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‘Carlão’ abre seu baú de conhecimentos

A trajetória de Carlos Roberto de Souza, de patrulheiro a mestre

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Ilustração: Luppa Silva Em 2011, depois de ser entrevistado pelo Jornal da Unicamp, o mestre pela Faculdade de Educação (FE) Carlos Roberto de Souza, o “Carlão”, não pode conceder entrevista sobre sua trajetória de vida e acadêmica a uma emissora de TV de Campinas. Funcionário da Unicamp desde 1982, sua obediência, assim como o pouco caso com suas qualidades pessoais e acadêmicas por parte do órgão onde atuava naquela época, fizeram com que sua história não ganhasse as telas. Mas como dizem que tudo isso ficou no passado e é coisa da cabeça de quem sente, uma história como a dele merece atualização na nova versão do Jornal da Unicamp, agora apenas eletrônica.

Justiça feita, no último aniversário de Campinas (14 de julho), Carlão guiou a equipe da TV Câmara pelos pontos históricos importantes do Centro da cidade. Com tantos dados na cabeça, desta vez, nada impediu o historiador de mostrar sua competência e abrir o baú de conhecimentos sobre seu berço, seu lar, suas ruas, suas praças, nas quais colecionava brinquedos ao caminhar oferecendo serviços de engraxate, pelas quais transitava como patrulheiro mirim. As ruas que sempre pisou como especialista em administração de empresas, estudante de história da PUC Campinas, especialista em história oral e arquivística, mestre pela Unicamp e agora como entrevistado-guia especial sobre o aniversário de Campinas. O novo órgão de trabalho o valorizou e julgou importante sua contribuição à imprensa e à sociedade. “Estou emocionado. Grato à Assessoria de Imprensa da Unicamp pela indicação para esta série sobre As Sete Maravilhas de Campinas.”

Pudera, pois Carlão atuou e ajudou na infraestrutura do Laboratório de História Oral (Laho) do Centro de Memória da Unicamp, o CMU, um dos principais acervos especializados na história de Campinas. Além disso, vive Campinas, o Brasil e o mundo de forma intensa, muitas vezes guiado pelas mãos da professora da Faculdade de Educação Olga von Simson, que o convidou a trabalhar no centro. “Foi a professora Olga quem me convidou para o CMU. Ela sempre me incentiva a pesquisar e publicar.”

Foto: Antoninho Perri
Carlos Roberto de Souza, o “Carlão”, durante atividade no Museu Exploratório de Ciências: múltiplos saberes

A educação e a inteligência são os primeiros comentários ouvidos de alguém que o conhece. Foram elas e também sua paixão pela cultura japonesa que fizeram o jornalista Eustáquio Gomes sugerir a publicação de um perfil no Unicamp Hoje (depois Jornal da Unicamp). Tais características e também a obtenção do título de mestrado motivaram o funcionário Edison Cardoso Lins a sugerir sua história à coluna Perfil, em 2011, sob o título “A história e o sentido da vida”. De todos os reitores com os quais trabalhou, desde a gestão de Plínio Alves de Morais, dá para contar as reclamações desde a atuação como patrulheiro mirim até a chefia da área de Expediente da Reitoria: “Nenhuma, Alice”, fala, sempre como se estivesse dando uma aula.

Mas quem o vê garboso caminhando pelo campus de Barão Geraldo, sempre com sorriso no rosto, algumas vezes ao lado de Alice Souza (paixão à primeira vista), não sabe deste baú de novidades se não se aproximar. Porém, a comunidade científica da FE sabe, porque mesmo impedido algumas vezes de se reunir com educadores, Carlão produziu muito, em casa, aos fins de semana, de madrugada, depois do expediente e hoje é autor de uma vasta relação de artigos e capítulo de livro.

