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Onde estão os negros?

As trajetórias de vida de ex-estudantes, docente e funcionário negros da Unicamp ajudam a refletir sobre a representatividade étnico-racial na educação superior

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Em 2003, o historiador porto-riquenho Jerry Dávila publicou a obra “Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945)”, que investigou os modos como a expansão da educação pública brasileira serviram para reproduzir desigualdades raciais e legitimar, ainda que dissimuladamente, o ideário do “embranquecimento” da nação como progresso social e cultural. Seu primeiro capítulo, “O que aconteceu com os professores de cor do Rio?”, inspirou o título desta reportagem. Segundo estudo de Dávila, os professores negros do Rio de Janeiro foram, ao longo da primeira metade do século XX, ostensivamente perdendo seu espaço nas escolas. Jerry Dávila leciona História do Brasil na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.

Foram quatro anos de cursinho popular pré-vestibular antes de ingressar na Unicamp. Quando foi aprovado no curso de Ciências Sociais, em 2003, idealizava a universidade como um espaço de acolhida, mas acabou por sentir-se distante do que ela lhe apresentava. “Lembro-me de conversar com os colegas de turma no primeiro semestre do curso e ficar surpreso ao saber que eles já tinham viajado para outros países e feito intercâmbio na Alemanha ou Itália, por exemplo. Era uma realidade muito diferente da minha”, relata Silas Eduardo Souza, hoje professor de sociologia da rede estadual de São Paulo e coordenador administrativo do Cursinho Popular Herbert de Souza, o mesmo que o ajudou a ingressar na Unicamp.

Silas é um dos sete filhos de uma família da periferia de Campinas. Trabalhou desde cedo para ajudar os pais, pedreiro e empregada doméstica, com as contas da casa. Frequentou o ensino médio em um colégio técnico da cidade de Mococa, onde residiam os avôs. De volta a Campinas, conheceu o Cursinho Herbert de Souza, fundado por estudantes da Unicamp na Vila União, em 1998. Trabalhava de dia, como servente de pedreiro, e, à noite, acompanhava as aulas para se preparar para o vestibular.

Foto: Antoninho Perri
O professor Silas Eduardo Souza: “Era uma realidade muito diferente da minha”

Ele foi um dos três únicos estudantes negros de sua turma. Naquele ano, ingressaram na Unicamp 2.877 alunos. Entre eles, apenas 60 (2,1%) se autodeclararam pretos e 230 (8%) pardos. Grande parte dos estudantes negros que conheceu durante sua formação eram intercambistas de fora do país. “Era tão naturalizada a ausência de alunos negros que era comum eles serem confundidos com estudantes estrangeiros. Um episódio como esse aconteceu com minha companheira. Quando ela disse que morava no Santa Lúcia (bairro de Campinas), perguntaram a ela se ficava na África ou na América Central”, lembra.

A ausência de estudantes negros nas salas de aula não é fato recente. Duas décadas antes do ingresso de Silas, em 1983, o cenário era o mesmo. A então caloura de Química Joana D´Arc Félix de Sousa já notava: “Dos 70 alunos da minha turma, apenas eu e outra colega éramos negras. Entre os poucos alunos negros que vi na Unicamp, muitos eram africanos”, descreve. Também de família pobre, Joana é filha de empregada doméstica e de funcionário de curtume da cidade de Franca, interior de São Paulo. A proximidade com o ofício do pai a fez escolher o curso de química. Seu sonho era trabalhar em curtumes, já que acreditava, naquele momento, que esse era o único campo para o profissional da área. Estudou para o vestibular com o material emprestado do filho da patroa da mãe. Cursou doutorado em Química na Unicamp.

Atua hoje em sua cidade natal, como pesquisadora e professora da ETEC Prof. Carmelino Corrêa Júnior, a Escola Agrícola. Cientista reconhecida na área de reaproveitamento de resíduos, ela soma 60 prêmios e diversas patentes nacionais e internacionais pelas soluções criativas que desenvolve junto aos alunos da educação básica, entre as quais pele humana artificial a partir de pele suína e cimento ósseo a partir de detritos das indústrias coureira e pesqueira. A inspiração para os temas de pesquisa vem dos problemas ambientais da região de Franca, pólo nacional do setor calçadista, que produz toneladas de resíduos das fábricas e curtumes diariamente.

