outros adiante, sem contudo tentar delimitar ou distinguir meu lugar no conjunto das poucas porém boas traduções de Maldoror que temos no Brasil: mais, talvez, do que a tradução, é a própria “filosofia” desta edição que traz alguma novidade em relação a algumas que circulam entre nós.
Os Cantos de Maldoror, atribuídos ao Conde de Lautréamont foram impressos (mas não distribuídos) em 1869, na Bélgica. Trata-se de livro composto de seis cantos redigidos em prosa poética e contendo estrofes não numeradas. Sabemos hoje que o primeiro desses cantos havia passado por duas edições anteriores: em 1868, em Paris, numa brochura de 32 páginas, ostentando na capa, em lugar do nome do autor, três estrelas ou asteriscos, e, logo depois, no início de 1869, numa coletânea de textos poéticos (Perfumes d’Alma) publicada em Bordeaux, um texto também anônimo. Uma resenha da edição de 1868, bastante elogiosa, aliás, não deixou de assinalar, entretanto, os “numerosos defeitos” do livro e a “confusão” dos seus quadros, referindo-se, talvez, às estrofes 11, 12 e 13, que destoavam, com efeito – do ponto de vista da mais tradicional retórica dos gêneros – do conjunto do Canto I, que é fundamentalmente narrativo: estavam redigidas sob a forma de cenas dramáticas, com suas disdacálias e todo o aparato da escrita teatral.
Se ignoramos no fundo porque o autor retomou, três vezes, esse primeiro canto, retrabalhando-o obsessivamente, o certo é que um curioso fenômeno linguístico ocorre na passagem de uma versão para outra: um nome próprio, Dazet, é substituído, na segunda versão do Canto primeiro, pela inicial D... e explode, na terceira (integrada ao conjunto dos seis cantos), num elenco de animais, pequenos e grandes, repugnantes, ferozes ou repulsivos: polvo, piolho, morcego, ácaro. Sapo. Esse bestiário substitui Dazet, um personagem que figurou na vida empírica do autor, quando esse, um garoto de uns treze anos de idade, recém-chegado da América setentrional, inscrevia-se no Liceu Imperial de Tarbes, cidade francesa situada nos Altos Pirineus:
Dazet >>>> D... >>>> polvo, piolho, morcego, ácaro, sapo.
Mais do que do apagamento de um nome, trata-se de uma verdadeira metamorfose.
Ao mesmo tempo, as cenas teatrais das estrofes 11, 12 e 13 são “corrigidas”, ganhando uma tonalidade narrativa e reintegrando-se, assim, aparentemente, ao conjunto do Canto Primeiro e à retórica dos gêneros literários.
Assinalemos, também, a “correção” de alguns sinais de pontuação, ao longo das três versões do Canto Primeiro.
Ora, como já demonstrou Jean Peytard nos distantes anos 70 do século passado, a modificação às vezes de um único elemento daquelas poucas páginas provocava imediatamente verdadeiras revulsões em cadeia na continuidade da obra: pulverizado em grandes e pequenos monstros, um retalho da vida do autor (Dazet), ganha o anonimato e depois se dissolve num bestiário, doravante ponto de partida e constituinte da animalidade jubilosa e da crueldade que serão marcas decisivas dos Cantos de Maldoror, para as quais Gaston Bachelard foi dos primeiros a chamar a atenção, num estudo datado de 1939: a conquista, no trabalho de reescritura do texto, de uma nova temporalidade, na urgência das metamorfoses.
E talvez não seja temerário sugerir que o próprio Lautréamont, saindo do anonimato, é gerado pela reescritura:
1ª. versão anônima >>> 2ª. versão anônima >>> 3ª. versão atribuída a um pseudônimo, o Conde de Lautréamont.
Os Cantos de Maldoror, tal como o lemos hoje, depende em grande parte, como texto, do apagamento de Dazet, da rasura dos signos de teatralidade, de todo um exercício metódico de correção, o que inclui a repontuação – depende, em suma, das sucessivas reescrituras do Canto Primeiro, que parece ter provocado, no ato de sua reintegração à totalidade do livro, uma sequência de pequenos e amplos fenômenos linguísticos e, antes de tudo, a tomada de consciência, pelo autor, de um amálgama, fusão ou mistura entre o Eu-narrador (que às vezes coincide com Lautréamont) e Maldoror-personagem, que é, paradoxalmente, objeto e sujeito do canto.
Esse verdadeiro exercício de correção textual parece ser também responsável, em grande parte, por uma espécie de revulsão dos registros poéticos, que se transfundem – no momento mesmo em que o escritor apagava os índices de teatralidade, talvez para “normalizar” seu texto – uns nos outros, dando origem à mistura impura de gêneros que é uma das mais espetaculares marcas dos Cantos, cuja dicção situa-se nas fronteiras porosas do épico, do lírico e do dramático, um desequilíbrio formal apenas aparente.
