Causadas por fatores econômicos e geopolíticos, idas e vindas são mapeadas por pesquisadora
A imigração haitiana no Brasil passou por vários momentos desde sua intensificação a partir de 2010, ano do terremoto que destruiu o Haiti. Nesses sete anos, mais de 90.000 haitianos entraram e se espalharam pelo país, enfrentando uma difícil trajetória, na condição de trabalhador imigrante, para sua inserção no mercado. Já em 2015, mas principalmente no início do ano passado, a crise econômica brasileira gerou um movimento de saída de haitianos, tendo Estados Unidos e Chile como destinos preferenciais. E agora, com o fechamento da fronteira por Donald Trump e a falta de perspectivas em terras chilenas, percebe-se uma nova onda de haitianos voltando ou vindo pela primeira vez ao Brasil – não mais por terra, e sim pelos aeroportos, portando vistos e por tempo indeterminado.
Todo esse dramático vai e vem dos haitianos foi acompanhado desde o início por Marília Lima Pimentel Cotinguiba, professora da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e pós-doutoranda do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp. “Em 2011 começamos uma pesquisa junto a imigrantes que entraram pela tríplice fronteira norte (Brasil-Peru-Bolívia). A chegada, passagem e circulação dos haitianos transformou a dinâmica das cidades acreanas de Brasileia, Epitaciolândia e Assis Brasil, que fazem fronteira com Cobija na Bolívia e Iñanpari no Peru. Na época, viajei cinco vezes até a fronteira para entender por que eles estavam chegando, como conduziam a documentação, o que vinham fazer no Brasil e como eram acolhidos.”
Segundo dados levantados por Marília Pimentel, 37.864 haitianos entraram por essa fronteira de 2010 a 2015, na condição de indocumentados. “Inicialmente, essa população imigrante solicitava refúgio, mas as solicitações não eram enviadas para o Conselho Nacional de Refugiados (Conare) e sim para o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) do Ministério do Trabalho e Previdência Social, convertendo os haitianos em ‘trabalhadores imigrantes’ no país. O visto humanitário foi a solução encontrada pelas autoridades brasileiras, vinculando-o a uma questão de acolhimento dessa população por questões humanitárias, diferentemente de outros fluxos migratórios internacionais.”
A professora Rosana Baeninger, coordenadora do Observatório das Migrações em São Paulo e supervisora de Marília no pós-doutorado, afirma que há muita confusão em relação aos haitianos, que são vistos na categoria dos refugiados. “Na verdade, eles chegaram à fronteira solicitando refúgio, mas é natural que as autoridades não tenham concedido o visto de refugiado para imigrantes de um país onde se encontra uma missão de paz brasileira. Passados sete anos, oficialmente, a imigração haitiana ainda é atribuída ao terremoto, quando na verdade se trata de um movimento histórico, que começou por Estados Unidos, Canadá, França e ilhas caribenhas como República Dominicana, Cuba e Bahamas.”
A busca por trabalho foi o principal motivo para vir ao Brasil, como apontado pelos haitianos nos questionários aplicados por Marília Pimentel. “Nosso país se preparava para sediar a Copa do Mundo e havia muitas obras, sendo que eles são fanáticos pelo futebol brasileiro – um ano antes do terremoto, a seleção jogou no Haiti. A presença de tropas brasileiras naquele país, transmitindo informações sobre o Brasil, também influenciava a migração. Com o endurecimento das fronteiras nos destinos preferenciais, os haitianos passaram então a vir para cá, alguns de passagem para a Guiana Francesa.”
Um momento dessa imigração bastante noticiado pela mídia, como lembra a pesquisadora, foi quando o governo do Acre fretou ônibus para enviar haitianos a São Paulo; outro foi da contratação de haitianos pela agroindústria e construção civil do Sul. “Visitamos Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, seguindo haitianos que entraram pela tríplice fronteira. Em 2012, o limite foi de 1.200 vistos humanitários, quantidade ampliada no ano seguinte com uma nova resolução que previa, ainda, a retirada de vistos no próprio consulado do Brasil no Haiti – a finalidade era livrá-los das rotas dos coiotes, o que não se cumpriu por causa da incapacidade de atender à demanda; temos fotos com mais de 300 pessoas dormindo na fila da embaixada.”
Rumo a EUA e Chile
Marília Pimentel observa que a partir de 2015, devido à crise econômica e a problemas com obras inacabadas da Copa do Mundo, haitianos começaram a deixar o Brasil tentando uma rota para os EUA através de países das Américas do Sul e Central, até o México. “Barack Obama, na transição do governo para Donald Trump, concedeu vistos para trabalho a imigrantes, o que atraiu haitianos que rescindiram seus contratos com empresas brasileiras e os já desempregados. Trocaram cada real por dólar e saíram pagando táxis e coiotes – alguns morreram no caminho. Ocorre que Trump, ao assumir, passou a prendê-los e deportá-los para o Haiti. Conheço cerca de 50 participantes do nosso projeto de ensino de português que estão presos há meses na fronteira americana.”