Joana orgulha-se em apontar que o programa de iniciação científica do qual participam seus estudantes, em sua maioria de baixa renda e funcionários do setor coureiro, tem sido responsável pela diminuição da evasão escolar. Mais ainda, tem criado oportunidades para que novas trajetórias possam ser escritas. “Além de inserir os alunos no mundo da ciência, essa iniciativa mostra a eles a possibilidade de ir além do curso técnico. Muitos dos meus ex-alunos já estão no ensino superior ou pretendem ingressar na universidade”, explica.


Representatividade negra

Anselma Garcia de Sales, que ingressou no curso de Letras em 1997, vivenciou realidade semelhante na Unicamp: apenas dois alunos negros em uma turma de 70 estudantes. Se conheceu alunos negros de outros cursos? A década é outra, mas a resposta a mesma: estrangeiros em sua maioria. Atualmente, Anselma faz doutorado em Letras na Universidade de São Paulo (USP) e é professora universitária do ensino particular. Talvez por ter crescido em meio aos livros ela tenha se decidido a conhecer mais sobre a linguagem. “Meus pais e avós, apesar de não terem formação superior, liam muito e possuíam biblioteca em casa”, conta. Campineira, desde pequena alimentava o desejo de estudar na Unicamp. “Moramos a cinco minutos de carro da Universidade e, quando crianças, eu e minhas irmãs fazíamos planos de estudar aqui, e aqui nos formamos”. Ela, que foi aluna de escola pública, revela que estudou sozinha para passar no vestibular.

Desde jovem mantém relação estreita com o movimento negro. Sua aproximação se deu nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Igreja Católica, na década de 1990. Enquanto aluna da Unicamp, participou de debates sobre a temática étnico-racial em grupos de estudantes e funcionários negros que discutiam racismo e ações afirmativas. Ela explica que essas reflexões se transformaram em práticas que ultrapassaram os muros da Universidade. “Muitos daqueles que participaram do grupo mantiveram o propósito de garantir a representatividade negra no currículo, no corpo discente e no corpo docente das instituições de ensino superior em que passaram a atuar, seja como pesquisadores ou como docentes”, relata.

Foto: perri
A ex-aluna Anselma Garcia de Sales: “Quando crianças, eu e minhas irmãs fazíamos planos de estudar aqui, e aqui nos formamos”

Há cerca de dois anos, ela atua junto ao Movimento Feminista Negro Interseccional e ao Coletivo Negro com Práticas Pedagógicas em Africanidades (CONEPPA). Este último, formado por professores para pesquisar e trocar experiências na área de africanidades e, em especial, para acompanhar a implementação da lei federal 10.639, de 2003, que estabelece o ensino obrigatório de história e cultura afro-brasileira no currículo escolar. A necessidade de ampliar o debate para além das fronteiras nacionais a faz ir além. Está se filiando a grupos de pesquisa e mobilização política que atuam nos Estados Unidos e África.


Situação chocante

“Você trabalha aqui?”. Lucilene Reginaldo narra que era comum ouvir essa pergunta enquanto circulava pelo campus durante o período em que desenvolveu seu doutorado na Unicamp, de 2000 a 2005. “Sempre respondia ‘não’ de maneira ríspida”, ela diz. Desde 2012, é docente da linha de História da África no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Como estudante, dos alunos negros que conheceu, muitos eram pós-graduandos em História. “Naquele momento, eu via estudantes negros africanos e um grupo de estudantes negros na pós-graduação, notadamente na História Social”, observa.

