Bastiaan Philip Reydon vê retrocesso no âmbito da propriedade e uso da terra
Estudando a questão fundiária do Brasil desde os anos 1970, o professor Bastiaan Philip Reydon, do Núcleo de Economia Agrícola (NEA) da Unicamp, mostra-se receoso com o momento político no país, quando o governo acena com uma série de concessões no âmbito da propriedade e uso da terra, como por exemplo, ao capital estrangeiro. “É evidente o retrocesso com o atual governo, que está concedendo um monte de terras das reservas a particulares e tomando medidas da pior forma possível. Já vimos tempos sombrios antes e o cenário agora é igual, não muda nada. Acho esse momento político importante porque, se formos para um lado, vamos às baratas; se formos por outro lado, temos a chance de construir um país sustentável.”
Bastiaan Reydon e seu Grupo de Governança de Terras, do Instituto de Economia, organizaram de 7 a 9 de junho um seminário reunindo especialistas, agentes públicos e privados e a sociedade civil para discutir principalmente a regularização fundiária, com seis mesas: governança de terras no Brasil, a problemática da venda de terras para estrangeiros, terras públicas, a MP 759/2016, regularização fundiária urbana e cadastro e registro. (Veja, nesta página, depoimentos de outros participantes do seminário em vídeos produzidos pela TV Unicamp). Na abertura do evento foi lançado o livro Governança de Terras: Solução para o problema fundiário brasileiro, organizado pelo docente do IE e por Vitor B. Fernandes e Ana Paula Bueno. Foram lançados ainda o Curso de Ensino à Distância sobre Governança de Terras no Brasil, e o documentário “De quem é a terra?” (20 min), produzido pela Quebra Cabeças Filmes e que pode ser conferido aqui (https://vimeo.com/217099579).
Segundo Reydon, o livro traz uma coletânea de artigos produzidos por seu grupo de pesquisa e começa discutindo a governança de terras, conceito que não vigora no Brasil. “Eu só vim a entender qual é o gargalo brasileiro em meu pós-doutorado, vinculado ao Centro de Tendência da Terra da Universidade de Wisconsin, que incluiu um ano estudando a gestão de terras no Afeganistão. Aqui, nós fomos construindo um quadro legal e institucional não integrado no todo. Por exemplo: quem garante o direito à propriedade, em tese, são os cartórios, e cada cartório de município possui uma regulação. À terra pública, dentro da área urbana, quem concede o direito é o município; se for fora, depende: é o Incra, se terra de âmbito federal, ou o Instituto de Terra de cada estado, se for estadual. Na transição de terra rural para urbana, falta um órgão regulador, havendo prefeituras que definem todo o território como urbano, visando ao IPTU.”
O professor da Unicamp considera que a questão da governança de terras é uma premissa básica para o Brasil, com um quadro legal único, ao invés de leis diferentes para cada aspecto da propriedade e uso da terra. “Não se trata de termos um órgão único, mas de reunir todas essas instâncias de uma forma articulável. Nossa tese é de que só temos a propriedade legal, de fato, a partir da Lei 10.267, de 2001, estabelecendo que todos os proprietários precisam fazer o georreferenciamento de sua propriedade. A boa governança é aquela que consegue estabelecer limites, que define claramente a propriedade e o uso da terra. Com isso, temos as condições básicas, ainda que não suficientes, para o desenvolvimento econômico.”
Uma base fundamental, na opinião de Bastiaan Reydon, é a criação de um bom cadastro, visto que existem dez no país, que não se conversam. “Se queremos construir um país sério, estamos no momento, e o cadastro permite descobrir inclusive lavagem de dinheiro. O Brasil, historicamente, foi construído à base da rapinagem, expulsando indígenas e ocupando, ocupando, ocupando… essa mentalidade não acabou, o que acabou foi a terra. É verdade que avançamos muito com a Lei 10.267, que obriga os cartórios, no caso de registro de imóvel (hipoteca, venda, compra), a fazer o georreferenciamento e obter a certificação junto ao Incra. Com isso, cada propriedade representa um polígono e vai se constituindo um mosaico. Este e outros esforços realizados nos últimos governos permitiram o georreferenciamento de cerca de 65% do território nacional”.
O professor da Unicamp vê na regularização fundiária mais um grande entrave, devido ao quadro legal e institucional confuso, com muita gente vivendo de maneira ilegal. “Estamos concluindo uma pesquisa em Campinas e chegamos a um índice superior a 50% de residências informais, ou seja, que não estão formalizadas junto ao cartório de registro de imóveis, por motivos variados. Temos algumas experiências boas no país, como o programa Terra Legal, para regularizar todas as áreas federais, através da Serfal (Secretaria Extraordinária de Regularização Fundiária da Amazônia Legal). A meta é regularizar 57 milhões de hectares, mas são terras que já estavam cadastradas como patrimônio da União. Existem as terras devolutas, sem cadastro, que ninguém sabe dimensionar”.