 “Tenho dezenas de publicações e muitas participações em eventos.” Apesar de toda dedicação e produção acadêmica, Carlão “não mereceu” a validação de seu mestrado para promoção na carreira, por conta do menosprezo de alguém ao reconhecimento por sua atuação no Laho. O desrespeito que vem de cima pode romper sonhos, mas no caso de Carlão, eles foram um pouco interrompidos somente, pois a vontade de saber pulsa mais forte. Tão forte que hoje domina os idiomas inglês, japonês, italiano, espanhol e francês.

Na parede ou na divisória próxima à mesa de trabalho, é possível observar a adoração do funcionário por expoentes da história mundial, principalmente artistas e militantes dos direitos humanos. Misturam-se no “painel” cultural as expressões de Bob (sim, o Marley), Martin Luther King, Rosa Parks, Louis Armstrong, Rosa de Luxemburgo, Angela Davis, Hannah Arendt, Walter Benjamin, Milton Santos, Kabengele Munanga, Cartola e tantos outros que o levaram a constituir uma carga de leitura “pesada”. (Seria porque a mãe pediu para grafiteiros gravarem Marley no muro de sua casa?).

Ao vivo, Carlão teve a oportunidade de conhecer outro ídolo, a pessoa que o alertou a voltar para a sala de aula: o descobridor do méson pi, César Lattes. Ele conta que ao chegar de charrete à “floresta” da Unicamp, na década de 1980, soube da célebre presença do célebre físico e apressou-se em saber onde se localizava o Instituto de Física Gleb Wataghin. “Você vai ficar aí­ parado? Entre”, disse o cientista ao ver aquele menino imóvel diante de sua sala. A partir desse dia, uma das frases que movem algumas decisões em sua vida é: “Como vai ser alguém na vida sem estudar? Volte a estudar”. E isso Carlão faz até hoje, pois além de insistir no processo seletivo para o doutorado, cursa pedagogia.

O “empurrão” de Lattes fez do garoto mais que um estudante ad aeternum, um professor, pois, ao lado de alguns amigos, atuou no Projeto Educativo de Integração Social (Peis), que oferece reforço escolar a adultos. Objeto de pesquisa de sua dissertação, o Peis mostra que é possí­vel proporcionar uma educação de qualidade sem grandes recursos, apesar da “insubordinação” do governo às regras do direito à educação. “De acordo com a memória narrada por alunos entrevistados, percebi que o Peis é um espaço acolhedor e propício para a interação social.” Para Carlão, o projeto ultrapassou o fazer pedagógico e fincou raízes no âmago de cada um, por meio da sensibilidade em fazer as “amarras da aprendizagem”. A inspiração veio do empenho de sua mãe, que em sua infância, reunia meninos para jogar futebol, mas com uma condição: quem sabia mais ajudava quem tinha dificuldade. Exemplo para quem investe somente nos melhores.

O segundo pedido de entrevista quase foi descartado pelo historiador, talvez pelo resultado do primeiro episódio em 2011, mas desta vez as entrevistas foram ao ar, pois a concordância de seus atuais coordenadores mostrou importância de Carlão, hoje no Museu Exploratório de Ciências da Unicamp, para a Universidade e a sociedade. “Sou apenas um funcionário; posso mesmo conceder a entrevista, acompanhar uma equipe de TV?”. Claro que sim, Carlão. Valeu por ter sido ousado em sua casa, depois do expediente, reunindo-se com grupos de estudo à noite e em fins de semana, lendo e escrevendo muito sobre a temática racial e muitas outras causas sociais. A História, a Educação e a nação desassistida agradecem. E, como você mencionou o poeta de rua na primeira entrevista ao JU, em 2011, esta nova coluna aplica a frase dele à sua história: “Gentileza, gera gentileza” (de Gentileza).

Mais sobre Carlos Roberto de Souza:

 

A história de Carlão no JU impresso

Participação em vídeos:

Marco Zero

Mercado Municipal, a partir de 14:28

Torre do Castelo, a partir de 5:22

 

 

Imagem de capa JU-online
Carlos Roberto de Souza, o “Carlão”, durante atividade no Museu Exploratório de Ciências

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