Segundo a professora, haitianos tomaram o rumo também do Chile – para onde já existe uma migração antiga – embarcando nos aeroportos de São Paulo e Manaus. “Nesse pós-doutorado, fiz uma pesquisa de campo em Santiago e vi haitianos enfrentando a xenofobia e inúmeros problemas, pois lá só consegue emprego quem chegar com contrato assinado; muitos trabalham como ambulantes, vendendo comida e mercadorias trazidas por peruanos, que são igualmente indocumentados. Há ainda a dificuldade com moradia: visitei bairros da periferia onde haitianos e dominicanos moram em galpões divididos em cubículos em que cabem apenas cama e cômoda, sem cozinha e com banheiro coletivo, pelo equivalente a até 700 reais. Reencontramos haitianos que estavam juntando dinheiro para a passagem de volta ao Brasil.”
Marília já está observando casos de imigrantes deportados para o Haiti – e também de quem nem tentou entrar nos EUA – que decidiram vir para o Brasil. “Encontrei 84 deles no aeroporto de Manaus, vindos diretamente de Porto Príncipe e com visto por tempo indeterminado. Eles não precisam mais atravessar a fronteira, já que conseguem o visto lá mesmo no Haiti. Quando começaram a sair daqui, achei que essa imigração cessaria, mas o que vemos é uma nova onda. Creio que os haitianos, que possuem sua rede de informações, sabem que o visto humanitário ainda em vigor pode não ser renovado, e por isso estão intensificando a vinda.”
A língua e a Cátedra
A docente da UNIR é da área de linguística e aprendeu o crioulo durante a sua pesquisa, como forma de superar a maior barreira encontrada em suas idas iniciais à tríplice fronteira. “Nós nos deparamos com empresários de outras regiões, sobretudo do Sul e Sudeste, recrutando trabalhadores haitianos e, nas entrevistas, observamos que o grande entrave era língua. Ali na fronteira sempre houve a circulação de bolivianos e peruanos, sendo muito comum o portunhol, mas os haitianos falam majoritariamente o crioulo, seguido do francês. Isso levava os empresários a selecionarem aqueles que já tivessem noções de português ou falassem um pouco do espanhol aprendido em países vizinhos caribenhos, onde eles também buscam trabalho.”
Para a professora, além da questão linguística, outra grande dificuldade para os haitianos interagirem no país está na educação. “Constatamos que muitos deles desejam continuar estudando. Conheci médicos, advogados e outros profissionais que querem convalidar o diploma para trabalhar em suas áreas, mas não conseguem. Por isso, a Cátedra para Refugiados que a Unicamp vai oferecer representa um enorme salto tanto para refugiados como para imigrantes de modo geral. Eles são de várias nacionalidades, com culturas muito diversas. Uma coisa é ensinar o português sob a lógica da cultura brasileira, outra é ensinar sob a lógica de uma cultura diferente.”
Marília explica que, em sua área de estudos, entende-se que ensinar uma língua é ensinar uma cultura. “Não é possível dissociar língua e cultura. Dei um minicurso na Universidade Federal da Fronteira Sul, que reserva vagas para refugiados e imigrantes, sendo que haitianos conseguiram entrar em cursos como de engenharia. Mas houve críticas de professores contra a abertura dessas vagas, por que os estrangeiros não estariam acompanhando o ritmo dos demais. Na verdade, o problema não está em acompanhar o conhecimento da área, está na língua: qual é o preparo que os professores têm para dar um mergulho na cultura dos refugiados e imigrantes? Estou na pesquisa com os haitianos há seis anos e ainda não sei tudo.”
Segundo a linguista, os nossos cursos de língua não estão preparados para atender à nova demanda que os diferentes fluxos migratórios estão trazendo, que é a de preparar melhor os professores para esse enfrentamento. “Ao iniciar um projeto de ensino de português para senegaleses, haitianos e bengaleses, constatei que todos os materiais disponíveis são importados de Portugal (do Instituto Camões), ou então produzidos para o estrangeiro que vem trabalhar em multinacionais, com vocabulário muito específico. Havendo uma heterogeneidade tão grande, como receber a todos em uma sala? Esse é o grande desafio para a Cátedra da Unicamp. Essa pesquisa com os haitianos me deu maior aprofundamento e um novo olhar para o ensino da língua.”
Dicionário em construção
Marília Pimentel afirma que o aprendizado do crioulo também é constante e sente-se travada quando volta a conversar com haitianos. “Na tríplice fronteira encontramos um haitiano pedagogo que já falava inglês, francês e espanhol, além do crioulo, e aprendeu português muito rapidamente. Ele foi nosso interlocutor no início das pesquisas, mas percebemos que aquela mediação não era confiável, por conta de distorções e omissões em sua tradução. Tratamos então de entender o crioulo recorrendo a uma troca com os próprios haitianos: ensinávamos uma palavra em português e eles a devolviam em crioulo, mostrando escrita e pronúncia. Estamos construindo um dicionário português-crioulo, inexistente no Brasil, que já possui mais de três mil verbetes.”
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