NOTÍCIAS

Um banco de pesquisa (e da vida)

Material humano armazenado em hospital da Universidade impulsiona a investigação científica

Autoria
Edição de imagem

A necessidade de ter uma coleção de material biológico humano estocável de fácil manipulação se torna imprescindível a um hospital para fazer impulsionar a investigação científica. Esse material tem hoje um destino certo: fica "arquivado" por tempo indeterminado em biobancos, dentro de geladeiras a baixíssimas temperaturas, o que garante a conservação dos achados de interesse para pesquisa presente e futura. O Brasil tem hoje cerca de 60 biobancos ao todo.

Foto: Perri
Material arquivado no biobanco do Caism: garantindo a qualidade e a quantidade das amostras

O Hospital da Mulher “Prof. Dr. J.A. Pinotti” - Caism da Unicamp tem um dos primeiros biobancos para armazenamento de placenta do país, que se junta a uma coleção organizada de material biológico humano doada voluntariamente pelas pacientes. Essa coleção contém o componente sólido do sangue, soro, plasma, tecido congelado, tecido fixado em blocos de parafina, macromoléculas (DNA, RNA) e proteínas, além de urina, líquido amniótico, fezes e cabelo.

No último ano, empregando a estrutura do biobanco já instalada para a área de Oncologia – sob coordenação do professor Luis Otávio Sarian (diretor executivo do Caism) –, a obstetra Maria Laura Costa criou esse biobanco de placentas no auge da epidemia de Zika Virus no país. Ali está armazenado material de gestações complicadas por arboviroses ou por Zika, de mulheres que tiveram parto no Caism.

Das 80 placentas coletadas, 14 são de mulheres com Zika Virus confirmado ou suspeito. “Já iniciamos a avaliação deste material e estudos estão em andamento utilizando os casos com positividade placentária. Avaliar estes casos pode gerar resultados relevantes porque até hoje ninguém sabe exatamente como é a progressão do vírus na placenta, a transmissão para o bebê e a sua repercussão, dependendo da infecção placentária”, conta Laura.

De acordo com ela, ter material dessas mulheres, coletado de maneira sistemática, das diversas camadas da placenta e com rigor para armazenamento e processamento, é fundamental para avançar o estudo das células envolvidas na compreensão do processo de infecção.

“Devemos colaborar para entender a infecção por Zika e o acometimento da placenta”, descreve a obstetra. “A placenta [que chega a pesar 500 gramas] é um dos órgãos humanos menos compreendidos, sendo que faz a interface entre a mãe e o feto, prevenindo rejeição, descartando resíduos fetais, transferindo nutrientes e secretando hormônios que mantêm a gestação.”

 

Foto: Perri
A obstetra Maria Laura Costa: “Devemos colaborar para entender a infecção por Zika e o acometimento da placenta”

A obstetra e colaboradores acabam de publicar um artigo na prestigiosa revista The Journal of Infectious Diseases, da Oxford Academic, onde o tom é a caracterização do perfil inflamatório nos casos de maior complicação pelo Zika Virus em indivíduos com infecção aguda, incluindo gestantes.


Pré-eclâmpsia

Outra área à qual Laura tem se dedicado é à mortalidade materna e as complicações na gravidez, parto e pós-parto. Nos últimos anos, vem esmerilhando a biologia placentária, tentando juntar as duas temáticas. “Chamamos isso de pesquisa translacional, pois busca agilizar a transferência dos resultados e conhecimento da pesquisa básica para as pesquisas e práticas clínicas”, explica.

As 80 placentas do biobanco do hospital são fruto de uma coleta sistemática que inclui a obtenção de material de várias porções da placenta: membrana basal colada ao útero, do cordão umbilical, da membrana amniótica e placa corial.

O material vem sendo coletado e armazenado direto em nitrogênio líquido a uma temperatura extremamente baixa, com o fim de preservar as características do tecido em trabalhos futuros, e também tem sido guardado material em blocos de parafina para estudar estrutura e morfologia do tecido.

O intuito é formar uma biblioteca desse material, embora o uso do biobanco dependa igualmente da evolução da tecnologia e da imaginação dos pesquisadores, para elaboração e aprovação ética de futuros projetos de pesquisa, realça Laura. Esse material já está disponível para estudos genéticos, de proteínas, em imuno-histoquímica, polimorfismo genético, expressão gênica e expressão de diferentes proteínas.

A busca é por ter material representativo de doenças raras e não raras, para que, diante da probabilidade de uma pesquisa esclarecer determinado diagnóstico, prognóstico e tratamento, seja possível selecionar as melhores amostras. Um número significativo de amostragem ajuda a detectar fragilidades comuns a mais de um material avaliado.

