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Arquivistas reagem a projeto de lei que prevê eliminação de originais

Proposta em tramitação no Senado sugere que, depois de digitalizados, documentos sejam destruídos

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O Senado Federal está fazendo os ajustes para a publicação do chamado Projeto de Lei da “Queima de Arquivo” (PL nº 7.920/2017, do senador Magno Malta), que legaliza a eliminação de documentos arquivísticos originais, após sua digitalização e arquivamento em mídia ótica ou eletrônica, seja por “incineração, destruição mecânica ou por qualquer outro procedimento que assegure a desintegração do documento”. Já na Câmara dos Deputados, está confirmada uma audiência pública para o dia 13 de setembro, às 14 horas (no Plenário 10), marcada oficialmente para debater a importância das instituições arquivísticas na preservação e difusão de registros históricos e culturais.

Na verdade, um dos objetivos de representantes da comunidade arquivística e de grupos que lidam com a questão da memória é inserir a discussão do projeto de lei na pauta e conseguir, se não o seu arquivamento, pelo menos o bloqueio da publicação, ganhando

tempo para discussão e introdução de modificações no texto. O Arquivo Edgard Leuenroth, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (AEL/IFCH) da Unicamp, além de participar da mesa de discussão na audiência pública, organizará uma exposição fotográfica no Espaço Mário Covas da Câmara (nos dias 12, 13 e 14 de setembro), contribuindo para a sensibilização em torno do tema.

Foto: Perri
Funcionários no Arquivo Edgard Leuenroth

Humberto Celeste Innarelli, diretor técnico do AEL, que pesquisa e trabalha com documentos arquivísticos digitais há quase 20 anos dentro da Unicamp, divulgou manifesto pessoal lembrando que os fragmentos de textos do projeto de lei não são suficientes para garantir a preservação dos documentos digitalizados. “Existe um movimento muito grande dos profissionais envolvidos na área de arquivos para que esta lei não seja aprovada ou, em último caso, que sejam feitas alterações no texto para evitar mínimos riscos à preservação. Como é possível substituir um documento arquivístico original de forma definitiva sem a garantia de preservação do documento digitalizado?”.

Innarelli explica que tecnicamente, dentro da política adotada para os arquivos institucionais, existem três idades: o arquivo corrente, o intermediário e o permanente. “Uma solicitação de compra, por exemplo, tem sua primeira fase como documento corrente, até a chegada do produto solicitado, quando passa ao arquivo intermediário – em que sua guarda é importante para questões legais. É o mesmo caso da conta de água, cuja guarda aconselhada ao consumidor é por cinco anos antes da eliminação.”

Depois de cumprir seu "valor legal", acrescenta o diretor técnico do AEL, um documento pode ter dois destinos: a eliminação, com a destruição completa das informações, ou o arquivo permanente, onde é preservado por tempo indeterminado por questões históricas, probatórias e de pesquisa. “Existem duas ferramentas arquivísticas para gerir o fluxo do documento: o plano de classificação e a tabela de temporalidade de documentos (TTD) – que determina, a partir da classificação dos documentos, os prazos de guarda em cada uma das idades e a destinação. O projeto em discussão torna os documentos correntes e intermediários passíveis de eliminação; os documentos classificados como permanentes podem ser digitalizados, mas não eliminados.”

Foto: Perri
Humberto Celeste Innarelli, diretor técnico do AEL: “Existe um movimento muito grande dos profissionais envolvidos na área de arquivos para que esta lei não seja aprovada ou, em último caso, que sejam feitas alterações no texto para evitar mínimos riscos à preservação”

Innarelli esclarece que não é contra a digitalização de substituição de documentos considerados não permanentes em TTDs ou de outros cujo suporte se tornou obsoleto ou não suporta mais a informação registrada. “A digitalização pode ser realizada com a adoção de processos, normas e regulamentos institucionais de forma responsável e que não implique em riscos ao funcionamento e à memória da instituição. Porém, sou contra uma lei que autoriza a eliminação de originais sem a mínima preocupação com políticas de preservação de documentos arquivísticos digitais – incluindo os digitalizados. Sem falar em outras questões – autenticidade, avaliação, temporalidade, terminologia, certificação digital – abordadas por estudiosos da área.”

O diretor técnico do AEL, que é autor de uma tese de doutorado (2015) sobre o desenvolvimento de políticas de preservação de documentos arquivísticos digitais dentro das instituições, afirma que estas, em sua maioria, não possuem tais políticas. “Temos no Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) a Câmara Técnica de Documentos Eletrônicos (CTDE), com especialistas que discutem políticas de gestão e preservação digital e sistemas informatizados. Hoje já existem ferramentas e grupos específicos no Brasil que podem ajudar no desenvolvimento dessas políticas. Fora isso, há projetos estrangeiros, como o InterPares, da Universidade de British Columbia (Canadá), que serviriam tranquilamente de parâmetro.”


Valor histórico

Aldair Carlos Rodrigues, professor do Departamento de História da Unicamp e diretor adjunto do AEL, atenta que documentos considerados sem importância pelo plano de classificação e tabela de temporalidade de documentos podem ser fundamentais para explicar fenômenos do passado. “Os interesses do presente pelo passado vão mudando de acordo com o tempo. Além disso, devemos levar em conta as consequências da digitalização, por exemplo, para o campo da história da cultura escrita, em que a materialidade do documento é muito importante nas pesquisas. A sua destruição inviabilizaria uma série de pesquisas nesse sentido, pois dependendo da abordagem e da questão que se analisa, é essencial o contato com o documento.”