Outro tema central apontado por Reydon é o Imposto Territorial Rural (ITR), mas que em sua visão é tratado com total descaso. “Se o IPTU funciona razoavelmente bem em algumas grandes cidades, o ITR praticamente não é cobrado. O problema é bem antigo e mais recentemente, no governo Lula, criou-se a possibilidade de um convênio entre município e governo federal, para que a prefeitura arrecade o imposto ficando com 100% do recurso. Houve melhora em alguns municípios que aderiram ao convênio, mas também complicações, por conta de prefeituras que colocaram o valor do imposto lá em cima, cobrando demais. O fato é que se arrecada pouquíssimo. Um senhor de chapéu e cinto de vaqueiro, vindo do Pará a Brasília, pediu a palavra durante um seminário: 'Eu pago menos ITR sobre minha terra do que eu gasto com TV a cabo. Isso é um absurdo!', protestou.”
Aos estrangeiros
A venda de terras aos estrangeiros é um ponto em que o Brasil piorou, conforme o docente do IE, que lembra que em 1971, na ditadura militar, criou-se uma regra bem restritiva. “Os estrangeiros não podiam deter mais de 40% do território ou de 10% no caso de um único proprietário (se quisessem mais, precisavam de autorização do Senado). Também era proibida a aquisição de áreas em toda fronteira nacional. Quando Fernando Henrique Cardoso promoveu a desestatização do Estado, a lei foi reinterpretada e transformada em parecer da AGU (Advocacia Geral da União), que determinava sinteticamente: havendo um sócio brasileiro, a terra não é considerada como de estrangeiro.”
Reydon acrescenta que no período de 2004 a 2009, tanto pela crise de 2008 quanto por grandes demandas de produtos agrícolas e outros fatores, surgiu no mundo o movimento chamado Land Grab (agarrar a terra), e os países onde os estrangeiros mais compraram terras foram Brasil, vários da África, Argentina e Colômbia – regiões com terras ainda disponíveis. “Quando este movimento foi percebido, em 2010, houve protesto inclusive dos proprietários brasileiros, e voltou a prevalecer a velha interpretação da lei de 1971; isso em tese, porque se sabe que os estrangeiros continuam comprando terras de várias maneiras. Como não temos cadastros, ignoramos qual é a proporção, mas sabemos que estão colocando propriedades em nome de 'laranjas' brasileiros.”
De acordo com o professor do IE, a solução para isso, antes de ficar discutindo o que a lei deve prever, é criar um bom cadastro, o que julga fácil em “tempos de drones”. “Filma-se tudo, conferindo de quem é a terra e, se não é de ninguém, é do Estado. A questão não é operacional, é de vontade política. Na Holanda você senta ao computador, paga um euro e pergunta “quais são as terras do rei”; ou então indica no mapa: “essa terra é de quem?”. Temos um sistema eletrônico de votação nas eleições que, até prova em contrário, é imune a fraudes. Temos o cadastro de todos os automóveis, cujos proprietários conhecemos apenas digitando o Renavam [Registro Nacional de Veículos Automotores] – e veja que a terra é fixa, não muda de lugar como um carro.”
Terras públicas
Bastiaan Reydon estima, com base em dados referentes a 2013, que dos 800 milhões de hectares do território brasileiro, 76 milhões de propriedades privadas e 37 milhões de propriedades públicas estão certificadas com georreferiamento registrado em cartório. “Mas temos as terras não certificadas: reservas indígenas, assentamentos do Incra, áreas quilombolas, áreas de preservação federal e estadual. Tudo isso soma cerca de 415 milhões de hectares – mais da metade do território – de terras públicas, que já estão ocupadas. Mas uma família que vive há cinco gerações numa propriedade, pode perder perde o direito à terra porque um antropólogo encontrou ali vestígios de objetos indígenas. É justo? É, do ponto de vista da dívida que temos com os indígenas no Brasil. Mas ao mesmo tempo não é, pois o sujeito passou cinco gerações em terra adquirida de boa fé.”
O professor da Unicamp aponta outro ponto desfavorável à boa governança, que é a existência de terras devolutas, tanto federais quanto estaduais, que por serem desconhecidas tornam-se alvo de apossamento por pessoas físicas mediante grilagem. “A proposta básica que venho defendendo não é a de criar um órgão único para gerir a questão da terra, mas seguir a proposta da economista Elinor Ostrom, Nobel de Ciências Econômicas de 2009, para a gestão das águas: reunir todos os órgãos envolvidos e mostrar que ninguém está certo ou errado, que precisamos somar esforços para criar um conjunto de regras que seja comum a todos. A governança de terras precisa ter um bom cadastro e títulos envolvendo uso, valor da propriedade e cobrança de ITR. É o conjunto que pode gerar o desenvolvimento sustentável.”