A relação do Japão com o “estrangeiro” vem de longa data, e atualiza-se no pós-guerra com a tragédia da bomba atômica, desastre que transformou o país na primeira nação pós-apocalipse nuclear, e esse fato foi e é determinante na relação com a tecnologia.
Talvez seja um paradoxo do imaginário ocidental: o Japão ter uma produção significativa que não é identificada imediatamente como ficção científica.
A tradição literária da ficção científica data do século XIX, do Bakumatsu (últimos anos do período Edo), segundo o pesquisador de ficção científica Yasuo Nagayama (2009), e acredita-se que teve início com a chegada do almirante Perry e o contato com os artefatos industriais do ocidente. Segundo Nagayama, a partir de 1959, quando começou a ser publicada a revista SF Magazine, traçou-se um novo limite para classificar a ficção científica japonesa. Antes, esse limite era fixado no final da guerra (1945), e tudo que podia ser classificado no gênero, antes dessa data, era comumente chamado de “SF clássica”.
Autores como Unno Juza, Ōshita Uda [1], entre outros representantes dessa época, permaneceram ativos mesmo depois da guerra, e seus sucessores imediatos, Tezuka Ossamu, Kayama Shigeru, entre outros, apesar de terem recebido influências da ficção científica estrangeira, já tinham sido fortemente influenciados pela chamada ficção científica clássica japonesa, de antes da guerra.
Por esse motivo, podem também ser enquadrados no conceito de ficção científica clássica, pois mesmo sendo escrita em um período no qual o gênero ainda não estivesse definido, a ficção clássica está presente nas obras desses novos autores (Tezuka, Kayama) e trazem em si a força que recorda os autores mais antigos, de um tempo em que ficção científica ainda era um “conceito inexistente”.
Nesse período de ficção científica clássica podemos incluir até mesmo Taketori monogatari (1987, do diretor Kon Ishikawa), que recentemente teve uma versão em animação feita pelo diretor do Studio Ghibli, Isao Takahata, chamado O conto da princesa Kaguya (2013). Ambos derivam de O conto do cortador de bambu, um relato que data do século X e já trazia elementos do que hoje chamamos de ficção científica, uma vez que a princesa é uma alienígena, vem da lua.
No entanto, só no ano de 1988 a atenção do ocidente foi conquistada por uma animação japonesa de ficção científica, Akira, que completa trinta anos de lançamento em 2018. O mangá original (1982 a 1990), mais complexo, já havia completado trinta e cinco anos em 2017. Mas, mesmo hoje, se perguntarmos a um público com algum conhecimento sobre a produção audiovisual japonesa o que seria a “ficção científica japonesa”, provavelmente obteríamos como resposta Akira ou Ghost in the shell (1995). Contudo, a produção japonesa dentro do gênero possui vários outros filmes e séries com repercussão no ocidente, mas cujo imaginário, como falamos anteriormente, não evoca imediatamente o conceito.
Apesar da influência forte da animação, há filmes significativos live-action e os tokusatsus (efeitos especiais). A ficção científica nunca esmoreceu no Japão, principalmente graças à animação, à tradição de transposição recorrente de mangás para a tela grande e ao sucesso de grandes franquias de tokusatsu, como (apontaremos adiante).
Uma das principais características da ficção científica japonesa quando se fala em animação ou cinema é a distopia. Vamos apontar algumas produções e suas peculiaridades de enredo.
Gojira (1954, do diretor Ichirō Honda) aborda testes nucleares feitos pelos americanos que revivem um réptil de 50 metros que lança raios radioativos. Chamados de kaiju eiga (filmes de monstros), surgiram como forma de protesto contra as explosões nucleares, segundo Novielli (2007). O monstro era uma mistura de gorila e baleia (kujira, em japonês), por isso Gojira. Em 2016 teve uma nova versão (Shin Gojira/Godzilla resurgence), lançada pelo famoso diretor Hideaki Anno (Neon genesis evangelion) e um dos mais prestigiados supervisores de efeitos especiais Shinji Higuchi (Shingeki no kyojin/Attack on titan).