Filha de pai petroleiro e mãe dona de casa da cidade de Santo André, no ABC paulista, Lucilene explica que, felizmente, teve uma infância com condições financeiras que a permitiram apenas estudar. Sempre ouviu dos pais que seu trabalho era ser uma boa aluna: “Meu pai sabia que a educação tornava possível a ascensão social e até mesmo o rompimento de algumas barreiras, como o racismo”. Fez todo o percurso escolar em instituições públicas. Quando adolescente, lembra-se de ter ouvido a mesma pergunta que tanto escutou durante o período em que estudou na Unicamp. “Fui até a casa de um colega de turma de família italiana levar a lição porque ele estava doente. Uma senhora de uma loja em frente à casa me viu e perguntou se eu estava trabalhando lá. Apesar da consciência das questões étnico-raciais passada pela minha família, essa situação foi chocante pra mim”, conta.

 

Foto: Perri
A docente Lucilene Reginaldo: “Meu pai sabia que a educação tornava possível a ascensão social e até mesmo o rompimento de algumas barreiras, como o racismo”

Joana, Anselma, Lucilene e Silas representam momentos diferentes da história da Unicamp. O que os une, entretanto, é a mesma percepção sobre a presença do estudante negro no campus. Desde o ingresso de Joana, em 1983, quatro décadas se passaram. Embora os dados indiquem o aumento da presença de estudantes negros na Unicamp desde então, eles ainda estão longe de ser um retrato fiel da população brasileira. De acordo com o último Censo Demográfico, 50,7% da população é preta ou parda (IBGE, 2010). Em 2017, 21,8% dos estudantes matriculados na Unicamp se encaixam nesse perfil (Comvest). Se observarmos os dados sobre pobreza, no entanto, o cenário se inverte: nos 10% mais pobres do país, 75% são pretos ou pardos (Pnad, IBGE, 2015).


Muito além do vestibular

Quando se olha para o quadro docente da Universidade, o contraste nos números a respeito da representatividade da população negra é ainda maior. Segundo relatório do grupo de trabalho criado pela Unicamp para a discussão das cotas étnico-raciais, em 2013, 95,6% dos seus docentes eram brancos. Ou seja, dos mais de 2 mil professores, apenas 33 eram negros.

Lucilene Reginaldo está nesse pequeno grupo de professores negros. Antes de se tornar professora da casa, foi, durante 15 anos, docente da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia. Nos primeiros semestres como docente da Unicamp, Lucilene diz que ainda se impressionava com o fato de encontrar poucos alunos negros nas salas de aula. “Essa percepção me fazia refletir não só sobre a posição das universidades paulistas no debate sobre cotas, mas também sobre o meu papel ali, como professora negra. Minha presença também era uma forma dos alunos conseguirem enxergar o mundo e as posições para além dos lugares naturalizados que sempre vivenciaram”, explica ao apontar que, para muitos desses estudantes, ela deveria ser a primeira professora negra que tiveram durante toda sua trajetória.

Os negros com os quais Silas conviveu em sua época de estudante eram, em sua maioria, funcionários da Universidade. Muitos deles vizinhos do bairro onde morava. “Eu tinha uma relação muito maior com funcionários do que com estudantes. Não saía do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU). Alguns funcionários, inclusive, ajudavam a colocar os estudantes negros de cursos diferentes em contato”, diz.

Para o funcionário da Unicamp Jórgias Alves Ferreira, o Mike, foi justamente o convívio com outros colegas de trabalho no STU e mesmo de outras universidades, no início dos anos 2000, que o fez refletir sobre as questões raciais que vinham ganhando cada vez mais espaço no ambiente universitário naquele período. Passou, então, a questionar o lugar do funcionário negro na Universidade. “Lembro-me que, no início dos anos 2000, os dados apontavam que a Unicamp tinha muitos funcionários negros ou afrodescendentes. Comecei a pensar: se tem uma população tão grande de negros, onde eles estão? Dificilmente, eu via negros em posições de destaque, mas via muitos trabalhando nos restaurantes universitários, no parque ecológico, na vigilância, e, principalmente, na limpeza”, relata.

Ele se lembra até hoje da data de seu ingresso na Unicamp: 03 de agosto de 1987. Em 2017, Mike completa 30 anos de serviço na Universidade. Nos 14 primeiros, atuou como oficial de administração na área de controle patrimonial da DGA. Desde 2001, trabalha na Faculdade de Educação, na Coordenação de Extensão. “Do final dos anos 1980 pra cá, vejo que hoje, na Unicamp, se fala mais abertamente sobre a questão do racismo, principalmente do racismo velado, institucionalizado, mas as diferenças ainda continuam”, aponta ao citar o número de alunos e professores negros.

