Pesquisa analisa vertente artística, do início transgressor até sua incorporação pela indústria cultural
Uma falha digital, uma quebra de fluxo, um erro que evidencia a vulnerabilidade do sistema. Estes são alguns dos termos utilizados para definir o glitch. No campo artístico, o glitch virou vertente, a Glitch Art, com seguidores, festivais e controvérsias. Seu caráter subversivo inicial foi progressivamente dando lugar a uma visualidade reconhecível e, até mesmo, consumível. O pesquisador Renato Petean Marino analisou criticamente essa trajetória, a fim de compreender o lugar da Glitch Art no contexto das artes visuais. “A Glitch Art tem essa ideia de ruptura com o padrão homogêneo e plástico da tecnologia”, pontuou Marino. A pesquisa orientada pelo professor Edson do Prado Pfützenreuter deu origem à dissertação de mestrado “Rupturas codificadas - Uma análise crítica da glitch art”, defendida no Instituto de Artes (IA) da Unicamp.
O pesquisador fez um levantamento de mais de 50 artistas, buscando extrair as características básicas da vertente. “Procurei o que era recorrente e o que destoava do comum, tentando enquadrar o que é mais próprio da Glitch Art”. A partir desse primeiro panorama, ele selecionou 15 trabalhos para uma análise mais profunda, sempre relacionando as obras à arte contemporânea e à história da arte.
Segundo ele, o caráter inovador e subversivo com que a Glitch Art se insere no campo da tecnologia, não tem o mesmo impacto em outras esferas da arte. “Dentro da arte a ruptura com o padrão é uma prática comum. Por mais inovadora que seja, logo se transforma em um repertório reconhecível e acaba criando uma nova codificação”, explicou Marino. O autor citou artistas como Marcel Duchamp (1887-1968) e Jackson Pollock (1912-1956), que romperam com os padrões estéticos de sua época e estabeleceram um novo conjunto de signos, hoje reconhecíveis e incorporados ao sistema.
Processo ou produto
Segundo Marino, um dos pontos nevrálgicos no debate que circunda a Glitch Art é a oposição estabelecida entre o processo de produção e as qualidades estéticas do produto final. Para grande parte dos artistas, fazer Glitch Art não é uma tentativa de produzir uma obra de arte, mas um posicionamento politico contra os padrões impostos pela tecnologia. “Para esses artistas o importante é o processo, é corromper o aparato, desconstruí-lo, ir atrás do elemento falho. A ideia não é produzir algo esteticamente relevante, mas produzir esse enfrentamento”, explicou.
Muitos desses trabalhos vêm acompanhados por tutoriais com objetivo de disseminar suas técnicas de subversão, ensinando a corromper programas, arquivos, aplicativos, softwares, etc. Mesmo trabalhos exibidos em espaços formais dedicados a obras de arte, não costumam mostrar a imagem pronta, mas se construindo. “O objetivo é compartilhar o processo e expor o interior da máquina desconstruída”, relatou o pesquisador.
Apesar da relevância atribuída ao processo, as qualidades visuais da Glitch Art acabaram ganhando uma força simbólica independente. Conforme explicou Marino, as qualidades visuais facilmente reconhecíveis como cor, linhas, repetições, formas, acabaram por representar a própria Glitch Art e tornaram-se signos de ruptura. “Talvez hoje, a Glitch Art seja muito mais caracterizada por representar rupturas, por esses signos, do que pelos processos de desconstrução em si”, argumentou.
O pesquisador constatou ainda que o visual glicht começou a aparecer em produtos de consumo como roupas, almofadas e móveis. Essa incorporação pela indústria cultural dos signos de ruptura estabelecidos pela Glicht Art intensificou o debate. Os defensores da vertente como espaço político de subversão chegam a negar as próprias qualidades estéticas dos seus trabalhos. Por outro lado, alguns artistas, que raramente conseguiam comercializar o que produziam, começaram a fazer os produtos de consumo os mais banais possíveis com suas imagens.
Outra ideia descontruída pelo autor é de que o glicht seria algo espontâneo. Ele rebate a ideia de que existiriam trabalhos “puros” (“pure glicht”), caracterizados por uma falha acidental, e trabalhos “semelhantes” (“glicht alike”), onde a falha seria provocada. Para ele o próprio fato de estar procurando uma falha digital ou estar preparado para capturá-la, já impede classificá-la como acaso. “Obviamente não há falha, é feito pra parecer glitch”, explicou. Dessa forma, o que prevalece são os signos, mais do que o processo de ruptura em si. “O glitch, hoje, é mais uma manifestação audiovisual que nos remete a uma falha digital, do que uma falha em si.”
Veja vídeo:
Takehsi Murata - Pink Dot (2007) – subverte o longa-metragem Rambo (1982). Pioneiro na técnica datamoshing, que se caracteriza pelo efeito de animação e transição de imagens, onde cada corte desencadeia novos efeitos.
Veja mais em: Daniel Temkin - Ceci n’est pas une glitch by the author (2010)