Eis porque, seguindo sob este aspecto a edição Pléiade de Maldoror, apresento separadamente o Canto Primeiro, um texto anônimo, e só a seguir o conjunto os seis cantos, atribuídos ao pseudônimo Conde de Lautréamont.
Trata-se, evidentemente, de uma “filosofia da edição”, diferente daquela que rege uma conhecida publicação feita pelos surrealistas, que “colavam” a versão 1868 ao conjunto dos Cantos, fazendo emergir nas suas margens o texto reescrito da versão de 1869, visto como uma “variante” da 1ª.
JU – Quais foram as maiores barreiras enfrentadas pelo sr. ao verter a obra para o português?
Joaquim Brasil Fontes – Gosto dessa metáfora: barreira. Uma barreira é um obstáculo, num sentido muito amplo, mas também cada um dos obstáculos dispostos num pista de atletismo. Neste último sentido, todas as barreiras têm o mesmo tamanho e altura, e são muitas:
Ducasse escreve um francês peculiar, que é o do século XIX, com uma forte marca do castelhano, mas também com uma dicção que deriva das “altas literaturas”;
os Cantos estão em perpétuo diálogo com toda a herança literária do Ocidente, de Homero até os contemporâneos do poeta uruguaio, passando por Dante e Mílton, sem falar na mídia jornalística (que nascia naquele momento) e em toda a ciência da época – medicina, física, história natural – às vezes colhida em manuais de divulgação, como seria o caso dos pássaros cujos nomes podem ter sido colhidos em enciclopédias e livros de ornintologia: o grou, o estorninho, o pigargo ruivo, o patola, a fragata, o corvo marinho, o abutre-dos-cordeiros, o corujão-da Virgínia... tantos outros, numa revoada que me lembra um filme de Hitchcock.
“Lê, lê, lê, e descobrirás”, diz um apotegma alquímico:
lê e relê, tradutor, não apenas Maldoror, mas tudo o que se escreveu sobre ele e a poética dos anos 1860;
lê os autores que Ducasse deve ter lido: Baudelaire, Homero, Lamartine (o Segundo Canto de Maldoror é atravessado por um jorro hínico que parece derivar, contestando-os ironicamente, dos hinos religiosos desse poeta romântico), tantos outros;
lê também manuais de ornitologia e zoologia, e, se possível, jornais da época:
pratica o francês do século XIX com assiduidade.
E, por fim, não se esqueça de que traduzir Lautréamont é entrar no coração da escrita da crueldade.
JU – Lautréamont sempre foi considerado um escritor “difícil”. Há quem diga que se trata de mais um caso de “escritor para escritores”. O sr. concorda?
Joaquim Brasil Fontes – Não!!! Meus alunos, amigos, colegas, são tomados por um espécie de frisson quando leem Lautréamont. “Abram Lautréamont”, sugere Francis Ponge, “e eis toda a literatura revirada como um guarda-chuva. Fechem Lautréamont! E logo tudo volta ao lugar”. E, no entanto, o poeta é contemporâneo do parnasianismo francês: não nos esqueçamos de que o primeiro número da revista Parnasse Contemporain (no qual Mallarmé publica seus poemas juvenis) é de 1866.
JU – Quais as nuances estilísticas e temáticas que o sr. destacaria na obra de Lautréamont?
Joaquim Brasil Fontes – Eu poderia falar aqui do humor negro de Lautréamont, do seu ardor, de sua frieza e da crueldade militante do seu herói. Poderia falar do jorro oratório de algumas de suas melhores estrofes. Poderia falar de uma pena que é usada como escalpelo ou agulha. Poderia falar de sua imaginação orgânica, biológica, e do tema da cabeleira, que têm uma função precisa no tecido dos Cantos, como a obsessão do escalpo e a aceitação jubilosa da abjeção. Poderia falar da exaltação da imundície. Das múltiplas invocações que subitamente, suprimindo o verbo, bloqueiam a narrativa e precipitam o jorro da palavra poética. Poderia falar do inquietante tema do olhar e das fronteiras porosas entre o sujeito da enunciação e o do enunciado.
Mas prefiro retomar aqui umas palavras de Raymond Jean, num livro que li admirado quando era estudante de literatura na França: “o essencial dos Cantos de Maldoror é ser o terreno original de onde todas as formas podem nascer e se realizar”.
JU – Sua prosa é frequentemente associada às obras de escritores tidos como “malditos” no final do século 19, entre os quais Rimbaud e Baudelaire, assim como às experimentações presentes na obra de Mallarmé. O sr. acha as comparações procedentes? Se sim, quais seriam esses pontos convergentes? Se discorda, quais são, em sua opinião, os fatores que alimentaram a comparação?
Joaquim Brasil Fontes – A presença de Baudelaire (morto em 1867) na poética de Lautréamont é evidente, embora estejamos diante de sensibilidades muito diferentes: bastaria ver, na obra dos dois, o tratamento dado ao tema da prostituição e o recorte que ambos fazem de Paris, cidade que Walter Benjamin chamará mais tarde de “capital do século XIX”.