Gojira e Ultraman ainda mantêm uma carreira de sucesso no Japão pois, através da metáfora de monstros, representam o imaginário dos perigos reais que circundam o arquipélago japonês (China, Coreia do Norte) e o pesadelo nuclear.
Outro filme (na verdade, trilogia), já na linha da distopia, seria Nijūseki shōnen/20th century boy (do diretor Yukihiko Tsutsumi). A primeira parte é de 2008 e as duas seguintes são de 2009 (janeiro e agosto), baseadas no mangá homônimo de bastante sucesso dentro e fora do Japão. O enredo gira em torno de amigos que, na década de 1960, escrevem um livro sobre uma gangue que dominaria o mundo e registram essa história em um caderno, o “livro da profecia”. Anos depois, o que foi previsto começa a acontecer, e eles se unem para descobrir quem está usando o livro.
Com uma temática alienígena, temos Kiseijū (2014, do diretor Takashi Yamazaki), uma história de um adolescente com um parasita alienígena no corpo, que é a solução para acabar com a invasão alien responsável por assassinatos pelo mundo. Baseado também em um mangá.
Já Casshern (2004, do diretor Kazuaki Kiriya) é também uma distopia e baseada em mangá, passada no final do século XXI. O mundo encontra-se devastado e à beira de extinção por conta das guerras química, biológica e nuclear. Um cientista faz uma descoberta que pode ser tanto a salvação como a destruição do que resta da raça humana.
E, recentemente, também destacamos a adaptação para o cinema, não muito bem recebida pela crítica, do mangá Terra formars (2016, do diretor Takashi Miike), que descreve a tentativa de colonização de Marte por conta da superpopulação da Terra, mas cria uma super-raça de insetos que pode destruir a raça humana.
Há também o que podemos chamar de um “lado B” da ficção científica japonesa, exemplificado por Tokyo gore police/Tōkyō zankoku keisatsu (2008, do diretor Yoshihiro Nishimura). Esse é um filme co-escrito por japoneses e americanos, situado em um futuro no qual o Japão está caótico e um cientista louco cria um vírus que transforma as pessoas em mutantes monstruosos. A polícia japonesa foi privatizada e cria-se um esquadrão especial ‑ quase militar ‑ para exterminar os mutantes, utilizando-se de métodos pouco convencionais como sadismo, muita violência e execuções em plena rua.
No terreno da animação, a produção é farta, começando pelos já citados Akira e Ghost in the shell. Acrescentaríamos ainda Metropolis (2001, do diretor Rintaro), baseado no mangá homônimo de Ossamu Tezuka, Tetsuwan atomo (Astro boy) e Cyborg 009, também criações de Tezuka que abordavam as aventuras de máquinas tentando se adaptar ao mundo. Alia-se aí a própria história pessoal de Tezuka, que sofreu bullying quando criança, somada ao fascínio pela ficção científica ocidental.
Podemos destacar também Toki o kakeru shōjo/A garota que conquistou o tempo (2006, do diretor Mamoru Hosoda), baseado em famoso escritor de ficção científica do Japão, Tsutsui Yasutaka, também autor de Paprika (2006, dirigido por Satoshi Kon), Summer wars (2009, do diretor Mamoru Hosoda), Cowboy bebop (2001, de Shinichiro Watanabe, Hiroyuki Okiura e Yoshiyuki Takei). Sem contar a criação (inacabada) de Hideaki Anno, o complexo Neon genesis evangelion (1995) que trouxe a distopia na ficção científica para um novo patamar com sua trama religio-político-psicológica envolta pela tecnologia.
Outras produções audiovisuais que mereceriam destaque seriam os doramas (nosso equivalente das novelas) e os tokusatsus. No primeiro caso, assim como os filmes, há muita inspiração em livros e games. Podemos citar Mirai Nikki (inspirado no mangá homônimo exibido na primavera de 2012/Japão – 11 episódios) contando a história de um garoto desajustado que ganha de um deus o poder de prever o futuro no seu diário; Zettai Kareshi (inspirado no mangá homônimo de Yū Watase- a mesma autora de Fushigi Yūgi – exibido na primavera de 2008/Japão – 11 episódios) que conta a história de uma jovem que ganha um protótipo de um namorado andróide ideal; e Andou roido (Ando lloyd) ~A.I. knows love? (criação original para a TV – exibido no outono de 2013/Japão – 10 episódios) no qual um cientista morre e deixa um andróide para proteger a esposa; e a série médica JIN (2009 a 2011- 22 episódios em duas temporadas) no qual um médico é transportado para a era Edo. Um dos poucos que não envolve diretamente romance dos protagonistas.