O estranhamento que sentia ao notar que os negros não ocupavam os melhores cargos o fez pensar que o acesso à educação deveria ser o grande diferencial. Decidiu, então, que suas duas filhas só iriam estudar e cumpriu sua promessa. As duas cursaram o ensino superior em instituições públicas, Unesp e Unicamp. Mas tem consciência de que as filhas representam uma exceção entre a população negra brasileira. E sua própria história pessoal prova. Ele, que começou a trabalhar aos 12 anos de idade e sempre estudou em escolas públicas, concluiu o ensino superior em 2008, 31 anos depois de finalizar o ensino médio.


Cotas na Unicamp

“As cotas questionam os lugares estabelecidos”. É o que diz a professora Lucilene, uma das integrantes do grupo de trabalho que organizou audiências públicas para o debate sobre cotas étnico-raciais na Unicamp e produziu relatório que subsidiou sua recente aprovação no Conselho Universitário. Lucilene explica que as instituições podem reproduzir mecanismos racistas já naturalizados. “A resistência ao questionamento da hierarquia racial no âmbito de instituições como as universidades está ligada, na verdade, à recusa em discutir a lógica de formação dessas instituições, instituídas no bojo de processos históricos marcados pela exclusão, discriminação ou pela negação de determinados grupos nesses espaços”, esclarece.

Na Unicamp, foi apenas nos últimos cinco anos que o debate sobre a adoção de cotas ganhou mais força, sobretudo pela mobilização do movimento estudantil encabeçado pelo Núcleo de Consciência Negra e pela Frente Pró-Cotas. Anselma, que já integrou o Núcleo e diversos outros coletivos organizados do movimento negro, acredita que reconhecer a capacidade de articulação desses grupos, responsáveis por colocar a temática das ações afirmativas em pauta, é tão importante quanto celebrar a conquista das cotas para corrigir a distorção da representatividade de negros e indígenas nas universidades.

“O negro e o índio não devem estar na universidade para aprender o que o branco tem para ensinar, mas para trocar experiências”, aponta Mike, que relaciona o “incômodo” causado pelo debate das cotas étnico-raciais a uma mudança cultural necessária na dinâmica universitária. Silas concorda. “Aqueles que produzem os saberes não deixam de colocar neles o que se relaciona com a sua experiência de vida. Quando a universidade seleciona um único grupo social, ela fica monotemática em termos de produção do conhecimento científico”, aponta. Para ele, a adoção de cotas na Unicamp significa um avanço na inclusão da diversidade de trajetórias e bagagens culturais na vida universitária.

 

Foto: Perri
O funcionário da Unicamp Jórgias Alves Ferreira: “O negro e o índio não devem estar na universidade para aprender o que o branco tem para ensinar, mas para trocar experiências”

Esse processo de inclusão de trajetórias e bagagens diversas na universidade também faz parte do que se tem chamado torná-la “socialmente referenciada”, isto é, incluir a sociedade dentro da universidade. “As cotas têm se mostrado algo positivo para as universidades, inclusive para as norte-americanas, justamente por trazer para esse espaço do conhecimento outros pontos de vista e dar lugar a perguntas e problemas novos”, explica Lucilene. Para ilustrar, ela cita um dado compartilhado por seus colegas professores da área da Sociologia em balanço feito pelo programa de pós-graduação do IFCH, que implantou a política de cotas para negros, indígenas e deficientes em 2015. “Eles observaram que os estudantes cotistas ingressantes têm trabalhado com temáticas e enfoques que há muito não faziam parte da agenda de estudos do IFCH ou que nunca fizeram”, comenta.

 

Imagem de capa JU-online
Da esq. para a dir., Silas Eduardo Souza, Joana D´Arc Félix de Sousa, Anselma Garcia de Sales, Lucilene Reginaldo e Jórgias Alves Ferreira

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