Resultados de pesquisa feita na Unicamp foram divulgados na revista Scientific Reports
Diversas representações artísticas mostram a Terra repleta de vulcões sob um verdadeiro bombardeio de meteoros durante o Hadeano, o período geológico que durou de 4,6 bilhões a 4 bilhões de anos atrás. Esse seria o cenário do surgimento da vida, em formas ainda simples. A ideia corrente é que oceanos de magma ou fontes hidrotermais, frestas na crosta terrestre que espirram água quentíssima no fundo dos mares ou na superfície do planeta, poderiam ser ambientes propícios para impulsionar reações químicas pouco triviais capazes de formar moléculas complexas autorreplicantes: a base da vida.
Não há consenso sobre isso, em parte porque restam poucos indícios que permitam reconstruir, tanto do ponto de vista geológico como biológico, esse período da história do planeta. Em geral se procuram indícios sobre o Hadeano nas rochas, mas o engenheiro geólogo Carlos Roberto de Souza Filho e sua equipe no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp resolveram ver o que bactérias e outros seres unicelulares atuais têm a dizer sobre o período e chegaram a uma conclusão diferente. “O surgimento da vida também em terras emersas é uma possibilidade forte”, defende Souza Filho, com base em resultados publicados em junho na revista Scientific Reports.
O trabalho é consequência de um encontro entre geoquímica e biologia. Durante um estágio de pós-doutorado no laboratório de Souza Filho, o geoquímico Alexey Novoselov fez simulações numéricas usando informações sobre algumas características químicas das bactérias e arqueias atuais. Formadas por uma só célula, as bactérias e as arqueias existentes hoje descendem de um ancestral comum – possivelmente o último ancestral comum universal ou Luca, na sigla em inglês – que teria existido há cerca de 4 bilhões de anos, pouco após o surgimento da vida na Terra.
Mesmo tendo divergido há tanto tempo, esses dois grupos de seres vivos preservam concentrações muito semelhantes de certos componentes químicos inorgânicos, como óxido de silício (SiO2) e hidróxido de titânio (Ti(OH)4) e os íons de cálcio (Ca2+), de magnésio (Mg2+), de sulfato (SO42-), entre outros. Uma corrente restrita de pesquisadores começou a sugerir nos últimos anos que essa similaridade seria um indicador da composição química do ancestral comum, que, por sua vez, refletiria as condições químicas do ambiente em que existiu.
O pouco que se conhece do Hadeano vem da análise química de pequenos cristais de zircão encontrados em Jack Hills, na Austrália, formados há cerca de 4,4 bilhões de anos. Muito estudados, eles indicam que havia oxidação no manto terrestre e sugerem a existência de água líquida naquela época. Em parceria com pesquisadores do Chile, da Argentina, dos Estados Unidos e da Alemanha, Novoselov, Souza Filho e outros colaboradores da Unicamp tentaram obter informações adicionais sobre essa Terra primitiva examinando a composição química compartilhada por bactérias e arqueias. Estas últimas são seres unicelulares que já foram classificados no mesmo grupo que reúne as bactérias, mas, no final dos anos 1970, passaram a integrar um grupo à parte. “Tentamos identificar as características minerais do ambiente no Hadeano preservadas no metabolismo das bactérias e das arqueias, os organismos mais primitivos que existem hoje”, explica o professor da Unicamp.
As escolhidas foram cinco espécies de bactérias (Acetobacter aceti, Alicycloba-cillus acidoterrestris, Escherichia coli, Nesterenkonia lacusekhoensis e Vibrio cholerae) e duas de arqueias que vivem em ambientes hipersalinos (Haloferax volcanii e Natrialba magadii). Eles optaram por trabalhar com bactérias e arqueias porque não há representantes vivos de seres do Hadeano e os fósseis mais antigos preservados são de algas de um perío-do mais recente, o Arqueano, que durou de 4 bilhões a 2,5 bilhões de anos atrás.
Por meio de análises geoquímicas de alta precisão feitas com um espectrômetro de massa, os pesquisadores quantificaram os elementos químicos inorgânicos compartilhados por essas espécies de bactérias e arqueias. O grupo também cultivou os microrganismos em meios de cultura com composições distintas, o que permitiu medir quanto eles absorvem dos elementos químicos do ambiente e quanto é passado de uma geração para outra. Segundo os pesquisadores, essa informação possibilitaria inferir as condições em que se formou o suposto ancestral comum a todos os organismos, como havia sido proposto alguns anos atrás pelo biólogo Jack Trevors, professor emérito da Universidade de Guelph, no Canadá.
Os resultados obtidos pela equipe de Souza Filho indicam que o metabolismo das bactérias e das arqueias de fato conserva uma assinatura química do ambiente em que se desenvolveram. Como esses seres vivos compartilham vias metabólicas que provavelmente surgiram há bilhões de anos e usam os mesmos componentes inorgânicos, ao olhar para esses componentes, os pesquisadores estariam enxergando o passado distante do planeta. “Possivelmente, obtivemos os indícios mais antigos da existência de uma conexão entre os seres vivos e o mundo mineral”, conta Novoselov, atual-mente pesquisador no Instituto de Geo-logia Econômica e Aplicada do Chile.