E não há talvez escritores tão diferentes quanto Lautréamont (nascido em 1846) e Rimbaud (nascido em 1854): o primeiro é um poeta essencialmente épico e o segundo, um lírico à espreita de epifanias ou iluminações.
No fundo, não sei se Lautréamont pode ser considerado um “poeta maldito” no sentido que damos a esta palavra depois da publicação do famoso livro de Verlaine, que incluiu no seu catálogo de “malditos” o próprio Mallarmé, um poeta-professor de inglês modesto e fechado sobre si mesmo, alheio às aventuras e farras, com sua linguagem hermética, seu experimentalismo e uma imagética radicalmente opostos aos de Lautréamont.
E não sei se damos hoje a “poeta maldito” o mesmo sentido que lhe atribuía Verlaine. Não sei se os que incluem escritores tão diferentes uns dos outros no mesmo catálogo leram realmente as suas obras.
JU – A obra de Lautréamont foi redescoberta pelos surrealistas na primeira quadra do século 20. Em que medida o movimento é tributário do autor? Quais são, para o sr., as conexões entre Os Cantos e o ideário de Breton e companhia?
Joaquim Brasil Fontes – Assinalei acima que os Cantos de Maldoror não foram distribuídos no ano de sua impressão, 1869. Somente em 1874 um francês naturalizado belga, tendo comprado o espólio da livraria que imprimira o livro de Lautréamont, mandou encadernar a edição e a distribuiu. O texto circulou, assim, antes de ser “redescoberto” pelos surrealistas, entre os simbolistas belgas e os chamados “decadentistas” franceses. Léon Bloy leu os Cantos, e o cita no seu romance O Desesperado. Huysmans, autor de Às Avessas, leu Lautréamont e o menciona numa carta famosa. É possível perceber a marca de Maldoror em Alfred Jarry, o criador de Ubu Roi e em outros contemporâneos seus. Podemos, pois, dizer que Lautréamont circulou, digamos subterraneamente, na belle époque, o que Maurice Saillet demonstrou numa série de artigos datados de meados dos anos 1950 e mais tarde reunidos num volume (Les Inventeurs de Lautréamont. Paris: Le Temps qu’il fait, 1992).
Foi durante a 1ª. Guerra que Philippe Soupault redescobriu, por acaso, um exemplar dos Cantos numa livraria parisiense.
A partir de então Lautréamont marcará o futuro movimento encabeçado por Soupault, Breton e Aragon. Contudo, mais do que de “influência” (não aprecio esse conceito) eu falaria de uma presença forte, devoradora, do montevideano na poética surrealista – e não estou pensando apenas na literatura, como também nas artes plásticas. Basta lembrar as pranchas do Maldoror de Dalí e a edição dos Cantos ilustrada por René Magritte.
JU – A prosa de Lautréamont despertou o interesse de intelectuais da envergadura de Foucault e Bachelard, entre outros. A que o sr. atribui esse interesse?
Joaquim Brasil Fontes – Além dos de Foucault e Bachelard, lembro o admirável Lautréamont de Blanchot e o de Marcelin Pleinet, que ainda esperam por tradução no Brasil: abordagens pós-estruturalista, fenomenológico-junguiana, heideggeriana e estruturalista. Lautréamont ergue-se diante dos que o interrogam como o obelisco de 2001: infrangível caroço da noite.
Interrogando os que interrogaram Lautréamont, Leyla Perrone-Moisés escreveu um livro que tem por título A Falência da Crítica.
JU – A despeito da influência exercida em escritores como Murilo Mendes e Aníbal Machado, entre outros, por que a obra de Lautréamont é tão pouco conhecida – e difundida – no Brasil?
Joaquim Brasil Fontes – Muitos não sabem disso, mas Lautréamont sempre teve, entre nós, pequenos grupos de devotos impenitentes. E é possível que os historiadores da literatura brasileira descubram um dia porque o poeta uruguaio não marcou mais profundamente o nosso modernismo, enquanto sua presença, e a do Isidore Ducasse autor de Poesias I e II, é evidente, por exemplo, neste livro-chave do surrealismo francês que é O Camponês de Paris, de Louis Aragon.
JU – No prefácio da edição traduzida pelo senhor, Raul Antelo assinala que [Julio] “Cortázar é, em muitos pontos”, herdeiro efetivo de Lautréamont”. Em sua opinião, essa herança estende-se também a outras vertentes da literatura latino-americana (realismo fantástico, por exemplo), ou fica circunscrita à obra do escritor argentino?
Joaquim Brasil Fontes – Não sei. Infelizmente, não conheço bem a literatura latino-americana.
SERVIÇO
Título: Os Cantos de Maldoror
Autor: Lautréamont
Tradução: Joaquim Brasil Fontes
Editora da Unicamp
Páginas: 328 páginas
Preço: R$ 50,00
Lançamento: dia 6 de maio, a partir das 10 horas, na Livraria Pontes – Rua Dr. Quirino, 1223, Centro, Campinas
Veja entrevista de Joaquim Brasil Fontes.