A expectativa de Laura é chegar, aos poucos, a uma coleta sistemática e universal de placenta, porém não só de placenta. Também de outros materiais biológicos durante a gravidez, coletando sangue e urina de mulheres no pré-natal, no parto, no pós-parto, para correlacionar esses achados com complicações da gestação.

No Caism, alguns estudos já estão em andamento nessa direção, coordenados pelo professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp José Guilherme Cecatti, com amostra de mulheres que começam o pré-natal sem complicações, das quais é colhido sangue e até cabelo para armazenar em biobanco.

Nos estudos de morbidade materna então, a obstetra comenta que também tem interesse pelas gestações com pré-eclâmpsia (quando a pressão arterial é elevada), uma das complicações mais significativas na gestação e uma das maiores causas de morbimortalidade materna no Brasil e nos países de baixa e média renda. Além da hipertensão, a pré-eclâmpsia é caracterizada por proteinúria – perda excessiva de proteína pela urina – em mulheres após as 20 semanas de gestação.

No seu pós-doutorado na Washington University, em St. Louis, EUA, Laura estudou mulheres com pré-eclâmpsia grave para tentar entender o que a desencadeia e quais mecanismos imunológicos a provoca. Ela espera colaborar com o tema e intensificar a parceria internacional e com os colegas do Departamento de Tocoginecologia da FCM.

O biobanco levará a muitas descobertas, acredita a obstetra. “Quando se tem material biológico armazenado, ao aparecer uma complicação que não se sabe explicar, como o Zika Virus ou mesmo a pré-eclâmpsia, pode-se voltar a estudar aquele material de mulheres na gravidez e parto. Também é possível obter material de um pool de mulheres que estavam grávidas em determinado mês, caso ocorra nova epidemia, por exemplo, e com isso investigar outras hipóteses”, acentua.


Coleção

A médica patologista do Caism Geisi Russano explica que o biobanco do Hospital da Mulher é uma coleção bastante completa. Em termos de tecidos, até o momento tem algo próximo de 500 amostras coletadas, incluindo sangue e tecido, congelados a -80º C. “Quando falo de tecido congelado, refiro-me à placenta e tecido mamário. Em breve, também teremos ovário”, revela.

Tudo é muito organizado, conforme a patologista. Todos os materiais biológicos ficam guardados em tubos com código de barras. Outra coisa: quando existem oscilações de temperatura nos freezers que os armazenam, pelo menos três médicos são acionados por e-mail, a fim de resolverem o problema.

O biobanco do Caism foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e todos os trabalhos que pretendem utilizar suas amostras são aprovados pela Comissão de Pesquisa do Caism e pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da FCM.

As pacientes que aceitam doar material para esse biobanco assinam um termo de consentimento, onde é explicado o que é o biobanco, como é armazenado o material e as pesquisas que podem ser desenvolvidas com ele. O biobanco está sempre ligado à pesquisa, assinala Geisi, no entanto a prioridade é o diagnóstico, especialmente nos casos de Oncologia.

Antes de serem formados os biobancos nos EUA, na década de 1990, as pesquisas eram mais trabalhosas, feitas sempre em biorrepositório e majoritariamente em blocos de parafina. “Hoje, com o tecido congelado, se consegue uma boa quantidade e qualidade de amostras de DNA e RNA”, garante.
 

Foto: Perri
A médica patologista do Caism Geisi Russano: prioridade é o diagnóstico

Laura recorda que, se um pesquisador quisesse analisar uma placenta de paciente com Zika antigamente, tinha que escrever um projeto, provar que ele era fundamental, acompanhar essas mulheres, coletar o material delas e ficar responsável pelo armazenamento e processamento das amostras. “Hoje, se a intenção é estudar Zika, já é possível ter acesso a todos os casos coletados e armazenados no biobanco, contanto que sigam os critérios éticos e sejam aprovados.”

O Caism tem material de excelente qualidade, garante Geisi, e que pode ser guardado por tempo indeterminado, por décadas ou séculos. “Temos duas geladeiras a -80º C, uma a -150º C e uma geladeira a -20º C, onde ficam armazenadas as macromoléculas. Com todo esse cuidado e pesquisas de ponta, certamente os melhores resultados ainda estarão por vir”, reflete.

 

Imagem de capa JU-online
Mãe e filho no Hospital da Mulher “Prof. Dr. J.A. Pinotti” (Caism) | Foto: Antoninho Perri

twitter_icofacebook_ico