Na opinião de Rodrigues, o projeto em trâmite no Senado não possui um lastro técnico, já que sua elaboração foi conduzida de forma unilateral. “Profissionais com formação específica nesta área apontam várias falhas no projeto e não são ouvidos, estão sendo atropelados. Esses técnicos possuem câmaras onde discutem questões como da preservação digital e já se posicionaram, posição que tem sido ignorada. A audiência será importante para trazer outras vozes que serão afetadas diretamente por esse PL. Queremos complexificar o processo, mostrar sua importância para as instituições de preservação da memória e para pesquisadores da área de humanas, principalmente.”

Foto: Perri
Aldair Carlos Rodrigues, professor do Departamento de História da Unicamp e diretor adjunto do AEL: “Profissionais com formação específica nesta área apontam várias falhas no projeto e não são ouvidos, estão sendo atropelados”

Humberto Innarelli ignora quem são os “verdadeiros" autores do projeto, supondo, pela linguagem utilizada no texto, que não são leigos na área. “Eles entendem de arquivos, porém, não estão de fato preocupados com a preservação dos documentos arquivísticos digitais nem com o valor histórico dos originais. Não devemos demonizar o documento em papel, por conta do espaço que ocupa e dos custos com pessoal e manutenção – esta é a justificativa política para sua eliminação. A digitalização traz vantagens como a facilidade de disponibilização e acesso, mas é uma incógnita quanto à redução de custos, pois vai exigir equipes especializadas e investimentos constantes em equipamentos avançados; é muito difícil quantificar esse valor. Creio que os custos se equivalem.”


Lobby pesado

Este projeto de lei vem tramitando há dez anos, desde quando foi apresentado sob o nº 146/2007 e provocou um manifesto de entidades representando arquivistas, historiadores, cientistas sociais e antropólogos. O manifesto atentava que a destruição de documentos originais após sua digitalização poderia colocar em dúvida a autenticidade de documentos públicos, impossibilitando futura verificação no caso de suspeita de fraudes, “o que pode ser considerado uma verdadeira ‘queima de arquivo’”.  Na ocasião, a Comissão da Anistia, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos e o Movimento Tortura Nunca Mais, bem como outros grupos, temiam ver seus trabalhos comprometidos, visto que dependiam de documentos autênticos e confiáveis.

Segundo Innarelli, existe um pesado lobby de empresas de digitalização e de equipamentos para a aprovação do projeto, com o interesse de oferecer serviços aos governos, que dificilmente teriam capacidade técnica e infraestrutura para digitalizar toda a documentação existente.  “Na primeira tentativa de aprovar o projeto (Lei nº 12.682, de julho de 2012) havia sensibilidade para que ele não fosse aprovado, tanto que sofreu uma série de vetos – e um dos principais foi exatamente que documentos originais pudessem ser eliminados após a digitalização, devido ao risco de simplesmente se apagar a memória do período. Além disso, a falta de políticas de preservação de documentos arquivísticos digitais traz o risco de caos e paralisação de instituições no caso, por exemplo, de um colapso do sistema computacional.”


SIARQ gere os processos arquivísticos na Unicamp

O Arquivo Central do Sistema de Arquivos (SIARQ) é o órgão da Unicamp responsável pelo plano de classificação e pela tabela de temporalidade, estabelecidos por uma comissão multidisciplinar, que visam decidir se um documento é passível ou não de eliminação. “Não se concebe a ideia de eliminar o documento da Lei Áurea, mantida no Arquivo Nacional do Brasil, após a sua digitalização. É um documento icônico, que representa um documento permanente. Todos os dias a Universidade produz documentos permanentes, como uma ata do conselho universitário, uma tese, uma planta arquitetônica representando um plano diretor; às vezes, um conjunto destituído de interesse administrativo pode ser de interesse histórico, devendo ser preservado na sua originalidade e integridade”, exemplifica a coordenadora do SIARQ, Neire do Rossio Martins, em carta (link) enviada ao JU.

Foto: Perri
Neire do Rossio Martins, coordenadora do Sistema de Arquivos da Unicamp: “Às vezes, um conjunto destituído de interesse administrativo pode ser de interesse histórico, devendo ser preservado na sua originalidade e integridade”

O PL 7.920/2017, segundo Neire Martins, prevê que documentos originais em papel, de guarda permanente, devem ser mantidos como tal, mesmo que digitalizados. “A questão colocada é sobre a identificação de documentos permanentes produzidos e acumulados em arquivos, barracões e armazéns espalhados nas administrações públicas, sem qualquer tratamento. Mas não fica claro no projeto o compromisso de exigir que, antes de digitalizar massas acumuladas de documentos em papel, se faça um criterioso trabalho de gestão e de avaliação, seguindo tabelas de temporalidade aprovadas e publicadas, e orientações de grupo formado por profissionais multidisciplinares. Não será o processo de digitalização, em si, que numa passe de mágica fará esse trabalho.”

A coordenadora do SIARQ afirma que, mesmo as empresas terceirizadas contratadas para digitalização, devem ser orientadas e supervisionadas para o cumprimento de normativas arquivísticas do órgão contratante. “A preocupação dos profissionais de arquivo, pesquisadores e cidadãos, é que sem figurar no PL o cumprimento às exigências que determinam a Constituição e a Lei de Arquivos, se crie uma corrida pela digitalização e que se promova a perda irreparável de documentos permanentes originais. As administrações públicas que não fortalecerem as instituições arquivísticas poderão colocar nas mãos de terceiros (empresas de digitalização e cartórios) o patrimônio documental – um bem público que, em última análise, confere identidade a uma nação.”


Sobre o PL 146/2007 | Neire do Rossio Martins

 

 

Imagem de capa JU-online
Interior do Arquivo Edgard Leuenroth | Foto: Antoninho Perri

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