No caso do tokusatsu, uma abreviação de duas palavras, tokushu satsuei (efeitos especiais), daí surgiram as séries chamadas de super sentai (super esquadrões) como Changeman e Flashman. No Japão até hoje são franquias de grande sucesso e apresentam um filme anualmente com o crossover da equipe que termina com a sucessora.
O mesmo acontece com a “família Kamen Rider” (Kamen Rider Den-O, Kuuga, Black, Kabuto, entre outros, através das décadas) que têm, desde Black Kamen Rider, uma relação com as motocicletas e as máscaras (em muitos casos, similar a inseto) e os “metal hero”, como Metalder, Spielvan, Jaspion, Sharivan, Jiban, Gaban, Shaider e Jiraya, por exemplo.
E existem ainda os outros heróis como Cybercops, Machine man e Patrine, que não se encaixam nas categorias acima. Utopias construídas em cima de alguma distopia iniciada por algum vilão extra-terrestre ou não, ou vindo de outro tempo, apresentam ensinamentos de valores da sociedade japonesa, como trabalho em equipe, proteção do meio ambiente, entre outros.
Toda ficção é metáfora. Ficção científica é metáfora. O que a diferencia de outras formas de ficção parece ser seu uso de novas metáforas, tiradas de certos grandes dominantes da nossa vida contemporânea ‑ ciência, todas as ciências e tecnologia, e a perspectiva relativista e histórica entre elas. A viagem espacial é uma entre essas metáforas; então é uma sociedade alternativa, uma biologia alternativa; o futuro é outro. O futuro, em ficção é uma metáfora. (Le Guin, 1979, p. 159, tradução nossa).
Como Le Guin diz, qualquer ficção é uma metáfora, o futuro é uma ficção (pois ainda não o é) e, portanto, é uma metáfora. A questão é: uma metáfora de quê? Ou a serviço de quê? No caso da ficção japonesa, olhando quantitativa e qualitativamente, muito tem a ver com uma utopia-distópica. Segundo Takahashi Taketomo no livro O pensamento utópico no Japão (tradução nossa), a palavra carrega uma ambiguidade e uma contradição, pois coloca que a palavra utopia pode ser derivada tanto do grego ou (não) + topos (lugar) ou do conceito platônico de “eutopia” (lugar ideal). Logo, poderia ser um lugar que, por ser ideal/bom, não estaria em lugar nenhum.
Essa reflexão é útil porque, na contemporaneidade, as utopias deram lugar às distopias, mais de acordo com o mal-estar e vazio dessa “pós-modernidade” atual. O recente anime da Netflix, Blame, parece querer recuperar o “espírito cyberpunk” quando coloca um lobo solitário, Killy, para lutar contra a extinção da raça humana em um mundo controlado por máquinas. Uma outra indicação de que seria um momento de repensar a retroalimentação de influências e do Japão como um inspirador de um talvez “renascimento” do cyberpunk, seria o remake americano do cultuado Ghost in the shell. Sub-gênero da ficção científica que parece também retomar fôlego com a sequência de Blade runner (Blader runner 2049) com lançamento previsto para outubro de 2017.
Depois desses exemplos – poucos, pois a produção japonesa é muito vasta –, podemos tentar traçar um certo “perfil” nas produções audiovisuais japonesas de ficção científica para incentivar e sugerir discussões. Apresentamos quatro segmentos dessas produções: cinema live, animação (cinema e séries), doramas (novelas) e tokusatsus. A tecnologia, a ciência, desempenham papéis diferentes no desenvolvimento dos enredos e das tendências e, contrariamente ao ocidente, muito raramente apresentam um final “redondo”, feliz ou até mesmo sequer um “fim”.
