Pesquisa mostra como o cineasta italiano explora a arquitetura e clássicos da pintura em seus filmes
Letícia assistia a mais um filme de um de seus diretores prediletos. Era Profondo Rosso, lançado no Brasil como “Prelúdio para Matar”, o quinto longa-metragem do cineasta italiano Dario Argento. A certa altura, em cena, vê-se um bar, em uma praça em Turim. Imediatamente Letícia percebeu a relação com a pintura de Edward Hopper (1882 -1967). Não era uma coincidência. A inspiração de Argento para criar o “Blue Bar” estava na tela Nighthawks, de 1942. No filme repete-se a sensação de que nada se move dentro do bar, como se ali se configurasse um mundo à parte. Argento é um dos principais representantes do gênero giallo, cinema italiano de suspense e horror, popular na Itália. Hopper, por sua vez, foi um importante nome da pintura realista norte-americana.
Encontrar correspondências entre as artes visuais, sobretudo as artes plásticas e a arquitetura, e o cinema de Argento, foi o objetivo da pesquisadora Letícia Badan Palhares Knauer de Campos em sua dissertação de mestrado, orientada pelo professor Jorge Coli, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
Veja a cena do filme Profondo Rosso:
Uma motivação para a pesquisa foi o questionamento de como um cinema tão popular como o cinema de horror italiano trazia referências tão elaboradas. Letícia procurou entender se as referências a uma diversidade de obras seria apenas o que ela chama de uma “citação visual”, ou se havia algo mais. “Nossa vontade era tentar descortinar quais eram as relações que ele fazia entre as obras e os filmes”, pontua.
E havia algo mais. O mundo à parte do bar da tela de Hopper duplicado no Blue Bar de Profondo Rosso é um lugar de estranhamento, onde as pessoas mais parecem fantasmas. Letícia escreve na dissertação que no imaginário cinematográfico do autor “obras de diferentes suportes se rearranjam num mundo à parte”. Em sua análise o cinema de Argento “articula-se como uma espécie de conjuntos de tapeçaria”. Letícia prossegue: “o uso das artes não se faz como nos demais gêneros cinematográficos. Inseridas no cinema de horror, elas articulam-se como seres pulsantes e vivos”.
Para a autora, Argento por vezes tem o rigor de um “psicopata obsessivo” na escolha das imagens que insere em seus filmes. Nada é por acaso ou gratuito. “Os assassinatos são pensados com o rigor de um psicopata obsessivo. Decapitações em elevadores, afogamentos em águas escaldantes, esmagamentos em cabines e trilhos de trem etc. Sejam as imagens em seu cinema de natureza violenta ou cultural, ali elas se fazem presentes das formas mais variadas e sedutoras” observa.
Em O Fantasma da Ópera, de 1998, aparecem referências a outro artista plástico, o pintor francês Georges de La Tour. A pintura recriada é Madalena Penitente, de 1640, que por sua vez foi inspirada em uma obra de Caravaggio. “No quadro Madalena está diante de uma vela. Os dedos cruzados sobre um crânio remetem ao tema da brevidade da vida. Introspectiva, ela observa o espelho que reflete a vela cuja chama ascende à sua frente. Christine, personagem do filme, se mostra numa pose semelhante, observando a luminosidade da chama que oscila diante de seus olhos” descreve a autora. Ambas são retratadas em um momento de hesitação.
Já a obra Ophelia (1851-52) de John Everett Millais aparece em uma reprodução exposta em uma galeria, no filme Trauma, de 1993. Na leitura que a historiadora da arte faz do filme, Ophelia, personagem de Hamlet de Shakespeare, tem relação com a personagem Aura, uma jovem frágil, desequilibrada física e psicologicamente, que se deixaria levar pela ideia do suicídio.
Além das citações ou referências diretas a obras, o estudo dedica um capítulo ao filme La sindrome di Stendhal (1996), introduzindo assim a questão da obra de arte como propulsora de traumas e medo. Argento cria uma história em torno do assunto: uma policial irá para Florença procurar por um assassino estuprador. Quando fica diante de pinturas da Galleria degli Uffizi, começa a sentir-se mal, da mesma forma que o criminoso que procura.
Veja a cena de “La sindrome di Stendhal”:
A exploração da arquitetura e do espaço físico dos teatros, nos filmes de Argento, ganharam também centralidade no trabalho. Muitas vezes Argento recria em estúdio edificações que existem de fato para transformá-las em “arquiteturas assombradas”. “Os espaços cenográficos e a arquitetura são apresentados como elementos próprios do horror. Argento explora os elementos de ornamentação como mecanismos do medo, a fim de que o tema das casas assombradas seja posto em evidência”, sinaliza a autora.
Letícia identificou alguns edifícios recriados em estúdio, entre os quais o “Haus zum Walfisch” (Casa da Baleia), existente em Friburgo, na Alemanha. A fachada, com pequenas modificações, foi recriada no estúdio italiano onde o filme foi gravado. A casa se transforma na entrada de uma academia de dança, onde vive a bruxa Mater Suspiriorum do longa-metragem Suspiria (1977). “A arquitetura moderna, por outro lado, é vista como um espaço de voyeurismo e constante observação, tal como acontece nos filmes de Hitchcock”, destaca.