“O ancestral se formou na presença de rochas basálticas, de rochas komatiíticas ou de algum outro tipo de lava vulcânica?”, pergunta Souza Filho, exemplificando os questionamentos que fizeram. Se bactérias e arqueias adquiriram determinados elementos, significa que os minerais que os contêm deveriam estar presentes no ambiente original. Os resultados corroboram o que era previsto pelos modelos baseados nos cristais de zircão e sugerem que as formas iniciais de vida surgiram em um clima moderado, com estações secas e úmidas, em uma atmosfera menos rica em gás carbônico (CO2) do que a atual. O palco teria sido um ambiente de terra firme, como cavidades em rochas (provavelmente basaltos) nas quais os microrganismos pudessem se proteger.
Esse resultado favorece a hipótese de que a vida poderia ter surgido em rochas expostas a intempéries como chuva e vento; em um pequeno lago quente, como propôs o naturalista inglês Charles Darwin no século XIX; ou em fontes hidrotermais em terra firme, segundo uma hipótese mais recente apoiada por alguns pesquisadores. Em todos esses casos, as moléculas características dos seres vivos – proteínas, lipídios e DNA, por exemplo – necessitam de alternância entre a umidade e a aridez para se formarem, o que só poderia ocorrer em terra emersa, e não no mar. Outros grupos discordam e apostam que a vida teria se originado no oceano primitivo ou, como se passou a propor nas últimas décadas, em regiões ainda mais inóspitas, como as fontes hidrotermais de regiões profundas do oceano.
Souza Filho reconhece que o cenário imaginado a partir desses resultados é hipotético e não exclui que formas primordiais de vida também tenham surgido em altas temperaturas. “Os extremófilos, seres que vivem em condições muito adversas, trazem uma lição interessante da qual afloram várias ideias, como a de que lugares ultraquentes ou ultrassalinos são cheios de vida e um grande nicho de exploração científica”, conta.
Ele também vê algumas possíveis consequências extraplanetárias de suas conclusões. “O ambiente de Marte foi parecido com o da Terra mais antiga”, conta. “Um melhor entendimento de como a vida surgiu e evoluiu na Terra coloca em perspectiva a possibilidade de haver vida em condições externas ao nosso planeta e, por analogia, selecionar planetas e regiões mais favoráveis para encontrá-la”, afirma.
Oceano de laboratório
A reflexão pode ser relevante tanto para a possibilidade de haver vida extraterrestre, como pela noção de que ela pode ter vindo para a Terra a partir de outros pontos do Universo, uma hipótese conhecida como panspermia (ver Pesquisa FAPESP nº 193). “Por enquanto, é impossível dizer se a vida surgiu em nosso planeta ou em outro lugar”, diz o químico Dimas Zaia, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Na suposição de que tenha surgido aqui, ele tenta recriar em laboratório as condições para que a vida surja. Não significa, necessariamente, reproduzir o passado. “Nunca vamos saber exatamente como a vida surgiu, pois não dispomos de informações precisas sobre a Terra daquele período”, afirma. “Mas podemos mostrar que existe a possibilidade de sintetizar vida a partir de matéria inanimada.”
Para isso, ele desenvolveu uma água do mar que chama de água 4 bi, por incluir compostos e íons que, supõe-se, eram abundantes naquele momento, como os íons de sulfato, de magnésio e de cálcio. “Tudo o que tenho feito nos últimos três anos é com essa água.” Os experimentos envolvem dissolver substâncias nessa água, em diferentes condições, e observar o que acontece do ponto de vista químico.
Recentemente, seu grupo mostrou que a água marinha atual causa o colapso de cavidades manométricas existentes nas partículas de argila, o que reduz a possibilidade de ocorrerem reações químicas entre moléculas aderidas a elas. Já a água 4 bi não degrada o mineral, uma observação que corrobora a hipótese de que seria propícia à origem da vida. “As moléculas orgânicas estão muito diluídas no mar, por isso precisam concentrar-se em partículas para que possam encontrar-se e formar polímeros”, explica. Na água 4 bi, vários outros minerais, além da argila, mantêm-se estáveis tanto em temperatura ambiente como a 80 graus Celsius e abrigam íons de magnésio e potássio em sua superfície – condições propícias à formação de polímeros, conforme indica artigo publicado on-line no final de 2016 na revista Origins of Life and Evolution of the Biosphere. Os fragmentos de minerais funcionam como catalisadores que também protegem as moléculas da radiação ultravioleta (não havia camada de ozônio na fase inicial do planeta) e da degradação por hidrólise.
Em conjunto, experimentos com bactérias e reações químicas na água podem ajudar a reconstruir ambientes pretéritos e sugerir como eles podem ter conduzido à formação da vida.
Projeto
Quantifying the constraints on the environment of early Earth: the cradle for emerging life on a young planet (nº 11/12682-3); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Carlos Roberto de Souza Filho (Unicamp); Bolsista Alexey Novoselov; Investimento: R$ 249.462,97.
Artigos científicos
NOVOSELOV, A. A. et al. Geochemical constraints on the Hadean environment from mineral fingerprints of prokaryotes. Scientific Reports. v. 7, 4008. 21 jun. 2017.
CARNEIRO, C. E. A. et al. Interaction at ambient temperature and 80 °C, between minerals and artificial seawaters resembling the present ocean composition and that of 4.0 billion years ago. Origins of Life and Evolution of the Biosphere. On-line. 14 out. 2016.