O cinema segue a tendência distópica de apresentar, via metáfora de ciência, críticas e protestos (como nos primórdios dos Kaiju eiga) com relação à sociedade atual. Os animes exploram muito mais as possibilidades tecnológicas, como em Psycho-pass, Ghost in the shell ou Blame, ou ainda um mundo físico totalmente modificado, como em Berserk, mas com ênfase na distopia – o site anime planet tem como filtro para busca de animes a categoria “distopia”, e aparecem mais de trinta com esse filtro, entre os demais destaques.
No gênero doramas, a ênfase é positiva, assertiva de como a tecnologia pode ajudar, principalmente em relacionamentos humanos do homem/mulher com a máquina, relativizando o conceito de humano em termos afetivos. A máquina não ameaça, mas tem uma imagem de companheirismo e até de amor, como em Zettai kareshi e Ando roido, e também aparece dessa forma em séries como Chobits e Saber marionette, como se a máquina, em si, não carregasse o bem ou mal, mas fosse corrompida pelas grandes corporações, como metáfora do próprio Japão.
E, por fim, no gênero tokusatsu, temos uma visão assertiva da tecnologia como uma ferramenta para combater o mal, seja ele tecnológico ou não, pois ao contrário dos super-heróis ocidentais, os heróis do tokusatsu precisam de algum gadget (cinto, telefone etc) que acione o seu poder, ou esses foram recebidos de alguma divindade (Garo, Patrine etc), resgatando uma tradição do kojiki (registro dos contos antigos – livro de história/mitologia mais antigo do Japão), no qual os deuses Sukunahiko no Mikoto e Oomunaji no Mikoto trazem do outro mundo (Tokoyo) técnicas agrícolas e ajudam o Japão primitivo a prosperar.
Ou seja, a relação do Japão com o “estrangeiro” vem de longa data, e atualiza-se no pós-guerra com a tragédia da bomba atômica, desastre que transformou o país na primeira nação pós-apocalipse nuclear, e esse fato foi e é determinante na relação com a tecnologia. Por esse motivo, como Nagayama destaca no início deste texto, a ficção científica antes e depois da guerra tem significativas diferenças.
A narrativa do pós-guerra, com Ossamu Tezuka como impulsionador desse imaginário tecnológico no terreno da animação, adquire ares sombrios. Não exatamente com a tecnologia, pois podemos ver que a “máquina”, em si, não é um fator de medo, como na narrativa ocidental (Eu, robô, Matrix, entre outros). Pelo contrário, com uma tradição xintoísta que reverencia o inanimado, o metal da máquina, por si só, não representa ameaça, mas sim “a corporação”.
Tanto que no mangá de Ghost in the shell, logo no início, diz-se que o Japão não é um país, mas uma corporação. Pode-se tentar entender isso pelo viés do coletivismo da sociedade japonesa, mas também por um viés do pós-guerra no qual os EUA exerceram grande coerção na condução da política, sociedade e economia. Talvez por isso, tenhamos tantas utopias (porque em última instância a “máquina” não é ameaça) distópicas (as corporações, a sociedade e o governo representam a ameaça) tão presentes na produção audiovisual japonesa.
Esperamos ter despertado interesse pela ficção científica japonesa em todas as suas vertentes e suscitado questões para pesquisa e reflexão.
[1] Unno Juza é considerado o pai da ficção científica japonesa e Ōshita Udaru também foi um dos pioneiros do gênero, misturando aos romances de detetive que também escrevia.
* Janete da Silva Oliveira é doutora pela PUC-RJ na área de literatura, cultura e contemporaneidade. É professora assistente do setor de japonês do Instituto de Letras da UERJ.
Referências
Le Guin, U. K. The language of the night: essays on fantasy and science fiction. Nova York: Ultramarine publishing, 1979.
Nagayama, Y. SF Seishin-shi: bakumatsu/meiji kara sengō made. Tóquio: Kawade, 2009
Novielli, M. R. História do cinema japonês. Brasília: Editora UnB, 2007.
Taketomo, T. Nihon shisō ni okeru yūtopia. Nihongo Gakushūsha no tame no Nihon Kenkyū Shirisu 1. Tóquio: Kuroshio shuppan, 2014.
Sites
https://pdmagazine.jp/background/japanese-sf/