Comunidade acadêmica discute sobre como usar informações geradas pelas tecnologias digitais
Imagine a seguinte cena hipotética. Um carro autônomo, aquele que dispensa a presença do motorista, está transitando por uma via expressa, quando de repente surge um pedestre à sua frente. Programado para tomar decisões em situações desse tipo, o sistema responsável pelo comando do veículo tem duas alternativas: frear abruptamente, salvar o transeunte e colocar em risco a integridade física dos seus ocupantes ou seguir em frente, atropelar o passante e proteger a vida dos passageiros. Qual opção deve prevalecer? Dilemas como este, cada vez mais frequentes, são objeto de estudo de um campo relativamente novo da ciência, denominado “Ética de dados” (no inglês, Data Ethics). Pesquisadores de diferentes áreas (cientistas da computação, biólogos, médicos, químicos, engenheiros e cientistas sociais, entre outros) têm discutido em todo o mundo sobre como utilizar a profusão de dados gerados pelas tecnologias digitais de forma construtiva, segura e ética.
No último dia 20 de junho, o assunto foi debatido pela primeira vez na Unicamp, em um workshop que reuniu pesquisadores de diferentes campos do saber. A iniciativa foi do Centro de Pesquisa em Ciência e Engenharia Computacional (CCES, na sigla em inglês), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). De acordo com vice-diretora do CEPID-CCES, Claudia Bauzer Medeiros, que também é docente do Instituto de Computação (IC) da Universidade, a Ética de Dados é uma área da ciência relativamente nova, criada há não mais de dez anos.
O tema passou a ser investigado após o surgimento do chamado Big Data, termo cunhado para designar o volume crescente de dados digitais (textos, fotos, vídeos, documentos etc) que precisa ser armazenado, organizado, protegido e recuperado usando novas técnicas computacionais. “Com o Big Data, foram criadas oportunidades para melhorar a vida das pessoas, mas também de invadir as suas privacidades. Este conflito tem motivado profissionais da computação e de várias outras áreas a discutir formas de aproveitar melhor a abundância de dados disponíveis no universo digital e de tentar evitar que eles sejam utilizados de maneira indevida”, explica.
A professora Claudia Bauzer Medeiros entende que o título mais adequado para o evento seria “Ética no uso de dados”. “No entanto, isto não é um problema novo. A novidade é exatamente a dimensão digital dos dados, que vem criando questionamentos quanto a direitos individuais à privacidade, segurança e outros. O título permite enfatizar esta diferença”, diz. A fartura de informações disponíveis na web, continua a docente, pode ser muito útil, por exemplo, ao trabalho de cientistas e jornalistas.
Estes, obviamente, precisam ter responsabilidade para filtrar e divulgar os dados que considerem relevantes. Por outro lado, na tarefa de buscar informações, esses profissionais, bem como os demais usuários da web, deixam marcas dos caminhos que percorrem, ou seja, dos seus cliques. “Isso pode ser revelador de hábitos e costumes das pessoas. São dados que também podem ser usados de forma positiva ou negativa”, reforça a especialista.
O mesmo acontece quando as pessoas fazem compras via internet. Rastreado, o comportamento dos internautas pode desvendar o hábito de consumo de um dado segmento e gerar campanhas promocionais por parte de diferentes marcas de roupas, calçados e eletroeletrônicos, para ficar em apenas três exemplos. Mas também pode ser um indicador do padrão de riqueza de certos consumidores e dar ensejo à prática de crimes. “A discussão em torno dessas questões não é trivial. O que está no foco do debate é como proteger a privacidade e a segurança das pessoas, corporações, instituições e governos, sem comprometer a circulação de dados importantes ao desenvolvimento da ciência e da sociedade”, pontua Claudia Bauzer Medeiros.
Uma ideia que vem ganhando corpo entre os estudiosos do problema, informa a docente do IC, é o estabelecimento de protocolos que imponham diretrizes para o uso dos dados gerados pelas tecnologias digitais. Trata-se de uma missão que vai requerer muita reflexão e bom senso. A vice-diretora do CEPID-CCES dá um exemplo da complexidade da tarefa. “Quando falamos em proteger, estamos falando também em dificultar o acesso aos dados. Impedir o acesso ao exame de sangue de uma pessoa, assegurando assim a sua privacidade, também é impedir que a ciência possa utilizar as informações contidas no documento para desenvolver pesquisas e eventualmente chegar à cura de doenças. Encontrar o equilíbrio entre essas duas necessidades será um grande desafio”, infere Claudia Bauzer Medeiros.
A docente lembra que a Ética de Dados se desdobra em subáreas, como a Ética dos Algoritmos, que cuida de analisar como as máquinas interpretam os dados. É nesse caso que se insere o exemplo dado no início desta reportagem. Na hipótese de o sistema robotizado do carro autônomo decidir atropelar o pedestre, quem seria responsabilizado judicialmente pelo acidente? O fabricante, o programador da máquina ou proprietário do automóvel? “Como se vê, temos questões muito importantes que precisam ser discutidas antes de chegarmos a um consenso”, considera.
Questão institucional
Diretor do CEPID-CCES, o professor Munir Salomão Skaf, que também é pró-reitor de Pesquisa da Unicamp, afirma que as questões relativas à Ética de Dados têm merecido atenção por parte da Universidade, bem como das demais instituições estaduais de ensino superior de São Paulo. Segundo ele, as universidades carecem de uma política institucional para o gerenciamento dos dados gerados por elas. “Universidades estrangeiras, bem mais antigas que as brasileiras, já vêm adotando iniciativas do gênero, de modo a preservar os dados como patrimônio científico”, observa.
O desafio, mais uma vez, é definir um modelo que permita o armazenamento, a segurança, a rastreabilidade e o acesso às informações que devem ser compartilhadas, mas também a proteção daquelas tidas como sigilosas. No segundo caso estão os dados relacionados, por exemplo, à preservação do patrimônio intelectual. “A demanda por uma política institucional nessa área está surgindo agora no Brasil. A Fapesp está organizando diretrizes nesse sentido, com a participação das universidades estaduais paulistas e de outras instituições, como a UFSCar, UFABC e Unifesp”, informa Skaf.
Assim como a professora Claudia Bauzer Medeiros, o pró-reitor de Pesquisa da Unicamp assinala que as questões relativas à Ética de Dados não se restringem ao âmbito da computação. “Trata-se de um problema da computação, mas também das engenharias, da química, da biologia, da medicina, das ciências sociais. A contribuição de todas as áreas do saber é que fará com que avancemos em direção à formulação de uma política institucional de gestão dos nossos dados”, considera Skaf.