Docente vê semelhanças entre os processos que desencadearam o Golpe de 64 e a deposição de Dilma Rousseff
Para o filósofo e professor João Quartim de Moraes, o medo dos manifestantes fez o presidente Michel Temer convocar as Forças Armadas, durante os protestos realizados dia 24 em Brasília. Na opinião do docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, a manobra revelou-se tão errática que poucas horas depois foi revogada. Na entrevista que segue, Quartim defende a saída de Michel Temer e a convocação de eleições diretas e vê semelhanças entre os processos que desencadearam o Golpe de 64 e a deposição de Dilma Rousseff.
JU – Como o senhor viu o decreto do presidente Michel Temer para convocação das Forças Armadas e, poucas horas depois, sua revogação?
João Quartim de Moraes – Michel Temer caiu, de novo, no ridículo. Foi covarde e medroso, chamou o Exército por temer os manifestantes. A manobra foi tão grotesca e errática que ele teve de voltar atrás no dia seguinte [25]. Se ele tivesse o mínimo de vergonha, já teria ido embora. É um oportunista. Lembra aquela história do ricaço que é despejado do palacete, por falta de pagamento, e fica agarrado na coluna de mármore.
JU – Que análise o sr. faz do papel do PMDB no contexto da crise ?
Quartim – Temer é a expressão característica do PMBD, um partido que é um balcão de negócios desde o final dos anos 80. A agremiação, que parecia ser uma grande frente democrática partidária de reformas durante a ditadura militar, foi degenerando lenta e gradualmente. O PMDB virou uma doença incurável. Eles foram gangrenando, tomaram a máquina do Estado e jamais triunfaram em eleições. No pleito de 1989, por exemplo, Ulisses Guimarães, que era um homem que tinha outra estatura e outros méritos, teve um desempenho pífio, algo em torno de 3% dos votos, o que não deixou de ser lamentável. O auge do PMDB veio com as diretas-já. Depois disso, o partido virou um cancro incrustrado na máquina legislativa, em todos os seus níveis.
JU – O comportamento de alguns juízes e procuradores tem sido objeto de questionamentos. Que análise o sr. faz dessas críticas?
Quartim – O Judiciário tem esse poder por causa da Constituição de 88. Parecia-nos bom naquele momento. É bom lembrar que éramos prisioneiros da experiência passada. Para nós, à época, o perigo contra o estado de direito vinha das Forças Armadas. Eram mais de 30 anos de golpismo, de Getúlio Vargas a João Goulart, com ataques recorrentes dos militares à Constituição. Estávamos com isso na cabeça e, como consequência, fortaleceu-se o Judiciário. Esse fortalecimento, é importante dizer isto, não era da democracia, que pressupõe, no sentido rigoroso do termo, soberania do povo, escolhas dos representantes pelos representados, etc. Por quê? O STF tem poderes decisivos no Estado.
JU – Quais seriam?
Quartim – Ninguém foi eleito ali, ninguém pode ser demitido. É uma espécie de velho Senado, como no tempo do Império. Seus membros são estáveis, permanentes. Trata-se, portanto, de um poder burocrático, parte integrante da máquina administrativa. É uma anomalia, para a democracia, o fato de um corpo de altos funcionários do Estado deter poderes tão determinantes sobre o curso da República.
JU – O sr. acha que esse quadro pode ser alterado?
Quartim – Não dá para ficar escandalizado com isto. O melhor a fazer é analisar mais detidamente o tipo de regime que temos.
JU – E no caso dos procuradores?
Quartim – Os poderes dados ao Ministério Público, via Constituição, também tinham essa inspiração. Era preciso acabar com o modo como os inquéritos eram produzidos, invariavelmente, por delegados muitas vezes incompetentes, usando sempre o método, digamos, “psicológico”, que nada mais era do que o uso da força e da tortura. Os promotores passaram a ter direito a entrar no inquérito.
JU – Se o fortalecimento era necessário, o que deu errado?
Quartim – O fortalecimento dos juízes e promotores, em certa medida, acabou por alimentar a mobilização de setores da direita, começando com o processo do Mensalão, exaustivamente explorado pelos donos da notícia. Isto acabou por encobrir toda a roubalheira, todo o suborno, inclusive os anteriores.
É sabido, por exemplo, que, para reformar a Constituição e permitir a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1998, houve suborno. Ocorre que não havia a máquina do Judiciário em cima e a corrupção ficou impune.
Em resumo: as intenções para esse fortalecimento eram positivas, inclusive para o controle dos abusos da máquina policial. Ocorre que, depois, eles foram cooptados pela vaga reacionária, pela fúria da pequena burguesia, inclusive porque a classe média via com pouca simpatia essa igualização social. Eles não se conformaram com a ascensão de milhões de brasileiros que estavam na miséria. Havia esse caldo de cultura, que acabou contaminando camadas amplas da pequena burguesia.
JU – Qual a saída para o impasse?
Quartim – Não é nada que você já não tenha escutado: eleições diretas já. Não é uma solução maravilhosa, mas é a única saída. Nessa confusão institucional, se você é democrata, há de concordar com a convocação de eleições. Mas eu duvido que isso ocorra. Não dá para esperar nada de um Congresso vendido, com mais de uma centena de deputados diretamente eleitos, por exemplo, com o dinheiro do Eduardo Cunha. Aquilo está tomado por bancadas reacionárias.
JU – Como o sr. vê a possibilidade de uma solução por via indireta?
Quartim – Não virá ninguém melhor que o Temer. Ele vai tentar implementar a contrarreforma, vai fazer tudo para confiscar direitos dos trabalhadores. Pode até ser que apareça alguém sensato e deixe as coisas minimamente ajeitadas para 2018, mas eu também duvido. A manobra é para tirar Lula do páreo, até porque ele é favorito.
JU – O sr. vivenciou de perto o golpe de 64, chegando inclusive a exilar-se. Nesses tempos de crise política aguda, em que novos fatos e denúncias lançam luz sobre Temer e seu grupo político, o sr. endossa a tese de que a deposição de Dilma Rousseff foi decorrente de um golpe?
João Quartim de Moraes – Não tenho dúvida. A diferença é que agora foi um golpe parlamentar, orquestrado e estimulado pelos grandes meios privados de comunicação – as redes de tevê e os grandes jornais, os chamados barões da notícia. Não foi apenas a Globo, embora seja adversária temível e a mais poderosa. Ela sabe representar muito bem e, com qualidade, movimenta as peças como poucos.
Outro componente foi o macartismo judiciário comandado pelo juiz Sérgio Moro. Você o abraçando e cochichando com o Aécio, com o Temer, etc. Moro é o ídolo dessa massa que formou a base social do golpe. É o nome mais em evidência. A gente cansa de vê-lo, deslumbrado, nas redes sociais. Ao mesmo tempo em que esmiúça a vida de Lula, ele ignora, para ficar apenas em um exemplo, o gangsterismo pesado de Aécio Neves. É emblemática a história do helicoca, do senador [Zezé] Perrela [PMDB], da bancada mineira aecista.
Na cabeça de Moro, é muito mais grave você ter um pedalinho ou querer comprar um tríplex do que ser flagrado com um helicóptero carregado de cocaína. Nesse contexto, a absolvição [ontem, 25] de Cláudia, mulher de Eduardo Cunha, é um escárnio.
Foram esses os elementos condutores do golpe. Eles alimentaram uma base social de dinâmica fascista. Os “coxinhas”, como são chamados hoje os manifestantes de direita, são as marchadeiras de ontem, do pré-golpe de 64.
JU – O que o sr. entende como dinâmica fascista?
Quartim – Entre as muitas definições de fascismo, a mais consistente no campo histórico-concreto é a que fala da reação intolerante, fanática e agressiva. Essa reação tem profundo impacto social. É quando a direita toma conta da rua. Assistimos a essa direita nas ruas de junho de 2013 até a derrubada da Dilma. Agora, a rua virou. Não por acaso, a esquerda está apanhando. Para a esquerda, eles endereçam tiros e bombas.
JU – Quais são os pontos convergentes com 64, guardadas as diferenças de cenários?
Quartim – A primeira convergência é a mobilização fascista de massa. É o ódio e a reação dominando as ruas. A Dilma tinha medo de falar por causa dos panelaços. Em 1964, era muito parecido.
JU – E as diferenças?
Quartim – A principal é que não houve instrumentalização das Forças Armadas para desfechar o golpe.